Combate ao isolamento com uma desgarrada de fado à Lisboa deserta

Maria do Rosário Pedreira, Manuel Alegre, Nuno Júdice e Luís Filipe Castro Mendes entraram numa desgarrada fadista sobre a Lisboa destes tempos incertos. Vazia, quase deserta. Poemas no Facebook a ilustrar uma realidade nova.
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"Lisboa não tem beijos nem abraços / não tem risos nem esplanadas / não tem passos / nem raparigas e rapazes de mãos dadas / tem praças cheias de ninguém / ainda tem sol mas não tem / nem gaivota de Amália nem canoa / sem restaurantes sem bares nem cinemas / ainda é fado ainda é poemas / fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa / cidade aberta / ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste / e em cada rua deserta / ainda resiste".

O poema "Lisboa Ainda" é de Manuel Alegre, foi divulgado esta sexta-feira, 20 de março, num país em estado de emergência e fechado em casa. As palavras do poeta sobre uma Lisboa vazia e quase deserta chegam-nos através do Facebook e é a sua resposta a um desafio que não passa só por ocupar as horas nestes tempos diferentes e incertos que todos estamos a viver. É uma forma criativa de comunicar com o outro a realidade de uma cidade, de um país, do mundo.

A ideia surgiu no Facebook, entre dois "colegas de escrita". Maria do Rosário Pedreira, editora da Leya, foi "desencaminhada" pelo poeta e professor António Carlos Cortez para uma desgarrada de fado sobre Lisboa. Ele enviou-lhe um poema sobre a cidade "destes tempos horríveis" e propôs-lhe uma desgarrada, tal como no fado, "mano a mano". A também poetisa, escritora, letrista e cronista do DN achou graça à ideia, criou um poema, publicou-o e pensou: "vamos é desencaminhar outros poetas para fazerem a mesma coisa".

Dito e feito. As vozes de poetas portugueses entraram ao desafio numa desgarrada de fados sobre uma capital nunca antes vista. O mote estava lançado e a criatividade anda agora à solta em forma de quadras na rede social para lidar de uma forma diferente com o isolamento que a pandemia de covid-19 obriga. "Poemas que, no fundo, são retratos, como fados de uma Lisboa vazia, deserta, onde não se vê gente, o que é uma coisa estranha", resume ao DN Maria do Rosário Pedreira.

"Na padaria da esquina / Já só se entra às pinguinhas / E até se tornou rotina / Estar a um metro das vizinhas", escreve a editora nesta desgarrada de poemas.

Primeiros versos lançados e depressa as pessoas começaram a aderir a este desafio de olhar com alma de poeta e fadista para a cidade que um novo coronavírus obriga a estar diferente. "Pouco depois de ter publicado o meu poema, o José Carlos Barros também publicou um. Ele que está no Algarve publicou sobre uma Lisboa que está longe, à qual não pode vir e tem saudades", conta sobre o contributo do escritor e ex-deputado.

O antigo ministro da cultura Luís Filipe Castro Mendes respondeu a esta desgarrada em tempos de clausura em casa e escreveu uma e outra vez sobre Lisboa. Se no poema de Maria do Rosário Pedreira o bairro do Areeiro era o protagonista, de onde a letrista vê "as ruas desertas", o escritor destacou as Avenidas Novas.

"Ao meu amor vou dar provas, / se estamos de quarentena / nós nas Avenidas Novas / não somos gente pequena!", lê-se num excerto do poema de Luís Filipe Castro Mendes.

A seguir escreveu o poeta e ensaísta Nuno Júdice, depois o escritor Mário Cláudio, do Porto, e também o poeta Rui Cóias. Muitos outros se seguiram, uns conhecidos e outros nem tanto, a publicar poemas que ilustram com a ajuda das palavras a cidade fechada em casa. O desafio alastrou-se e nas caixas dos comentários, além dos elogios, há quem deixe à solta mais quadras nesta desgarrada.

