Jeremy Morris tinha acabado de chegar a Portugal quando, há dois anos, conheceu Luca Carlisle no Guincho. Conversa puxa conversa, descobriram que não era só o surf que os unia: não só partilhavam a nacionalidade suíça (uma das várias que os dois têm), como ambos gostavam de arquitetura e partilhavam uma conceção que passa por construções e materiais naturais. “Foram coincidências engraçadas”, explica agora Luca, numa conversa no Jardim da Fundação Gulbenkian. Juntos, Jeremy e Luca formam o coletivo Fahrenheit 180, cujo projeto À flor do azulejo, a cor do Tejo esteve precisamente exposto ali mesmo, em dois recantos no meio das árvores, não muito longe da Engawa, a pala inspirada nas casas tradicionais japonesas que fica junto ao Centro de Arte Moderna da Gulbenkian.“Tudo começou com uma open call da Bauhaus of the Seas Sails [iniciativa que liga o Pacto Ecológico Europeu aos espaços e experiências de vida das pessoas, guiada pelos valores da sustentabilidade, inclusão e criatividade] que foi apoiada pela União Europeia e depois teve como anfitriões a Gulbenian, BioLab e a Câmara de Lisboa”, continua Jeremy. Este ano o tema era Radical Waters Concrete Matters “e a ideia era pensar em materiais biorregionais dos cursos de água de Lisboa”, explica o arquiteto do Bureau, uma empresa com sede em Genebra e em Lisboa. Antes de prosseguir: “Como somos os dois surfistas, o Luca mais do que eu, estamos muito ligados à água, aos oceanos. E começámos a pensar nas ostras e nas algas como matéria-prima. Ao mesmo tempo surgiu então a ideia de trabalhar com azulejos. Porque é uma herança tão forte em Portugal. E Portugal está muito investido na economia azul, o que nos levou a pensar como seria um azulejo se fosse um biomaterial.”Começaram, portanto, pelas ostras e pelas algas. E assim descobriram que o estuário do Tejo - e o do Sado também - foi o maior banco natural de ostras da Europa, dos anos 1950 ao início da década de 1970. “Tentámos traduzir a viragem de Portugal para economia azul através dos azulejos - por isso juntámos aspetos culturais do passado e do presente. E as ostras faziam todo o sentido”, explica Luca. Mas transformar cascas de ostras em azulejos exige que se encontre um aglutinante. É aí que as algas entram na equação. Luca e Jeremy viram nas espécies invasoras que aparecem nas praias portuguesas “uma fonte incrível de alginato, que é o que usamos como aglutinante”, continua o luso-suíço-britânico, de 27 anos, e que vive em Portugal desde os 2.Sentados num banco feito com os seus azulejos, os dois amigos vão alternando nas explicações. E é o suíço-britânico-sul-africano Jeremy, de 28 anos, quem prossegue: “Quisemos criar um produto que pudesse voltar ao ambiente e desintegrar-se. Assim, literalmente, chegámos a uma solução em que podemos atirar estes azulejos de volta para dentro de água e eles irão desintegrar-se.”.Estes que vemos no banco e na espécie de balcão desta “cozinha” que é o projeto À flor do azulejo, a cor do Tejo foram tratados para resistir à água, claro. Mas como é que decorreu o processo de fabrico destas peças?Luca explica que começaram pelos restaurantes: “Recolhemos todo o tipo de conchas descartadas, mas foi bastante difícil convencer as cozinhas a mudar a forma de separar as conchas do lixo comum.” Rapidamente perceberam que precisavam de mais matéria-prima e decidiram ir à fonte e aos locais onde produzem as ostras. E aí, “deparámo-nos com estas grandes pilhas de conchas de ostras.” Ostras que não tinham passado pelo processo de triagem e não podiam ser enviadas para o mercado. “Acabam em pilhas que têm, talvez, quatro metros de altura. São enormes, mesmo enormes”, continua.Descoberta esta fonte de matéria-prima, restou a Luca e Jeremy limpá-las e