Virginia Mendoza: “Somos uma espécie moldada pela sede”
Mais do que a seca, ou a falta de água, a espanhola Virginia Mendoza, jornalista e antropóloga, recorre à palavra “sede”, como força histórica. Esta inscreve-se no corpo, nos mapas e nos conflitos. Em Sede (edição Objectiva), a autora, nascida na província de Castela-La Mancha em 1987, recorda-nos uma infância vivida num horizonte árido e de como isso moldou as suas escolhas futuras. Mote para uma viagem no tempo - da Pré-História à era digital - no encalço de como a falta de água condiciona decisões individuais e políticas, molda economias, hierarquias e imaginários.
Nas dedicatórias que abrem o seu livro, recorda Fati e Mari, que morreram de sede no deserto líbio e invoca também memórias intensas da infância. Uma realidade presente nos seus diários, onde, desde os 9 anos, regista as secas na sua região natal. De que forma estas experiências e memórias moldaram este livro?
Foram cruciais na abordagem a este livro porque estiveram sempre comigo. Talvez não lhes desse tanta importância de forma consciente, mas, ao decidir escrever sobre este tema, comecei a resgatar memórias e percebi que a escassez de água era uma constante nos poucos episódios da infância de que me lembro. Recordo-me, por exemplo, de acompanhar o meu avô ao depósito durante tempos de restrições, em que tínhamos apenas meia hora de água por dia. Tenho flashes de imagens, mais do que lembranças com narrativa, de ver girinos na água retida em antigas banheiras, bidões e tachos ao ar livre. Era muito observadora. Também revi o meu diário de infância, onde escrevia coisas típicas de uma criança de 9 ou 10 anos: “Hoje choveu”; “hoje não choveu”. Sem intenção consciente, a água já estava lá, presente. Sempre precisámos da chuva e víamo-la como algo maravilhoso.
Em que momento é que a sua relação com a seca e com os estados do tempo se impregnou no seu percurso académico? De que forma essa relação com a terra e com as pessoas, marcaram as suas escolhas pela antropologia e jornalismo?
É importante que me faça essa pergunta. Nunca o escrevi diretamente no livro, mas tem muito a ver com tudo isto de que falávamos. Acredito que houve, sim, condicionantes na infância que, de forma inconsciente, me levaram ao jornalismo mais narrativo, mais pausado, e à antropologia e fusão de ambos. Quando era pequena, tinha como amiga uma senhora de quase 100 anos, sempre vestida de luto, com o lenço negro. Tinha memórias da guerra civil e, na época, vivia sozinha. A família tinha morrido ou emigrado por causa do êxodo rural. Eu adorava passar as tardes com ela e ouvi-la falar da sua saudade - uma espécie de “saudade manchega” - porque os filhos tinham partido. E, nos fins de semana ou férias, quando acompanhava os meus pais aos mercados de outros vilarejos, era sempre recebida por uma senhora ou casal de idosos. Levavam-me para casa, cuidavam de mim, contavam histórias. E havia algo em comum: todos estavam sós, porque os filhos tinham ido viver para as cidades. Mais tarde, quando concluí a formação em Jornalismo e Antropologia, dei por mim a procurar histórias de pessoas idosas. Gosto de ouvir as suas experiências, de sentir essa sabedoria popular transmitida oralmente. Comecei a explorar a solidão em aldeias quase desertas, como forma de entender o que é o enraizamento. Só depois percebi que, no fundo, estava a tentar recuperar aquelas histórias da infância, que não tinha gravado, nem escrito. Era como se precisasse de continuar a fazer o que fazia em criança.
O livro da Virginia aproxima-nos da nossa condição humana, mostra a nossa fragilidade perante o ambiente, mas também como conseguimos superar adversidades quando estamos juntos, enquanto comunidade. Concorda?
Sim, esse é um tema muito presente ao longo do livro. Acho que é necessário, e hoje até urgente, recuperar esse sentido de espécie que perdemos. Esse esquecimento leva a barbaridades como a xenofobia ou o racismo. Quando olhamos para trás, percebemos que vimos todos das mesmas pessoas. Há evidência genética de que todos descendemos de uma mulher comum. Saber isso ajuda-nos a reforçar essa ideia de espécie. Por exemplo, fiz recentemente testes de ADN e descobri o meu haplogrupo mitocondrial. Isso permite-me imaginar como terão sido aquelas mulheres de quem descendo, que sobreviveram à Idade do Gelo, que se adaptaram e resistiram. Não fomos todos vencedores por força, mas sim por resiliência.
