Como é que uma música do século XIX - Requiem, em dó menor, À Memória de Camões, de João Domingos Bomtempo - cumpre o propósito de assinalar os 500 anos do nascimento do poeta quinhentista?O início do século XIX é muito marcado pela redescoberta de Camões, e de um Camões reinventado como símbolo da liberdade, do ressurgimento nacional e, em 1817, há a famosa edição de Os Lusíadas em Paris, do Morgado Mateus. Em 1825, o Garrett vai escrever o Camões e em 1818-1819, o João Domingos Bomtempo, que era um compositor português que estava a viver em Paris e fazia a carreira entre Paris e Londres - uma grande carreira - faz um requiem à memória de Camões. E o requiem é precisamente isso. É a ideia do choro pela desgraça em que o país caiu sob o absolutismo - isto na visão romântica e liberal - e acaba por ser um requiem, mas ao mesmo tempo uma espécie de hino de ressurgimento, que depois vai ser feito em Lisboa, depois da Revolução de 1820, numa homenagem póstuma ao Gomes Freire de Andrade e aos revoltosos liberais que tinham sido mortos pela administração militar inglesa. Não é, obviamente, música do tempo de Camões, mas é uma música alusiva à simbologia muito forte de Camões como grande símbolo da identidade nacional, da dignidade nacional, da glória nacional. E em cada época, no fundo, há sentidos adicionais que são sobrepostos ao Camões. Os republicanos vão recuperar o Camões também. A opção democrática contra a ditadura vai recuperar o Camões como símbolo, é um sinal da vitalidade de Camões, essa capacidade de inspirar criadores artísticos e literários em cada uma das fases da história de Portugal e para lá das músicas que nós sabemos e conhecemos que, no tempo de Camões, foram compostas para os poemas dele.A evocação de Camões, hoje em dia, também é argumento para grupos nacionalistas exaltarem os seus objetivos. Como é que isto acontece?O Camões tem as costas largas, já Umberto Eco nos ensinou que as obras literárias contêm todas as leituras. A leitura que nós queremos dar a Camões é a leitura que nos parece que corresponde à postura dele no seu tempo, um irrequieto, um homem da crítica desassombrado do poder, um homem excluído pelo poder, um homem que sonha com uma glória que não é necessariamente apenas a expansão colonial marítima, mas que tem a ver com uma espécie de expansão civilizacional, tal como ela era vista nesse período, e certamente que o Camões liberal, o Camões republicano, o Camões democrata, que foi sendo evocado ao longo do século XIX e XX, não tem nada a ver com aquela associação ao Dia de Camões e da raça que o Estado Novo fez. Há muitos Camões, digamos. Aquele que a democracia celebra não é o mesmo que a extrema-direita celebra, porque essa extrema-direita deturpa o sentido original da figura e da obra de Camões.Como era a música no tempo de Camões? Ele pensava em música quando escrevia? A relação do Camões com a música é muito interessante porque, por um lado, nós conhecemos nos cancioneiros do século XVI - cancioneiros poéticos e musicais - alguns exemplos de músicas, de canções polifónicas, a três ou quatro vozes, sobre poemas de Camões. Por outro lado, sabemos que uma grande parte dos poemas de Camões fazem parte de um género que era frequentemente cantado. As cantigas, os vilancetes, as redondilhas - os sonetos menos, porque são uma forma mais literária. Mas muita da lírica de Camões era pensada em termos de uma forma musical. Por outro lado, há uma musicalidade da língua na poesia de Camões que está mesmo no coração da escrita de Camões. Há um jogo com as acentuações regulares ou irregulares, com a métrica, com a rima, que nos dá uma musicalidade muito forte. De resto, marcou depois muito a poesia portuguesa. A partir daí, uma grande parte dos grandes poetas portugueses está muito atenta a esta dimensão musical da língua, a esta cantilena natural da língua, e utilizam-na muito como efeito poético. Estou a lembrar-me da Sophia, estou a lembrar-me do Eugénio de Andrade, estou a lembrar-me do David Mourão Ferreira, e tantos mais. Há uma ligação muito direta, no fundo, na cultura cortesã em que o Camões se inseriu, e a música e a poesia estavam constantemente associadas, eram graças sociais, eram símbolos da distinção, era um bocadinho como no século XIX para as meninas de boas famílias tocarem piano e falarem francês.A evocação de Camões é uma boa oportunidade para repensarmos a forma como vemos a nossa cultura ou culturas?Repensar e relembrar