Quando se evoca o filme Carrie, de Brian De Palma, um dos fenómenos de popularidade de 1976, o seu significado histórico tende a diluir-se na afirmação de um grupo invulgar de novos autores de Hollywood. Por alguma razão, o grupo foi consagrado com o rótulo de “New Hollywood”; aliás, recordemos apenas que foi também em 1976 que se estreou Taxi Driver, de Martin Scorsese. Ora, para compreendermos a riqueza de tal contexto, importa sublinhar o óbvio: o filme de De Palma adaptava o romance homónimo de Stephen King, lançado dois anos antes - assinalando o seu 50.º aniversário, aí está Carrie, o livro, com chancela da Bertrand Editora (tradução de Maria Filomena Duarte)..A nova edição apresenta um prefácio (traduzido por Rui Azeredo) em que Margaret Atwood resume o impacto de Carrie, lembrando que “é um daqueles livros que parece mergulhar no inconsciente coletivo da sua época e sociedade”. De tal modo que a descrição do terror como mera acumulação de peripécias mais ou menos bruscas e violentas está longe de ser suficiente: “(…) na base do ‘terror’, em King, está sempre o verdadeiro terror: a pobreza, a negligência, a fome e o abuso demasiado reais que existem hoje na América.”.Para lá das singularidades narrativas de Carrie, tudo isso remete para memórias do próprio autor. Atwood cita mesmo um eloquente parágrafo de Escrever - Memórias de um Ofício, livro em que ele evoca os muitos laços entre a escrita e a vida privada (ed. Bertrand, 2020): “Fui para a escola com crianças que passavam meses com a mesma marca de sujidade no pescoço, crianças cuja pele estava infestada de erupções e feridas, crianças cujas faces pareciam maçãs secas devido a queimaduras por tratar, crianças que eram mandadas para a escola com pedras na lancheira e nada senão ar no termos.”.O envolvimento emocional de Carrie resulta de duas linhas dramáticas que se fundem numa mesma perturbação. Assim, a heroína adolescente, “patinho feio” da sua escola, alvo de permanente chacota dos colegas, sente o seu corpo como um “objeto” imprevisível que ela própria teme não conseguir controlar; ao mesmo tempo, o seu pânico de todos os instantes é ampliado pelo fundamentalismo religioso da mãe que, liminarmente, proíbe qualquer gesto, palavra ou relação que possa conter a mais discreta sugestão sexual..A abertura do livro (e também do filme de De Palma) anuncia tudo isso através de uma cena que adquiriu ressonâncias mitológicas: no duche do balneário da escola, depois de uma aula de ginástica, Carrie reage com um misto de pavor e histeria quando vê o sangue da sua primeira menstruação… Para lá de reforçar as atitudes de gozo das colegas, daí nascerá a primeira situação de confronto com a mãe (“porque não me avisou?”), num frente a frente de crescente violência que não podemos deixar de associar às interpretações de Sissy Spacek e Piper Laurie no filme de De Palma..Estão, assim, lançadas as bases dramáticas das convulsões que se vão seguir, a começar pela revelação dos poderes telecinéticos de Carrie, conseguindo, através de uma vontade meramente “mental”, deslocar objectos de forma cada vez mais destrutiva - a apoteose do Baile da Primavera, com Carrie a acreditar na sua consagração como “Rainha” do evento, irá desembocar na inevitável tragédia colectiva..História(s) de fantasmas.Carrie foi o primeiro romance de Stephen King (n. 1947), lançando uma carreira de múltiplos sucessos, incluindo vários títulos adaptados ao cinema - lembremos os casos emblemáticos de Shining (1977) e The Dead Zone (1979), filmados por Stanley Kubrick e David Cronenberg (respetivamente em 1980 e 1983). Rezam as crónicas que King deitou fora as primeiras páginas que escreveu; foi a sua mulher Tabitha que as resgatou do lixo, convencendo-o a não desistir da história que tinha começado - o livro é-lhe dedicado (“Para Tabby, que me meteu nisto… e depois me salvou”)..Não estamos perante uma crónica realista da América, mas não será abusivo considerar que King inventava aqui as nuances de um “realismo fantasmático” que, perversamente, expunha os pesadelos de um país em angustiada crise de identidade. Coincidência a ter em conta: 1974 foi também o ano da queda de Richard Nixon na sequência do escândalo Watergate - o livro surgiu em abril, Nixon renunciou em agosto..Mesmo resistindo a qualquer determinismo simplista, é uma tentação (política e moral) perguntar se, agora, as sugestões simbólicas de Carrie se podem “aplicar” à América de Donald Trump. A prudência aconselha o necessário distanciamento histórico, o que, em boa verdade, não elimina o facto de os fantasmas resistirem à linearidade da história.