O título do livro, Sede, também nos liga enquanto humanos, porque todos sentimos sede. Independentemente do contexto climático, é algo comum. A Virginia escreve que prefere a palavra “sede” a “seca”. Porquê?
O título surgiu de forma muito natural, quase sem procurar. Nos livros anteriores, escolhi títulos mais poéticos, inspirados em versos de poemas ou canções. Mas neste caso, talvez por maturidade ou simplicidade, pensei: “Quero escrever um livro sobre a sede, então vai chamar-se Sede.” Depois, percebi o quanto essa palavra era importante. A “seca” é um fenómeno climático, mas a “sede” vai além disso. É uma necessidade fisiológica, claro, mas também uma necessidade coletiva. Escolher “sede” em vez de “seca” permite-me incluir desigualdade, má gestão, abuso de poder, no fundo, elementos humanos. A sede inclui mais do que a falta de chuva, inclui também o que provocamos uns nos outros.
No livro, junta memórias orais, registos familiares e investigação científica. Gostava que nos falasse desse trabalho artesanal de integração - como construiu esta narrativa coesa?
Foi um processo bastante orgânico. Comecei por escrever memórias de infância, que acabaram por constituir o prólogo. A partir daí, o conteúdo começou a pedir um livro. Inicialmente, queria falar da seca na “Espanha Seca”, traço que partilhamos com Portugal, a chamada “Ibéria Seca”. Queria, por exemplo, contar a história do botijo [recipiente tradicional de argila porosa para conter água fresca]. Queria escrever sobre a gastronomia manchega, rústica, embora rica, e da ligação com os ciclos de seca. Queria contar como a minha avó rezava a Santo Isidro, pedindo chuva. E o livro foi crescendo. Comecei a fazer perguntas, a procurar respostas e, quando as encontrava, queria partilhá-las. Por exemplo, a obsessão da minha avó por comer toucinho - de onde vinha isso? Comecei a investigar e cheguei até Lucy, a “avó da Humanidade”. A espécie de Lucy [fóssil de Australopithecus afarensis, com 3,2 milhões de anos] tinha já uma adaptação que permitia reter lípidos e metabolizá-los em água. Tal como os camelos desenvolvem a bossa, no deserto. Fiquei fascinada com essas conexões.
A Virginia dedica precisamente um capítulo às espécies animais e estabelece relações com a nossa biologia, com as estratégias que desenvolvemos para nos adaptarmos. Quer aqui aprofundar?
Foi uma relação que surgiu na minha pesquisa e escrita de forma natural. O micro levava-me ao macro. Começava com algo da minha família, da minha casa, e acabava por ligar isso a outras geografias, noutros continentes, ou até a tempos muito distantes. E percebia como, em diferentes contextos, as respostas humanas à escassez eram semelhantes. Partilhamos necessidades semelhantes, e isso leva-nos aos mesmos rituais, às mesmas soluções. Hoje, por exemplo, em Espanha, é comum comer abacate todos os dias. Em Portugal também, certo?
Sim.
Mas estamos a plantar abacates em zonas áridas, onde não faz sentido. Estas plantações gigantes consomem imensa água, mesmo onde os nossos antepassados já sabiam que o olival era a opção sustentável. O olival resiste bem à seca. Eu venho de uma terra de olivais - os meus pais conheceram-se debaixo de uma oliveira. Há uma ligação muito simbólica à oliveira, fonte de azeite e alimento.
A água, ou a falta dela, motivou, ao longo da História, revoluções, quedas de impérios e migrações. Considera que daí podemos tirar lições para fenómenos análogos no presente?
Podemos sempre aprender com o passado, o problema é que nem sempre o fazemos. E a nossa memória é curta. Já vivemos escassez extrema de água em Espanha, até nos anos de 1990. E, mesmo assim, desperdiçamos água sempre que não há seca. Só se tomam medidas quando os reservatórios estão quase vazios. Há geólogos que alertam: quando dizem que um reservatório está a 10%, devemos subtrair ainda 5 a 15% por causa do sedimento acumulado. Na região da Mancha, onde cresci, alguns investigadores acreditam que surgiu ali a primeira sociedade hidráulica da Europa. Há mais de 4000 anos, num momento de seca extrema, essas pessoas construíram poços fortificados, chamados motillas. Eram locais de gestão de água e cereais. Uma dessas motillas, que visitei recentemente, forneceu água durante quase 900 anos... E hoje está completamente seca. É doloroso.
