Nascida em Paris no ano de 1974, a escritora Evelina Gaspar só veio viver para Portugal aos seis anos, mas muito tempo depois a escrita tornou-se uma realidade a partir do primeiro romance que publicou, Na Massa do Sangue, vencedor do Prémio Literário Médio Tejo na edição de 2017. Três anos depois o seu romance, Os Dentes do Tejo, é também escolhido pelo júri do Prémio Literário Lions na edição de 2020 como o vencedor. Cinco anos depois, a editora Guerra & Paz acaba de lançar o seu mais novo romance, O Destino Português de Sam, que “resgata os passos e as geografias de um homem marcado por profundas paixões e contradições” e diz do novo livro que “confirma uma das novas vozes das letras portuguesas”. Quando se pergunta à escritora se se sentiu condicionada pelo facto de os dois romances anteriores terem sido premiados, Evelina Gaspar recusa a situação: “Não, de todo. O ponto de partida foi o mesmo que nos dois romances anteriores, porque um livro, para mim, é aceitar colocar-me num lugar de certo desamparo, como se me sentasse num descampado, sujeito a todo o tipo de ventos. Isto porque nunca tenho um plano, nem sei para onde a narrativa caminha, pelo que só sei para onde um romance vai, depois de já ter chegado. Sou pouco racional e muito intuitiva na construção de uma história. Por isso mesmo, o resultado surpreende-me sempre. Desta vez sucedeu da mesma forma. Eu tinha os factos, sim, mas a maneira de contar, o ângulo, foi algo que fui descobrindo à medida que fui escrevendo.”A sinopse é curta, apesar de as quase duzentas páginas ocuparem o leitor durante várias horas: “Um romance biográfico que acompanha a vida do pintor Sam Abercromby, nascido na Austrália, na sequência de um escândalo que expulsou os seus pais da boa sociedade local. Sam vive até aos dez anos como proscrito, sendo aceite aos treze numa escola de arte, onde é reconhecido como prodígio. A sua vida, repleta de aventuras, leva-o a percorrer vários países até chegar a Portugal, guiado por uma série de sonhos vívidos. É aqui que Sam conhece o lendário D. Sebastião, que se torna a sua grande inspiração artística.”Quem é este Sam que a autora faz desfilar em vários tempos, indo do presente até ao princípio do século passado para o enquadrar e explicar, até ao possível, a sua personalidade. A ideia de romancear a biografia de um estrangeiro nasceu de um amigo, o pintor Carlos Vicente, que a convidou para visitar um conhecido cuja vida “daria um romance dos diabos”. E assim aconteceu, apesar de não faltarem sugestões destas que redundam em fracasso por ser a história do outro uma deceção. Não foi o que aconteceu, segundo Evelina Gaspar: “A vida de Sam é realmente excecional. Desde logo devido às próprias circunstâncias que rodeiam o seu nascimento. A mãe é uma refugiada, o pai um ex-combatente casado com a filha do governador da Austrália Ocidental; ao apaixonarem-se são expulsos da cidade e obrigados, como párias, a procurar refúgio no deserto, onde Sam nasce. A sua infância vai, pois, ser muito marcada por este isolamento, que decerto contribui para que floresça nele uma grande sensibilidade, que será decisiva para a sua posterior identidade artística. Por outro lado, trata-se de alguém que desde novo tem sonhos que o deixam muito impressionado. Depois, a sua vida é muito aventureira e são muitos os transes dramáticos por que passa, com traições, desgostos, ruturas… A maior rutura é com o próprio país de nascimento, que deixa muito radicalmente aos trinta e nove anos para ir em busca de um país que não conhece e onde chega perfeitamente ignorante do que o aguarda por cá.”Foi a primeira vez que ficou seduzida por uma história de vida que merecia ser escrita ou só avançou porque necessitava de um tema para um novo romance, pergunta-se à autora: “Neste caso, aconteceu que conheci o Sam numa altura em que me preparava para encetar um novo projeto literário e a sua incrível história cativou-me de imediato e por completo. Sou facilmente seduzida pelas histórias de vida das pessoas, e costumo estar atenta a essas histórias que acontecem à nossa volta, todos os dias. Até porque ao escrever, seja o que for, mesmo um conto, vou sempre buscar pedaços dessas narrativas, que são matéria-prima para a minha ficção.”No final do romance pode-se ver uma fotografia que testemunha uma das conversas entre Sam e a escritora. Foi através delas que confirmou os sonhos que trouxeram Sam até Portugal: “O Sam anda por aqui há muito tempo, há quase 