Camões é importante, porque ele é um ícone daquilo que nós chamamos identidade portuguesa, sendo que identidade é um mosaico de identidades diferentes, não há uma única identidade. É feita de diferenças, de mudanças, de convergências, de combinações, de mestiçagens, e é isso que faz uma identidade, é o não ser absolutamente estratificada. Mas, invocar Camões é um ponto de partida, não propriamente como uma vénia passiva para com o passado, mas porque ele representa um exemplo de criatividade, de contemporaneidade para o seu próprio tempo, que é um estímulo a ter a mesma postura, a mesma irreverência, a mesma vontade de inovar, a mesma vontade de olhar para realidades diferentes e de escrevê-las, a mesma vontade de tentar perceber outras culturas, outras linguagens e, devidamente lido, é um ponto de partida muito importante para a nossa própria contemporaneidade.Ler Camões hoje em dia tem um significado diferente do que teria no século XVI?A nossa leitura de um clássico é sempre a nossa e a do nosso tempo, ou seja, partimos de uma realidade que é objetiva, que é aquele texto, mas a carga de sentidos que nós projetamos sobre esse texto é necessariamente a do nosso tempo, embora nós possamos -, e até, a meu ver, devamos - tentar adquirir informação suficiente sobre o contexto original de produção dessa obra para compreender o sentido original. Mas, inevitavelmente, a nossa leitura é uma leitura dos nossos dias.A importância cultural da música continua a assumir um papel fundamental na educação?Bom, na realidade, o conceito de música é um rótulo muito genérico, o que existe são músicas, no plural. Há muitas linguagens musicais, e depois elas convivem, interagem, dialogam, influenciam-se umas às outras, umas têm uma dimensão mais formal, exigindo uma maior aprendizagem, especializada, outras têm um caráter mais informal, e tudo isso se junta num pacote que nós chamamos música. Agora, o que é certo é que o desenvolvimento da aptidão musical ou da ligação à música é um elemento fundamental no crescimento individual, é um elemento pedagógico essencial, estimula uma quantidade de fenómenos de compreensão da expressão de sentimentos, mais ou menos também da noção de medida, da noção de proporção, da noção de ritmo. Por outro lado, a música é em geral uma arte que exige um trabalho de grupo muito forte, a prática musical estimula a integração no grupo, a ideia de um objetivo partilhado, a ideia de uma excelência compartilhada. Todos os teóricos das ciências da Educação reconhecem que têm um papel essencial. Em Portugal, infelizmente, essa realidade não se traduziu ainda numa política educativa sistemática que inclua a música na primeira linha da formação. E é uma pena, é um desperdício. Continuo a esperar e continuo a batalhar no meu campo direto de intervenção para uma maior atenção do sistema educativo à formação musical, não necessariamente como um objetivo autocentrado, mas como um instrumento de desenvolvimento mental, psicológico, cívico, afetivo, que pode e deve ser essencial. Por outro lado, falamos muito de identidade cultural portuguesa, a tal identidade que eu acho que é plural, mas nessa pluralidade estamos habituados a ver a cultura portuguesa como um filme mudo, e na realidade foi sempre um filme com banda sonora. Conhecermos o que foi a música portuguesa em cada período ajuda-nos a perceber melhor os Jerónimos e Camões, ajuda-nos a perceber melhor Paulo Rego e o Centro Cultural de Belém, ajuda-nos a perceber o Siza, ajuda-nos a perceber cada um dos marcos que nos habituamos a referir como expoentes da cultura portuguesa ao longo dos séculos, e estiveram integrados num contexto de práticas culturais em que a música esteve presente e afetou e influenciou também essas outras práticas.Enquanto musicólogo, como é que vê algumas críticas que apontam a imigração como algo que destrói o tecido da cultura portuguesa?A cultura portuguesa foi sempre, ao longo da História, uma cultura de mestiçagens. Desde logo pela nossa posição geográfica. Nós somos um país ao longo de uma costa que foi sendo ponto de chegada e de partida sistemático. Fomos invadidos, visitados, nós próprios invadimos e visitámos, comerciámos, comprámos, vendemos, namorámos muito por toda a parte e, portanto, a nossa cultura está cheia de fenómenos que consideramos intrinsecamente portugueses e que são o resultado de fusões e de diálogos interculturais. O exemplo mais evidente seria o fado português, que