Há um ano à frente da Academia Goncourt, Philippe Claudel vem a Lisboa para a 3.ª edição do Choix Goncourt du Portugal, que reúne as escolhas de estudantes de oito universidades portuguesas e cujo vencedor será anunciado no dia 5. O escritor e cineasta francês, que vem também apresentar a reedição, agora em BD, da sua obra O Relatório de Brodeck, falou ao DN por Zoom sobre a importância deste Choix Goncourt, as críticas à Academia e o valor do Prémio Goncourt. Mas também sobre a nova literatura francesa e os seus autores portugueses preferidos.Vem a Lisboa esta semana para o Choix Goncourt du Portugal. É a 3.ª edição no nosso país desta iniciativa que internacionaliza o Prémio Goncourt. Que balanço faz até agora?Esta é uma ótima iniciativa. E acelerou, nos últimos 5 a 10 anos, com um grande número de países a fazerem pedidos para participarem. Neste momento estamos em 43, 44 Choix Goncourt do estrangeiro, que reúnem 55 a 60 países em todos os continentes. É ótimo. E, claro, estamos muito felizes por um país próximo, não só geograficamente, mas intelectual e culturalmente, com laços muito fortes com a França, como Portugal, se ter juntado a esta aventura há três anos.Deixar a escolha do vencedor aos jovens dá uma visão diferente da Academia Goncourt, a que preside há um ano?Como sabe, estes Choix Goncourt do estrangeiro são, na verdade, mais ou menos decalcadas do Prix Goncourt des Lycéens, que existe há mais de 30 anos em França e dá a 2000 alunos do Ensino Secundário, todos os anos, a oportunidade de conhecer a primeira lista Goncourt, com cerca de 15 títulos, ler essas obras na sala de aula, eleger os seus delegados e votar nos livros. E, finalmente, em meados de novembro, depois do nosso prémio, entregamos o Prix Goncourt des Lycéens, que, juntamente com o Goncourt, se tornou o prémio mais influente de França. Os Choix Goncourt do estrangeiro seguem o mesmo modelo, ou seja, dão aos jovens - mas com a dificuldade adicional de que são jovens que não têm o francês como língua materna, mas que se interessem pela literatura francesa ultracontemporânea - a oportunidade de fazerem a sua escolha a partir das listas propostas. São poucos os países que ficam com a primeira lista de 15 obras, a maioria dos que participam na aventura ficam com a lista de quatro ou com a de oito.Fundada em 1903, a Academia Goncourt reúne grandes nomes da literatura francesa, mas tem sido alvo de algumas críticas - clientelismo, gerontocracia. Há um esforço para diversificar os autores e as obras nas listas de candidatos?Todos os lugares de poder estão sujeitos a críticas. A partir do momento em que se tem instituições que têm um papel importante, claro que estão sujeitas a críticas, o que é normal. O que seria terrível era não ter qualquer comentário ou crítica. Isso significaria que somos inúteis. A partir do momento em que se tem todo este interesse em torno do Prémio Goncourt, em torno da Academia, das nossas escolhas, da composição da Academia, tudo o que faz com que as pessoas falem sobre a Academia - e, aqui, estou a falar como presidente - é positivo. É muito bom que as pessoas estejam a falar de nós. É muito bom que haja comentários, ciúmes, controvérsias. Tudo isto está ao serviço da literatura e prova que a literatura é algo que faz com que as pessoas falem entre si e que é também um exercício de introspeção e de desenvolvimento do pensamento crítico. Depois, a composição da Academia está sempre sujeita a críticas. A idade dos membros… mas não vamos pedir aos jovens para julgar. Foi para isso que criámos o Prix des Lycéens. Também a percentagem de homens e mulheres… quando entrei, há 13 anos, havia duas mulheres. Hoje são quatro. Mas, da mesma forma, podemos dizer que há poucos homens, ou nenhum, no Prémio Femina, que é, na sua essência, um prémio feminino e ninguém o critica. Mais, quando se trata de renovar um membro - e aconteceu há uns tempos -, entrei em contacto com cinco autoras e as cinco recusaram. Por isso, temos de parar de fazer suposições sobre as nossas intenções, porque a realidade é mais complexa.Sabemos que escolher o vencedor do Goncourt nem sempre é fácil. Por vezes é um processo longo e intenso e tudo menos unânime. Como presidente da Academia, sente o peso da responsabilidade, uma vez que o seu voto duplo pode ter de desempatar em caso de impasse?Isso ainda não me aconteceu como presidente. Mas o voto duplo é automaticamente utilizado se na 13.