O vírus está a paralisar a cultura em Portugal. E agora?
O cancelamento dos eventos culturais está a preocupar os trabalhadores de um setor onde a maioria trabalha a recibos verdes e muitas estruturas dependem das receitas de bilheteira. Vêm aí tempos (ainda mais) difíceis.
A equipa do Teatro Reflexo tinha vindo de Sintra e já estava instalada em Braga onde, iria apresentar em várias escolas o espetáculo A Lebre e a Tartaruga quando, na segunda-feira, começou a receber telefonemas cancelando as apresentações. "Foi em catadupa, tivemos que cancelar a digressão", conta ao DN, desolado, o encenador Michel Simeão. "Perdemos o dinheiro da venda dos espetáculos, que seriam uns cinco mil euros. Isto é um rombo enorme do nosso orçamento."
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O Teatro Reflexo é uma estrutura pequena, com apenas cinco pessoas, que já existe há quase 20 anos, e que é conhecida do grande público sobretudo pelo projeto Casa Assombrada, espetáculos que são "experiências de terror". Mas tem também um repertório infantil que, todos os anos, é apresentado em várias escolas. "É claro que não podemos exigir o dinheiro às escolas. Se não há espetáculo os pais não pagam e, por isso, a escola também não nos pode pagar. Nós percebemos que é uma questão de saúde pública. É uma situação nova para todos e temos de ter algum bom senso. Mas também é verdade que é um pesadelo para nós."
No caso do Reflexo, houve despesas com deslocações e estadias, impossíveis de recuperar, e além de Braga e Guimarães, os espetáculos noutras localidades também estão a ser cancelados. Mas continua a haver ordenados para pagar, como é óbvio. E insegurança em relação ao futuro: "Temos a estreia de Matadouro, em Leiria, marcada para 3 de abril, já com dois mil bilhetes vendidos, e não sabemos bem como vai ser. Provavelmente teremos de adiar a estreia."
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Da mesma imprevisibilidade se queixa Rui Madeira, diretor da CTB - Companhia de Teatro de Braga. Com o Theatro Circo fechado, a companhia viu-se forçada a cancelar a estreia de As Troianas, de Eurípedes, prevista para o próximo dia 25, um espetáculo no qual estão envolvidas 40 pessoas, entre artistas e técnicos. Além disso, os espetáculos que a companhia tinha em escolas da região durante o mês de março foram todos cancelados. E Rui Madeira não vê como haverá condições para realizar a digressão em Itália, que estava agendada para maio. "Temos a atividade suspensa", lamenta.
"É claro que entendemos os cancelamentos, esta é uma situação de força maior, mas isto para nós é muito grave porque temos compromissos assumidos, com outras estruturas e com várias pessoas, e não sabemos se vamos conseguir mantê-los", diz. "O impacto é enorme, sobretudo em economias frágeis e em países que não têm uma política cultural. Este ano ainda não recebemos o financiamento do Ministério da Cultura, mas continuamos a pagar os nossos impostos e a segurança social. Numa situação destas, as estruturas pequenas e médias, que já vivem numa situação de precariedade total, são as mais afetadas." Para já a companhia continua a ensaiar, sem saber ao certo quando poderá estrear.
Prejuízos serão enormes
A cultura e o desporto foram os dois primeiros setores a sofrer com as medidas de contenção do covid-19 anunciadas pelo governo. A ordem é para evitar locais com muitas pessoas, sobretudo se forem locais fechados. Como os teatros, os cinemas e todas as salas de espetáculos. O Monstra - Festival de Cinema de Animação foi cancelado. A Festa do Cinema Italiano também. A Gulbenkian cancelou concertos. E as notícias de cancelamentos e adiamentos não param de chegar. Centro Cultural de Belém. Teatros municipais de Porto e Lisboa. Concerto de Tony Carreira na Altice Arena. Concerto de Marco Paulo no Pavilhão Rosa Mota. O festival MIL, no Cais do Sodré. É impossível listar todos os eventos culturais que estão a sofrer com o vírus.
Para os espectadores, os danos são controlados: é certo que perdem a oportunidade de assistir a um espetáculo mas é-lhes devolvido o dinheiro dos bilhetes.
Mas o prejuízo será enorme para empresários e promotores destes eventos, como é óbvio. E também para artistas e técnicos, na sua maioria trabalhadores a recibos verdes, que só ganham quando trabalham e que, de repente, se veem sem trabalho até ao final do mês.
Tiago Cação, que trabalha na indústria musical, foi um dos primeiros a pôr o dedo da ferida, logo na manhã de terça-feira, no Facebook: "Músicos, técnicos, roadies, produtores, etc., vão ser os primeiros 'afetados' com o corona vírus. Precários, a recibos verdes, sem a mínima proteção social, vão sofrer na pele estes cancelamentos." (...) Se isto se prolongar há também pequenas e médias empresas com salários para pagar que muito provavelmente não se vão aguentar até ao verão. Pelo que sei, há já salas a cobrar cancelamentos. Não há seguro que contemple epidemias, por exemplo."
