"A guarania nasceu para tocar o coração”, diz Emilio Garcete, que veio a Portugal para um concerto comemorativo do centenário deste género musical paraguaio, que a UNESCO reconhece como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Criada pelo compositor José Asunción Flores em meados da década de 1920, é um dos géneros musicais mais populares do país sul-americano, a par da polca, mas com essa característica mais sentimental. “Ambas têm uma métrica 6/8. Musicalmente falando, a polca tem uma métrica 6/8. A guarania é um 6/8 mais calmo, mais melódico, mais sentimental, e nasceu precisamente para isso, para tocar o coração, como diz o slogan da guarania, é ‘a música da alma’”, explica o músico, que viajou de Assunção para o concerto que aconteceu no Teatro Thalia, em Lisboa, no dia 16, por iniciativa da Embaixada do Paraguai e enquadrado na III Noite da Literatura Ibero-Americana, organizada pela OEI e pela Fundação José Saramago.A conversa com o músico aconteceu umas horas antes do concerto, mas desafiado a cantar uma guarania, Garcete escolheu Soy de la Chacarita, que já faz parte do cancioneiro paraguaio, e que foi composta por Maneco Galeano. “É uma música que fala um pouco sobre a situação particular de Assunção. Assunção tem uma baía lindíssima, o rio, a natureza. No entanto, vira as costas àquela baía. Assim, se olharmos um pouco mais a fundo para a história do Palácio de López, a frente está virada para a baía, mas a cidade foi construída virada para o outro lado, ou seja, de costas voltadas para o rio. Assim, o que a música nos conta um pouco é sobre o outro lado da cidade, o outro lado da moeda. Falando um pouco daquela baía, falando um pouco dos pescadores da zona, da situação difícil que os pescadores enfrentam cada vez que a água sobe durante a época das cheias. Uma parte é sobre como a casinha deles foi levada pelas águas”, conta Garcete, que no concerto foi acompanhado por Hugo Irrazábal, paraguaio que vive em Portugal, e por dois outros compatriotas que vieram de Espanha, Diego Vera, na harpa, e Ariel Quiñonez, no teclado. Garcete toca igualmente guitarra e Irrazábal em algumas das canções também canta. E houve no concerto um dueto instrumental interessante quando Vera, na harpa, e Irrazábal, na guitarra, interpretaram ‘Isla Sakã.Soy de la chacarita é em espanhol, mas há guaranias na outra língua oficial do Paraguai, o guarani. E quem esteve há uma semana no Thalia teve oportunidade de ouvir, por exemplo, Che Pykasumi. País encravado entre o Brasil e a Argentina, sem acesso direto ao mar, mas banhado por esse rio pujante que lhe dá nome, o Paraguai declarou a sua independência de Espanha em 1811. Teve a sua história muito marcada pela Guerra da Tríplice Aliança, no tempo do presidente Francisco Solano López, quando entre 1864 e 1870 enfrentou Brasil, Argentina e Uruguai. Também há uma curiosa ligação histórica a Portugal, como um dia contou aqui no DN o embaixador Raúl Silvero, pois foi o alentejano Aleixo Garcia o primeiro europeu naquelas terras que viriam a ser colonizadas por Espanha e nas quais os jesuítas chegaram, em dado momento, a ter grande influência com as Missões, nas quais a língua guarani era protegida.Garcete fala com grande admiração de José Assunción Flores, o pai da guarania, e de Maneco Galeano e Manuel Ortiz Guerrero, “compositores lendários do cancioneiro paraguaio.” Mas faz um alerta: “Ainda há bons compositores, mas temos uma crise de compositores dessa magnitude. Mas o próprio Paraguai, enquanto país, está a investir o suficiente nos seus produtores musicais para conseguir recuperar desta crise”. Garcete admite que se sente um pouco embaixador da cultura paraguaia, e estar curioso pela reação do público português à guarania. Pelos aplausos que depois recebeu, a resposta parece ter sido muito positiva. Garcete, na Europa, só tinha cantado em Itália. Sublinha que nos países da América Latina a guarania é apreciada.Uma das músicas muito aplaudidas foi Recuerdos de Mamá, que o cantor dedicou à mãe, que está em Assunção. É uma música composta pelo próprio Garcete, e agora cantada pela primeira vez . É daquelas que “é para tocar a alma”. O músico explica que quando canta e vê as lágrimas nos rostos do público “é um bom indicador” de que está a tocar nos sentimentos. E dá de novo o exemplo de Soy de la Chacarita: “É uma guarania em que se conta uma história de amor, mas triste. Mas, ao mesmo tempo, conta-se a beleza da paisagem vista pelo pescador todos os dias. Porque quem canta fala sobre a baía: ‘não há pincel, nem sequer o pincel do melhor e maior pintor, que tenha pintado coisa mais bela’”. .La Guarania, género musical da alma paraguaia."Gosto de chamar à guarânia de alma do Paraguai"