ª ronda de votações ainda estivermos empatados. Aconteceu duas vezes nos últimos anos. E o meu antecessor, Didier Devoin, teve de usar a sua dupla votação por duas vezes. É isso que ditam as nossas regras. Senão, o meu papel enquanto presidente durante as deliberações é garantir que elas decorrem da forma mais tranquila possível, com respeito e ouvindo a voz de todos. Somos uma assembleia democrática. Cada voz vale o mesmo peso que as outras. Mas, obviamente, somos um pouco como um júri num julgamento. Ou seja, uns terão mais facilidade em desenvolver argumentos, tentar convencer os outros. Depois também temos de estabelecer uma boa conversa para que todos se sintam confortáveis, ouvidos, respeitados. Que tudo isto aconteça numa atmosfera de paz. E devo dizer que tenho tido sorte, desde que me tornei presidente, porque voltámos a uma atmosfera calma após alguns anos turbulentos. É uma grande satisfação para mim.O Goncourt envolve um montante simbólico - 10 euros -, mas tem um valor muito mais elevado para o vencedor. A fita vermelha que assinala que o livro é prémio Goncourt dá outro prestígio aos vencedores?Estamos numa altura em que, quando olhamos para as vendas de livros, o mercado editorial em França em geral está a correr muito bem. Mas se observar o que os livros estão a vender, a participação da literatura está a cair muito. Daí a importância de prémios literários como o Prix Goncourt que, como disse, são extremamente influentes. A partir do momento em que um livro ganha o Goncourt, as suas vendas vão disparar, vão explodir. E não apenas em França, mas também o número de traduções. Hoje, um prémio Goncourt significa pelo menos 250.000 exemplares vendidos em França, até um milhão, para não falar dos livros de bolso. E isso significa entre 20 e 40 apresentações no estrangeiro. Portanto, obviamente, o prémio muda a vida do livro, muda a vida do seu autor e muda a vida do editor. Portanto, é aqui que temos a responsabilidade de garantir que este prémio se mantém com esta força e este poder num mundo onde o livro está, de facto, um pouco em perigo.Falando um pouco do seu percurso, nasceu e ainda vive em Dombasle-sur-Meurthe, na Lorraine e, depois de terminar o liceu, teve uns anos de vida um pouco dissoluta. Sempre soube que a literatura era a sua vocação ou uma das suas vocações?Sim, escrever, o cinema também, desenhar, tirar fotografias, todas as dimensões artísticas da existência. Sempre precisei de me expressar de formas diferentes das clássicas notas altas, etc. E tentar compreender o mundo com outros elementos, que podem ser palavras, imagens, cores, desenhos, etc. Desde a infância, nunca deixei de explorar isso, com mais ou menos sucesso, mas com uma profunda necessidade. Guardei isso para mim durante muito tempo e só se tornou público bastante tarde. Publiquei o meu primeiro livro aos 37 anos, o que não é muito jovem. E fiz o meu primeiro filme, uma longa-metragem, tinha 44 ou 45 anos. Mas o importante é fazer as coisas quando nos sentimos preparados para as fazer. Não há pressa, não precisamos de publicar livros, não precisamos de fazer filmes. Vamos tentar fazer as coisas quando nos parecem importantes e quando nos sentimos prontos para as fazer.Deu aulas numa escola secundária, foi professor na prisão de Nancy e numa instituição para adolescentes com deficiência física. Essa experiência é importante para o seu trabalho literário, e também cinematográfico?Acredito que todas as experiências humanas são importantes. Todas as pessoas que encontramos na rua, o nosso dia a dia, as nossas histórias de amor, as nossas histórias de luto, os nossos fracassos, os nossos sucessos, os círculos que frequentamos, tudo isso nos faz e constitui. Neste contexto, a prisão onde lecionei durante 12 anos, ou, mais tarde, o Instituto para crianças com deficiência física onde lecionei durante cinco anos, os hospitais, os lares de idosos, foram locais que me impressionaram e me fizeram pensar sobre a natureza humana, sobre a nossa força, a nossa fraqueza, a nossa capacidade de resiliência, a nossa capacidade de cair, também sobre a moralidade, o bem e o mal, etc. Portanto, não seria quem sou se não tivesse tido estas experiências.Como cineasta, ganhou vários prémios internacionais, Golden Globe, BAFTA, e também o César em França. É fácil conciliar estes dois mundos, o literário e o cinematográfico?São abordagens muito diferentes. Há uma abordagem extremamente solitária e pessoal, que é a escrita, com total liberdade de execução, uma vez que quando escrevo um livro, não preciso de dinheiro, não preciso de um produtor, não preciso de um ator, não preciso de um técnico, não preciso de um cenário. A literatura é um