secá-las. Inicialmente decidiram parti-las com martelos antes de as colocar no pequeno moinho que tinham no BioLab. “Deve ter sido assim que partimos uns 20 quilos de ostras”, conta Jeremy, a rir, antes de explicar que acabaram por ter de comprar um moinho maior.Reduzidas as conchas a pó, foi preciso peneirar, para obter as diferentes texturas que se podem ver - e sentir - nos azulejos. O aglutinante, esse teve de vir de fora de Portugal, uma vez que por cá temos a alga, mas ninguém para a processar. “É 90% pó de ostra e 10% pó de algas e depois misturamos com um bocadinho de água até ficar uma massa argilosa”, explica Luca.Esta é trabalhada para formar os azulejos que depois “secam ao ar, para não consumir tanta energia, ou podemos secá-los no forno, para ser mais rápido”, continua Jeremy. Para utilizações ao ar livre, além do banho de iões de cálcio, os azulejos levam ainda verniz de cera de abelha, para ficarem impermeáveis.Uma cozinha desconstruídaO ponto de partida de Jeremy e Luca neste projeto foi criar uma cozinha desconstruída para a Associação Food from the Block, de Marvila, que trabalha com crianças. “Quando temos uma cozinha, temos a bancada, o lava-loiça, o fogão e talvez um banco para se sentar e comer”, vai enumerando Jeremy. O que os Fahrenheit 180 fizeram foi desconstruir essa cozinha, separar os elementos..Tal como estão separados aqui na Gulbenkian. “Tudo é montável e desmontável. Todas as pernas podem ser tiradas, podem ser ajustadas para ficarem mais altas ou mais baixas”, continua o arquiteto. E, apontando para a bancada onde se destacam círculos coloridos no centro dos azulejos, explica que aquelas são cores que se encontram nas margens do Tejo - “Associamos a água e as margens a cores como castanho, azul ou verde. E, na verdade, há uma abundância de cores escondidas. Por exemplo, o camarão tem os seus próprios pigmentos. Temos os mexilhões. Temos a argila. Temos a terracota. Temos a spirulina azul, a spirulina verde. Temos cobre.”Nesta parte, Jeremy e Luca contaram com a ajuda de Mariana Simões, doutoranda e investigadora do Bauhaus of the Seas, que trabalhou na conexão das cores com as paisagens portuguesas. Mas não foi a única colaboração com que os Fahrenheit 180 contaram. A eles juntou-se ainda Francisca Rocha Gonçalves, que produziu a paisagem sonora subaquática que fez parte da abertura da exposição a 26 de julho.Seguimos para a zona onde se encontram as peças azuis deste projeto e Jeremy não resiste a brincar com Luca quando chegamos perto do lava-loiça. “É a menina dos olhos dele”, garante. O amigo admite que, “de momento, não se percebe logo, mas quando está totalmente montado é um lava-loiça que filtra a sua própria água. Então teria um vaso de plantas aqui em baixo. Com algumas plantas que captam toda a água. E um pequeno sistema de bombagem.” E admite que foi um sucesso, sobretudo junto das crianças, durante a exposição. O próprio fogão neste dia também já não estava ligado ao gás, mas ainda exibia a irregularidade dos azulejos que foram feitos num dos workshops que o coletivo organizou..Da Gulbenkian, estas peças seguirão para um contentor em Marvila, para usufruto da comunidade. Serão ainda exibidas no Ocean Space, em Veneza, em novembro, e, mais tarde, talvez numa galeria em Paris.Antes da despedida, a pergunta que se impõe: porquê Fahrenheit 180? É Luca quem diz ser um piscar de olho ao livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. “É uma novela distópica em que toda a gente está colada aos ecrãs, sem tempo para serem eles próprios ou para refletirem sobre as coisas. Portanto, Fahrenheit 180 foi como uma volta de 180 graus nessa ideia: o que podemos fazer para que as pessoas se desliguem dos telemóveis e se liguem umas às outras?”