"Acabou por não serem só pessoas da poesia, digamos erudita, que abraçou esta ideia de fazer um fado, uma coisa simples, com rima, com métrica, que até inclusivamente pudesse ser cantado", refere Maria do Rosário. Um lança uma quadra, há quem responda com outra e o desafio mantém-se em construção. "Começou por ser isto e, depois, claro que cada um foi escrevendo ou sobre o seu bairro ou sobre a sua realidade. Mas continuamos a chamar-lhe uma desgarrada e há muita gente que tem correspondido e que tem escrito outros poemas", conta.

Fazer quadras sobre a Lisboa destes dias estranhos "serve para nós nos alienarmos um bocado, de uma maneira que também é enriquecedora para o outro", considera a escritora. "Ou seja, não é estupidificante, porque há a tendência de quando as pessoas não têm nada para fazer ficarem coladas às redes sociais, onde há muitas coisas más. E ainda bem que estiveram a ler poesia, mesmo que seja sem pretensões, durante algum tempo", realça.

Poemas podem transformar-se em livro ou até serem cantados

A desgarrada continua e não se sabe como vai evoluir, como é, alias, o caso do estado de emergência que vivemos no país e no mundo. Será que este desafio com todos estes poemas pode um dia transformar-se num livro? "É uma coisa que não pensámos", responde, sem descartar a hipótese.

Quadras que um dia até podem ser cantadas. Quem sabe, diz a editora da Leya. "Acho que em certos poemas, sim [podem ser cantados], porque têm a métrica do fado tradicional, mas outros não", explica a letrista que sabe bem do que fala. Já escreveu para fadistas como Ana Moura, Camané, António Zambujo, Aldina Duarte, Carlos do Carmo, Ricardo Ribeiro e Carminho.

É que à medida que a desgarrada vai contagiando mais gente, surgem poemas sem a métrica tradicional do fado. Nesse sentido, Maria do Rosário Pedreira acredita mais numa edição de um pequeno livro do que um disco.

Um desafio de dois colegas de escrita que também pode revelar novos letristas. "Se os fadistas que são meus amigos no Facebook estiverem atentos a vários poemas que vão sendo partilhados, estou convencida que podem ver ali talentos novos para fazerem canções. É bem possível que isso aconteça".

Certo, certo é que estes poemas que vão sendo publicados na rede social são uma das formas de se lidar com o isolamento, de combater o facto de se estar sozinho em casa, evitando sair para não correr o risco de contribuir para a propagação de covid-19. "Acho que é sobretudo uma maneira de estar também com os outros, porque estamos isolados". E também um escape para tentar não se falar sempre do mesmo. Dos novos balanços dramáticos, dos números de mortos e infetados que não param de aumentar. "Esta é uma maneira de estarmos a falar com os outros de uma forma construtiva e criativa".

Em quarentena pela segunda vez

"As pessoas não se conseguem distanciar do que está a acontecer. Estão sempre a ir ao computador ver quantos mortos há, quantas pessoas infetadas há, a fazer contas, quem são, que idade tinham, os mortos nos outros países. Portanto, temos até certo ponto de nos alienar pela positiva, não podemos estar obcecados com isto, porque já temos de estar enfiados numa casa e não sair, que é uma experiência que não temos", resume Maria do Rosário Pedreira.

Aliás, esta é segunda vez que a letrista está isolada em casa. Há 15 dias, a editora da Leya esteve de quarentena depois de ter estado com Luís Sepúlveda, escritor chileno diagnosticado com covid-19, no Correntes d' Escritas, na Póvoa do Varzim. Regressou ao trabalho durante uma semana e agora está de novo em quarentena, mas esta não sabe quando termina.

Sabe-se, porém, que este período de contenção social já motivou uma desgarrada literária online, uma "brincadeira", diz Maria do Rosário Pedreira, que começou por "corresponder a um desafio de um colega de escrita". Um desafio que inspirou outros a escrever e a encantar quem lê, a ver pelos muitos "gostos" e comentários, também eles com quadras.

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