Rossellini e os seus herdeiros
Uma vez mais, a Festa do Cinema Italiano demonstra o seu empenho em fazer coexistir as muitas novidades que tem para apresentar com memórias em que a sedução cinéfila está sempre ligada às atribulações da história coletiva. Este ano, a retrospetiva O outro 25 de Abril, na Cinemateca e no São Jorge, é especialmente sugestiva. Como se escreve no programa oficial, trata-se de começar por lembrar o 25 Aprile de 1945, data da libertação de Itália do jugo fascista e momento decisivo nos meses finais da Segunda Guerra Mundial.
A inclusão nesta secção de Roma, Cidade Aberta (1945), de Robert Rossellini, tinha qualquer coisa de “obrigatório”: estamos, de facto, perante o filme que, além de ter ficado como símbolo central do movimento neorrealista, nasceu de uma postura moral, de uma só vez cinematográfica e histórica, cujas componentes humanistas influenciaram de modo decisivo os caminhos da modernidade que se consolidou através das “novas vagas” europeias.
Os dez filmes programados são muito diversos nas datas e nas opções narrativas, incluindo três documentários, objetos preciosos para acedermos a uma história capaz de se desenvolver para lá de qualquer cliché político ou panfletário. São eles: All’armi siam fascisti! (1962), de Cecilia Mangini, Lino del Fra e Lino Miccichè, uma montagem de imagens de arquivo sobre a guerra; La Donna nella Resistenza (1965), de Liliana Cavani, produção da RAI organizada a partir de entrevistas com várias mulheres que participaram na resistência ao fascismo; e Bella Ciao - Per la libertà (2022), de Giulia Giapponesi, uma viagem pelas muitas variações e transfigurações de Bella Ciao, canção emblemática da resistência italiana contra os nazis, e também contra os colaboracionistas.
Ainda que sendo dos títulos mais conhecidos presentes no ciclo, importa destacar também essa notável crónica social que é Uma Vida Difícil (1961), de Dino Risi, O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci, subtil reflexão sobre as convicções políticas (ou a ausência delas) a partir do romance de Alberto Moravia, e Tão Amigos Que Nós Éramos (1974), de Ettore Scola, um caso exemplar do melodrama enquanto género capaz de articular as convulsões da história com as componentes secretas da intimidade.
Por certo menos divulgados, mas não menos importantes, são Os Evadidos (1955), de Francesco Maselli, L’Agnese Va a Morire (1976), de Giuliano Montaldo, e Una Questione Privata (2017), de Paolo e Vittorio Taviani.
Este último tem qualquer coisa de despedida, uma vez que encerra o trabalho conjunto dos irmãos Taviani: Vittorio ainda colaborou no argumento, mas viria a falecer antes do projeto concluído (a morte de Paolo ocorreu já este ano, a 29 de fevereiro).
Com os seus altos e baixos, o legado dos Taviani pode mesmo ajudar-nos a definir o território em que todos estes filmes, mesmo através das suas muitas diferenças, se enraízam. Este é, afinal, um cinema que, a partir da referência vital de Rossellini, trabalha uma herança temática e estética em que o valor do real (entenda-se: do realismo) não exclui, antes favorece, o aparecimento dos mais variados registos narrativos.