Não é a primeira vez que Carlos Pimenta encena Oleanna, do dramaturgo David Mamet. Fê-lo em maio de 2009, no Porto, mas mais de 15 anos depois, a peça ganha outro significado. Em cena estão dois personagens, um professor universitário (John) e uma aluna que acaba por acusá-lo de assédio sexual (Carol). Tudo se passa no gabinete do docente ao longo de três atos. Em linguagem típica do dramaturgo norte-americano - Mametspeak -, parece um improviso, mas está tudo coordenado. O título Oleanna é de uma canção tradicional norueguesa e remete para o confronto entre ilusão e realidade. Estreada em 1992, “a peça pronunciava aquilo que é a chamada cultura do cancelamento. Mas, curiosamente, esse tema, hoje, trouxe outro. Trouxe este de quem tem o discurso, tem o poder”, diz ao DN Carlos Pimenta, ator, encenador e investigador (em comunicação, arte, cultura e novas tecnologias), que já dirigiu cerca de 40 espetáculos, entre teatro, ópera e bailado.“O que me interessou é o que é, hoje, a construção do discurso. A construção da narrativa e o poder que a linguagem tem. Que é algo muito contemporâneo, muito presente. Desde as chamadas fake news, à manipulação nas redes sociais, manipulação do discurso, da palavra, como forma de poder. Por exemplo, na política, como se deixam cair algumas coisas para os média para construir determinado tipo de narrativa e como essa narrativa se sobrepõe aos factos. Depois, o que é que são os factos? O que é a pós-verdade? O que é a verdade? São temas atuais. Se formos aos factos, vemos que eles próprios são mal interpretados”, sublinha. . Desde que foi escrita e até desde a primeira vez que Carlos Pimenta a encenou, muito mudou no mundo e Oleanna abre-se a novas perspetivas. “O texto é o mesmo, é a mesma tradução [de Vera San Payo de Lemos e João Lourenço], mas a encenação não tem nada a ver. Aliás, não quis mesmo trazer ninguém da anterior equipa propositadamente para não haver qualquer contaminação. Por outro lado, também permite, 15 anos depois de voltar a fazer este texto, vê-lo de outra maneira. E hoje vejo mais esta questão do poder dentro da linguagem do que na altura via. Via mais uma acusação de assédio sexual. Hoje já passámos uma fase crítica sobre essa questão, podemos ter outros pontos de vista”. Para esta nova encenação de Oleanna, Carlos Pimenta convidou os atores João Pedro Vaz e Bárbara Branco. Durante uma hora e 20 minutos, os dois atores entram num diálogo a partir de cada uma das suas posições: ele, um professor à espera de nomeação definitiva que lhe permitirá comprar uma casa nova. Ela, aluna que vem de um meio económico desfavorecido e que está com dificuldades na cadeira. Carol vai ao gabinete do professor pedir apoio. John procura ajudá-la, mas tudo o que ele diz e faz dá origem a um grande equívoco. Em jogo estão o estatuto, o género, o discurso e até questões geracionais. “E ele tem a sua vida estável, está para ser nomeado professor catedrático, está a comprar uma casa nova, é alguém que tem um poder que, curiosamente, ele não estimula, mas tem. E, de certa forma, para quem não tem nada, isso é uma forma de violência. E a questão geracional é muito relevante aqui, porque ambos assumem que têm razão, porque veem a realidade de maneiras diferentes, porque têm experiências diferentes”. . Há, pois, duas interpretações dos mesmos acontecimentos que, para Carlos Pimenta, também apontam para a complexidade da comunicação e para a “falta de atenção ao outro”. “Dentro da comunicação há uma complexidade muito grande de que muitas vezes nos esquecemos. Cada vez gostamos mais de ideias simples, sim e não, disto e do seu contrário. E o populismo ocupa-se disso, não se ocupa da complexidade, mas sim da simplificação para construir uma narrativa mais ou menos visível, polida, percetível.”E quem tem razão nesta luta de palavras? O professor ou Carol? Caberá ao espetador decidir. “Há uma frase que nós pomos no cartaz da peça que diz que ‘qualquer lado que se escolha, está errado’. Porque compete ao espetador interpretar esta situação e ele vai interpretá-la de acordo com a sua posição de expectativa. Cada um vai ver uma peça diferente. Não tenho dúvidas sobre isso”, diz Carlos Pimenta. “Nós, perante o outro, já o estamos a julgar. Ou somos tolerantes, ou condescendentes, ou temos compaixão. Isso já é um julgamento. Já estamos a colocar filtros. Geralmente, quem tem mais poder coloca mais filtros.” O encenador não toma partido neste confronto, tal como o autor da peça. “O Mamet dizia que escrevia peças, que não era um artista programático, que compete ao espetador preencher os espaços. E foi isso que quisemos fazer aqui também”.Para os atores, um dos desafios de Oleanna é precisamente conseguir fazer com que o espetador fique dividido até ao fim. “A grande dificuldade desta peça é manter o fio condutor apertado, tenso, deixando também espaço para quem está a ver por nesta situação e nestas personagens o que quiser. Ou seja, fazer este texto sem ser tendencioso de parte a parte, sem fecharmos conclusão absolutamente nenhuma, porque o texto não fecha, mas às vezes há opções que conduzem mais para um lado ou mais para o outro. A tentativa é sempre neutralizar”, diz ao DN Bárbara Branco. Para a atriz e para João Pedro Vaz, esta peça é como um jogo de pingue-pongue, sempre a bater bolas. “Estou nas mãos dela, e ela está nas minhas mãos. Isto exige uma grande confiança. E não tem a ver com generosidade, tem a ver com ética de trabalho. Ou seja, de sabermos que cada um de nós tem a responsabilidade de criar dinâmicas juntos. Não há aqui nada que eu consiga fazer sozinho. Nem mesmo falar ao telefone. É uma coisa curiosa, porque eu tenho quatro falas ao telefone antes de ela entrar. E correm melhor as seguintes, quando ela entra, porque falo ao telefone e já estou a contracenar com ela, há coisas que eu quero deixar mais ou menos explícitas ou não”, diz João Pedro Vaz. . O ator sublinha que como é um texto muito entrecortado, é essencial saber ouvir. “É preciso ter o texto ao mesmo tempo sabido mas disponível para o momento”. Num dos ensaios, Bárbara Branco e João Pedro Vaz decidiram trocar de cadeira. Carol à secretária do professor, e este no lugar da aluna. Não estava previsto. “Quando ela diz ‘o professor quer é ter um lugar’, pensei nisso para dentro, até me distraí um bocado. Agora vamos discutir se fica. Mas isso foi uma das coisas que me fez trabalhar com o Carlos, esta coisa de ele nos ir acomodando, de também nos dar liberdade”.No ensaio a que o DN assistiu, a troca de cadeiras deu-se. Quem for ver a peça saberá se o encenador a manteve no final. .Solo 'O Rei no Exílio' projetou Francisco Camacho no mundo da dança e está agora em livro.Carlos Rodríguez dança ‘Eterno’ e mostra Picasso entre a luz e a sombra