40 anos que ele chegou a Portugal. Os seus sonhos são do conhecimento de muitas pessoas, não são nenhum segredo.” Confrontada, garante que não se sentiu em dúvida sobre o romance que queria escrever: “Era esta a história que queria contar e não outra.”Ainda o leitor vai na página nove e a autora revela que D. Sebastião irá surgir na narrativa e inspirar o artista. O mito sebastianista é insubstituível na nossa mitologia? Evelina Gaspar responde: “Para o Sam, o mito sebastianista é insubstituível e faz parte da sua vida. É no contacto com esse mito ligado à nossa nacionalidade que ele se torna o pintor que vem a ser, e assim, esse seu encontro com D. Sebastião é fundador.” Essa realidade do protagonista não é assim tão partilhada pela escritora: “Na verdade, eu nem sequer me considero patriota. Claro que tendemos a amar o que conhecemos; eu sou portuguesa, e os meus romances centram-se muito no país, na cultura portuguesa e nas idiossincrasias do nosso povo, mas eu vejo-me mais como alguém que faz parte da grande família que é a humanidade, e sou pouco sensível a qualquer tipo de reverência pelos símbolos e mitos da nação, o que não invalida que respeite quem sente de modo diferente. O que é curioso para mim, é esta ideia de um estrangeiro, através da sua arte, poder contribuir para a revitalização dos mitos nacionais.” .Além de Portugal, os cenários geográficos e históricos por onde vão passando várias gerações de personagens são muitos. Segundo a escritora, a credibilidade dessas descrições “faz parte do ofício do escritor”. Ou seja, enuncia: “Compreender o que não conheceu, vivenciar o que não viveu e ser por momentos o que nunca foi. Para tal, levei a cabo as minhas pesquisas e contei com as impressões do Sam.” No entanto, só a realidade era insuficiente para romancear a biografia de Sam: “Sobre os factos, há todo um trabalho literário, que passou, aqui e ali, pela criação de episódios marginais destinados a dar sustentação à história, mas acidentes menores, que não são determinantes.” O romance também está repleto de interpretações psicológicas que estruturam os personagens em vez das habituais descrições físicas: “O romance conta com uma galeria de personagens muito interessantes, nomeadamente os pais e os avós de Sam, que apresentam grande densidade psicológica. Apraz-me sempre fazer esse trabalho de criar personagens complexas e multifacetadas, onde se espelha frequentemente o bem e o mal que vive em todos nós. A caracterização física, acaba com frequência por resultar secundária, é verdade.”Só resta uma questão; como reagiu Sam ao livro? Evelina Gaspar resume assim a reação: “Sam não teve pressa nenhuma em ler o romance que o tem como protagonista, o que diz muito do seu desprendimento. Enquanto eu o escrevia, nunca perguntou que tipo de história seria; nunca se intrometeu no processo, nunca interferiu. Como criador que é, compreende o valor da liberdade criativa. Falei com ele há poucos dias e disse-me que ia a meio. Comentou que a leitura seria muito boa se não o fizesse recordar o passado e tudo aquilo que lhe aconteceu.” .O DESTINO PORTUGUÊS DE SAMEvelina GasparGuerra & Paz183 páginas Outras novidades literáriasO QUE PENSAR DOS OUTROS“Escrever sobre arte é como uivar à Lua, porque é inútil e talvez mesmo fútil, mas há sempre esperança de que algum eco responda”, é uma das frases iniciais desta recolha de textos que foram escritos por Delfim Sardo para catálogos de exposições entre 2013 e 2025. Tendo em subtítulo o tema, Escritos sobre artistas, a leitura vai em muito além desse propósito, designadamente por esmiuçar processos criativos, a estranheza de alguns projetos e, principalmente, o porquê daquilo que está exposto. Ou seja, uma tentativa de radiografar a obra e o artista. .UIVAR À LUADelfim SardoTinta da China356 páginas O QUE PENSAR DE NÓSA seleção, transcrição, introdução e notas é de autoria de João Barrento em mais um volume que pretende dar continuidade à edição dos muitos cadernos manuscritos de Maria Gabriela Llansol, que ainda colaborou na organização do primeiro de 76 cadernos e deu as indicações a que este responsável continua a dar seguimento. Um pedaço (27/02/1995): “Acabei de tentar reproduzir Emily Dickinson na minha língua. Conto, penso, traduzo. Estou próxima de tudo o que existe, azuladamente à minha volta.” .A FLORESTA DAS INTENSIDADESMaria Gabriela LlansolAssírio & Alvim215 páginas .Império português inspira Polónia a debater mais o colonialismo