hoje em dia, historicamente, está claramente comprovado que deriva de uma dança afro-brasileira e que depois foi transformado num objeto intrinsecamente português e enraizado, mas que, num país que está quase a fazer nove séculos, tem apenas dois. E vem de um contacto com uma cultura africana filtrada, misturada com a europeia, através do triângulo atlântico no Brasil colonial. Portanto, os mais nacionalistas, os nacionalistas que choram sobre o caráter nacional do fado, não podem deixar de considerar que ele não nasce espontaneamente na Serra da Estrela, com o Viriato. E tantas coisas que nós consideramos emblemáticas da cultura portuguesa são o resultado destes diálogos, destas viagens, destes contactos, todos os motivos decorativos dos tapetes persas e das cerâmicas asiáticas que nós encontramos nos bordados populares portugueses. Podíamos fazer uma lista interminável. E depois há uma maneira que nós acabamos por definir de transformar, de incorporar, de modificar à nossa maneira essas coisas, mas elas estão lá e a nossa capacidade de absorver e transformar e incorporar e adotar outras linguagens, é até das coisas mais interessantes no percurso de Portugal ao longo da História. Vejo com grande otimismo esta possibilidade de diálogo intercultural alargado que nos dá o facto de termos comunidades de origens múltiplas com as quais contactamos e com as quais podemos construir pontes muito interessantes que vão certamente afetar, no bom sentido, a nossa própria mudança cultural que é contínua. Esta ideia de que há uma cultura portuguesa congelada no tempo e que tudo o que a modifica é um ataque à pátria é uma ideia infantil do ponto de vista das ciências humanas. Vejo com muito bons olhos este lado cosmopolita que Portugal tem hoje em dia, de poder dialogar no seu próprio território com múltiplas propostas culturais e não tem de as aceitar passivamente, tem apenas de conversar com elas e só ganha com isso.O que teria acontecido às práticas tradicionais portuguesas se não tivesse existido o Secretariado Nacional de Informação?O Secretariado Nacional de Informação, como o seu antecessor, o Secretariado da Propaganda Nacional, são instituições do Estado Novo muito baseadas precisamente na ideia de uma cultura popular estática. O que correspondia também à ideia de que o regime seria uma espécie de consequência direta dessa alma nacional imutável, multissecular, protetor dessa identidade que remontaria às origens de nacionalidade. O que vai acontecer é, pura e simplesmente, aplicar-se de forma institucional e oficial as ideias do romantismo, do nacionalismo romântico, que circulavam por toda a Europa desde o início do século XIX, sobretudo dos grandes filósofos alemães, como Herder, por exemplo. Daí a palavra folklore, a sabedoria popular, que se adotou e houve uma preocupação de tentar identificar aquilo que não era identificável, aquilo que não existia para identificar. Ou seja, pegar em tradições que em muitos casos são relativamente recentes, do ponto de vista macro-histórico, e tentar transformá-los em símbolos de uma identidade absoluta portuguesa desde sempre. Dir-se-á que alguma coisa foi positiva, no sentido de que houve recolhas etnográficas no terreno, que hoje em dia podem ser analisadas noutra perspetiva. Mas foi muito negativo, porque em muitos casos foi-se ensinar às comunidades populares aquilo que devia ser a sua identidade, em vez de ser uma manifestação espontânea, informal, natural, emanada do quotidiano dessas comunidades e respondendo aos desafios do dia a dia dessas comu- nidades. Era uma fórmula que, em muitos casos, era inventada pelo folclorista local, pelo mestre do rancho, pelo professor do liceu, que tinha umas ideias, tinha lido nuns livros, alguma coisa sobre cantigas e bailaricos e achava que ele era típico daquela terra. Nesse sentido, acabou por ser um ónus grande ao conhecimento da verdadeira natureza dinâmica das práticas musicais tradicionais em Portugal. Felizmente, tivemos o trabalho de etnomusicólogos como Lopes Graça, que contrariou um pouco essa linha, e sobretudo, a nova Escola de Etnomusicologia Portuguesa, fundada pela professora Salwa Castelo Branco, da Universidade Nova, que promoveu uma nova prática de metodologia e de teoria etnomusicológica que mudou completamente esse paradigma..AR: Sociedade portuguesa revê-se na candidatura do Fado a Património Imaterial - Rui Vieira Nery.Lembrar Garrett: 1825-2025 ou 'Camões', 200 anos