filme global que nós próprios fazemos, por isso ainda é extremamente leve e fácil de implementar. O cinema, por outro lado, é uma arte industrial, é pesado, é caro, mas dá-nos o prazer de sermos uma espécie de maestro. Ou seja, o nosso papel essencial, para além da visão que temos da história e do filme, é reunir uma equipa que nos permita alcançar o que temos em mente. Uma equipa artística, uma equipa técnica. Para mim, é um prazer enorme escolher atores, técnicos e, juntos, compormos alguma coisa. Eu acho que num filme destacamos sempre o método do realizador, os atores principais, mas se tirarmos o assistente de câmara número 2, o filme não acontece. E isso é muito interessante, essa globalidade da criação no cinema. Mas é muito cansativo porque, para além destas dimensões artísticas, também se é chamado a lidar com problemas humanos. Somos um artista, mas também um empresário, um psicólogo, um assistente social e um supervisor geral. Usamos um pouco todos os chapéus e é muito cansativo.Voltemos à literatura. França tem 16 Prémios Nobel de Literatura. Três só desde o ano 2000. A literatura francesa, como disse, está de boa saúde?Sim, acho que está a correr bem, mas está a correr bem como toda a literatura. O que é interessante na literatura é que nos dá o pulsar do mundo global em que vivemos. Mas também nos dá uma identidade - a identidade de um país, de uma língua, de um estado de espírito. Quando leio autores americanos, autores russos, escandinavos ou portugueses, aprendo algo que não teria aprendido sem eles. A literatura francesa não está acima, nem abaixo. Faz parte de um todo. O que lhe vou dizer é um pouco paradoxal, sendo eu presidente do Prémio Goncourt, mas os prémios não são muito importantes. Têm a importância do prestígio e das vendas, mas a literatura não se limita aos prémios. Há muitos autores que merecem o Nobel ou o Goncourt e que nunca o vão receber. Mas a vida é assim. Para captar a intensidade da literatura, os prémios literários podem ser interessantes, mas, ao mesmo tempo, o fundamental é ir ao encontro dos livros, dos textos.Se tivesse de recomendar um ou dois nomes aos portugueses para descobrirem a nova literatura francesa, quais seriam?É difícil porque há muitas vozes interessantes. Mas há um autor que ainda não teve a honra de ser distinguido com os grandes prémios e que se chama Yves Ravey. Gosto muito do trabalho dele, que é, ao mesmo tempo, muito acessível. Escreve uma espécie de falsos romances policiais, com muita profundidade. É um autor que tenho prazer em ler e descobrir. Também autoras como Dominique Barbéris ou Marie Nimier, que já produzem há alguns anos, que são interessantes e merecem ser mais conhecidas.Falando de literatura portuguesa, tem um autor favorito?Se olharmos para os clássicos, fui um grande leitor de Fernando Pessoa. É uma obra desconfortável - acho que Pessoa não é uma leitura agradável, é algo que não é fácil de ler, percebe o que quero dizer? Mas durante anos andou sempre comigo o Livro do Desassossego. É um bocado como Proust. São autores que nos acompanham. Muito mais tarde, há um autor que me impressionou muito que foi Lobo Antunes, Saramago obviamente, mas António Lobo Antunes impressionou-me quase ainda mais... O Esplendor de Portugal é um livro que significou muito para mim. E há um autor que é português de coração, mas que é italiano, que é Tabucchi. Tabucchi conseguiu fazer com que as pessoas descobrissem Portugal, a sua literatura, a sua civilização, através de um italiano, através da sua literatura. Há alguns livros muito bonitos de Tabucchi sobre Portugal.Só para terminar, algum projeto de que nos possa falar? Bom, venho esta semana a Portugal para o Choix Goncourt du Portugal, mas também para a reedição de O Relatório da Brodeck, que já tinha sido publicado por outra editora em Portugal, mas sai agora com a chancela da Maldoror. E, neste momento, estou em campanha após o lançamento, há dez dias, de um pequeno livro, um pequeno romance distópico, em França chamado Wanted, cujas personagens principais são Donald Trump, Elon Musk e Vladimir Putin. É um livro que escrevi em março, muito rápido. Veremos se será traduzido em Portugal, mas está a ter muita repercussão em França, porque o livro começa com uma cena na Sala Oval, onde Elon Musk oferece mil milhões de dólares a quem assassinar Vladimir Putin. Portanto, este é o início do livro e tudo se encadeia numa série de acontecimentos que têm repercussões globais. .Dominique Wolton: “Se não salvarmos as outras línguas, haverá guerras contra a língua inglesa”