Esses locais acabam por se tornar quase míticos. O seu livro também nos oferece uma dimensão espiritual e sagrada da água. O que a fascinou mais nesse campo?
Quase tudo, mas destacaria a história de Santo Isidro. Costumamos olhar para as danças da chuva dos povos indígenas como algo exótico, mas todos os que vivemos em zonas áridas temos a nossa própria versão. Em Espanha, muitos pedem chuva a Santo Isidro ou a São Marcos. Eu própria participava, a 15 de maio, numa romaria à Ermida de Santo Isidro, no topo de uma colina. Era uma festa - como tantas outras em torno de santos, mesmo para quem não é religioso. Só muito mais tarde percebi que aquela festa era, no fundo, a nossa dança da chuva. O que me impressionou foi saber que, em Madrid, houve épocas de seca tão graves, que não levavam apenas a imagem do santo, mas o seu cadáver - o corpo inteiro - em procissão pelas ruas, a pedir chuva.
Em Portugal também encontramos preces à chuva em momentos de grandes secas…
Exato, como em Espanha. As rogativas pro-pluvia pareciam algo remoto, mas quando comecei a escrever Sede, atravessávamos uma nova seca grave e voltaram a ser feitas. Houve uma cidade onde se realizaram roga- tivas cristãs e islâmicas ao mesmo tempo. Achei bonito: religiões diferentes, mas a mesma necessidade, o mesmo medo, o mesmo gesto de esperança coletiva. Esses rituais funcionam como momentos de coesão social. Não importa tanto se se acredita ou não, importa que todos se reúnem com um desejo comum. Como pedir um desejo juntos.
No seu livro, entrega um olhar crítico à sobre-exploração dos recursos naturais e alerta para os riscos da desertificação. Quais são, para si, as maiores preocupações futuras e que caminhos propõe?
Preocupa-me mais a contaminação da água do que a escassez. Em muitos lugares, a água existe, mas não é potável. Está contaminada por pesticidas, poluição industrial, má gestão. Isso destrói ecossistemas inteiros. Receio de que, no futuro, entremos em competição com a Inteligência Artificial pelo acesso à água. Não gosto de ser catastrofista, mas temos de ser prudentes. Os centros de dados consomem enormes quantidades de energia e água para refrigeração. Prevê-se que, até 2027, esse consumo possa quintuplicar. E algumas estimativas dizem que será ainda mais.
Permita-me fazer o papel de advogado do diabo. Não pode essa mesma tecnologia ajudar-nos a encontrar soluções para uma gestão mais eficiente da água?
Sim, como qualquer invenção, pode ajudar ou prejudicar, dependendo dos fins que lhe damos. A IA já está a ser usada para tornar água potável em campos de refugiados. Se conseguirmos que essa mesma tecnologia nos ajude a combater a contaminação da água, ótimo. Gosto de acreditar na capacidade de adaptação do ser humano. Temos é de decidir o que queremos fazer. E acredito que ainda estamos a tempo de encontrar equilíbrio, mesmo que já seja um pouco tarde. A IA consome muita água, sim, mas se nos ajudar a recuperar água potável, talvez esse consumo seja compensado.
Concorda que procurou o equilíbrio do conteúdo que transmite no seu livro? Ou seja, não o quis tornar uma arma para negacionistas climáticos, mas também não o quis tornar alarmista.
Sim, tentei posicionar-me entre dois extremos: os deterministas climáticos e os que ignoram completamente as alterações do clima. Não quero ser imparcial em relação ao negacionismo climático. Mas também não quero esconder os dados do passado só por receio de que sejam mal interpretados. Se o fizesse, seria um outro tipo de negacionismo. Acho importante contar como foram os grandes eventos climáticos do passado, quais as suas causas, e compará-los com o que vivemos hoje. Porque não é a mesma coisa. Se antes a aridez surgia com o frio, agora estamos a caminhar para o calor.