O autor e encenador Ricardo Neves-Neves expôs a sua preocupação assim que se soube do cancelamento de muitos dos espetáculos no Porto e em Lisboa. "O que fazer a seguir? A equipa artística e técnica, que já começou a trabalhar e tinha as datas reservadas há vários meses ou há mais de um ano (e que provavelmente terão rejeitado outros trabalhos para se fazer aquele que entretanto foi cancelado), ficam sem os seus salários? E também me preocupam os contratos de aluguer de carrinhas que teremos ainda assim de cumprir, a mão-de-obra e os materiais comprados para a manutenção necessária dos cenários, figurinos e adereços, os valores gastos com a divulgação, reservas de estadia, etc., etc. Como são estas coisas pagas?", perguntou na terça-feira à noite, numa publicação no seu Facebook:
É verdade que as consequências não são iguais para todos - há quem tenha apoios ou outro tipo de garantias, há a possibilidade de adiar eventos. Mas há espetáculos que não podem ser adiados e um dos motivos é que as pessoas que os iriam fazer e os locais onde se iriam realizar não estão disponíveis noutras datas. O cancelamento põe em causa aquela que é uma maiores fontes de receita na área cultural que é a bilheteira - por exemplo, no caso dos concertos e festivais de cinema, mas também nas estruturas teatrais que não têm espaço próprio. Com a agravante que um cancelamento feito em cima da hora não evita uma série de despesas de produção - umas já feitas e outras que não podem ser canceladas (deslocações, estadias, aluguer de espaços e equipamentos, etc.). Como poderão as estruturas equilibrar as suas já de si frágeis contas com as portas fechadas durante três semanas?
"É inegável o forte impacto global que esta epidemia está a ter sobre todas os setores da sociedade. As consequências para o setor cultural e a circulação de artistas são já bem visíveis a nível nacional e internacional. Queremos deixar uma mensagem de força e solidariedade a todas as salas de espetáculo, clubes, festivais, artistas e demais intervenientes", escreveu a organização do festival de música MIL no seu comunicado - embora, como explica ao DN o diretor do festival, Gonçalo Riscado, no caso do MIL que é uma organização sem fins lucrativos e que tem 75% do financiamento de apoios públicos e institucionais, "a situação acaba por não ser assim tão grave". "Os festivais que não têm estes apoios e que dependem mais da bilheteira serão muito mais afetados", reconhece. No caso do MIL, houve necessidade de cancelar algumas prestações de serviços, sobretudo técnicos, que estavam contratados para os dias do festival e há um óbvio desperdício de meios, uma vez que há uma equipa que está a trabalhar há oito meses para um evento que não vai acontecer.
Precários: sem trabalho, sem pagamento
Há obviamente a questão dos trabalhadores independentes, que não estão minimamente protegidos. O DN questionou a Egeac, empresa responsável pela gestão dos espaços culturais da Câmara de Lisboa, para perceber qual é o procedimento a adotar numa situação destas. Os artistas e técnicos que tenham sido contratados pontualmente para realizar os eventos que agora foram cancelados vão ser pagos? Ficámos apenas a saber que "estas questões estão ainda ser analisadas" e que, para minorar os prejuízos, a Egeac está a tentar reagendar todos os eventos que seja possível reagendar.
No seu Facebook, Luís García, programador cultural da Câmara Municipal de Évora, chamou a atenção para esta situação, dizendo: "Não podemos simplesmente cancelar tudo e ficar descansados. Por cada espetáculo cancelado há gente que não trabalha e portanto não ganha o dinheiro essencial para viver". Essa é uma das questões mais graves e que muitas vezes passa ao lado do grande público:
"Num dia, perdi cinco concertos e uma conferência", escreveu o maestro Martim Sousa Tavares na sua página. "E perante a inevitabilidade de umas férias forçadas, o meu primeiro pensamento vai para aqueles que, como eu, são freelancers e vivem das oportunidades que conseguem, a muito custo, gerar. E aqueles, que, também como eu, amam e vivem para o que fazem. Perante algo assim ficamos sem chão e numa situação muito desfavorecida, uma vez que não há Segurança Social que nos acuda":
Hugo Rodrigues, coordenador do Cena - STE (Sindicato dos Trabalhadores dos Espetáculos) confirma ao DN que a direção do sindicato tem recebido várias questões sobre esta situação que será, certamente, abordada na reunião da direção agendada para quinta-feira. No entanto, sublinha que esta é um problema que não afeta somente os trabalhadores dos espetáculos: "Os trabalhadores independentes, sejam eles de que setor forem, são afetados pelo encerramento das empresas ou pela suspensão das atividades. Claro que há determinadas profissões onde os ordenados são mais elevados e as pessoas estão por isso mais protegidas mas isto afeta os atores e os músicos tanto quanto os tradutores, os arqueólogos, toda a gente que está abrangida pelo artigo 151 do código do IRS", explica.
No caso de trabalhadores que fiquem em isolamento ou de quarentena, os independentes, tal como os outros trabalhadores, recebem 100% do valor da remuneração base de referência, apurada com base nos rendimentos declarados à Segurança Social. E no caso de doença, os trabalhadores também estão abrangidos pelo regime normal do subsídio de doença, tendo direito a subsídio a partir do 11º dia sem trabalhar.
No entanto, no caso de cancelamento do trabalho, o que acontece? "Alguns contratos, nomeadamente no caso dos concertos de música, preveem que no caso de cancelamento devido a calamidade ou catástrofe natural não há lugar qualquer tipo de pagamento", explica Hugo Rodrigues. Será a situação que mais se aproxima de uma epidemia. "Depende dos contratos que foram feitos" mas, na maior parte dos casos, prevê, o que vai acontecer é que não haverá pagamentos. É que não se trata do incumprimento de uma das partes, pelo que não se aplicam as eventuais indemnizações.
"Muitos trabalhadores estão a pedir-nos que interpelemos o Ministério da Cultura e nós até o poderemos fazer", admite o responsável do sindicato. "Mas penso que este é um problema que terá de ser colocado ao nível do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, não poderá ser uma solução setorial." A luta que há a travar, e que vai continuar, com ou sem covid-19, é pela defesa dos direitos dos trabalhadores que estão em situação precária, diz.