A capa de Marginalizados até pode assemelhar-se à de um romance de ficção tal é a força da imagem e do título, mas não foi esse o género que a professora Agata Bloch, do Instituto de História da Academia de Ciências da Polónia, pretendeu desenvolver. O subtítulo clarifica muito rapidamente o assunto: “Negros, mulheres, ciganos, mulatas, judeus… E se fossem eles a contar a história do Império”. Para Bloch, a escolha deste título surge de uma intenção: "Provocar o leitor e despertar a imaginação: afinal, quem poderia ser considerado marginalizado na história do Império português?” Considera que a definição deste estatuto não é simples: “Tanto poderia depender da cor da pele, do estatuto social, do lugar onde se vivia, ou até de todos esses fatores em conjunto. Quis também sublinhar a complexidade desse grupo, pois o «marginalizado» poderia ser um africano escravizado no Brasil, os cristãos-novos em Portugal, ou ainda as mulheres brancas acusadas de bruxaria e degradadas para África.”Ou seja, estamos perante uma investigação que acrescenta outros testemunhos, desta vez de uma forma metódica e mais extensa, para cumprir o objetivo de Agata Bloch em contar a história do Império português através de uma população que não tinha direitos. A investigadora recorda que a ideia deste trabalho nasceu de uma pergunta fundamental: “Seria possível ao marginalizado falar e ser realmente ouvido?” Foi a partir daí que começou a sua investigação: “Primeiro, entender os direitos que lhes eram atribuídos e em seguida pela forma como conseguiram usufruí-los ou como foram por eles limitados.” A interrogação alargou-se também às “brechas que encontravam nas práticas administrativas para negociar o seu lugar. Se, por um lado, eram empurrados para as margens da sociedade ibérica e colonial por recusarem submeter-se à religião imposta pelos portugueses, por outro, existia a possibilidade de saírem dessa condição marginal, desde que abdicassem das suas tradições e adotassem a cultura ibérica como modo de vida.” Um dos caminhos para essa integração, explica, passava por vários caminhos: “Pelas mercês reais, pelo estatuto de miseráveis, pelo serviço militar e por outros recursos que alguns souberam mobilizar como argumentos para negociar a sua posição social.”Não pode dizer que encontrar e consultar a documentação disponível referente a estas populações foi fácil, pelo contrário “foi muito exigente”. Segundo Agata Bloch, na coleção do Conselho Ultramarino, no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, encontram-se mais de 182 mil correspondências do período colonial: “No entanto, apenas uma pequena fração desse imenso volume corresponde a petições enviadas por indivíduos marginalizados. A consulta dessas fontes exigiu paciência e disciplina.” Exigiu mais confiança na seleção, como acrescenta: “Enquanto historiadora, pergunto-me muitas vezes até que ponto a história de poucos casos pode iluminar a grande história? Acredito que sim.”Até porque é em muito através de petições e documentos pessoais dirigidos ao rei que Marginalizados pretende desmistificar a opinião de que esses grupos eram passivos: “Cada petição traz consigo a experiência de marginalizados diferentes, atravessando geografias, etnias, problemas e universos sociais diversos. Justamente por isso, esses documentos, embora raros, são de um valor extraordinário e permitem entrever múltiplas formas de viver, resistir e negociar dentro do Império português.”A historiadora ainda vai na Introdução quando aponta que outro dos objetivos de Marginalizados era permitir ao “leitor redescobrir as vozes esquecidas da história colonial”. Daí que os vários testemunhos incluídos ao longo do livro pretendam esclarecer os leitores e deste modo fazer com que alterem a sua opinião sobre a história do Império. Refere que essa foi exatamente uma das questões fundamentais que a orientaram: “Até que ponto o olhar de um marginalizado poderia desafiar a história do Império colonial português?” Uma segunda questão impôs-se logo: “Será que uma narrativa construída a partir das camadas mais baixas poderia ser revolucionária?” Estabelecido o plano, o que Agata Bloch constatou foi que “as memórias desses grupos enriqueceram a história política e social ao introduzir experiências individuais narradas a partir do seu próprio ponto de vista”. Ao mesmo tempo, deu outro entendimento: “Humanizaram acontecimentos de grande escala, mostrando como foram vividos por aqueles que nem sempre tiveram voz e como identificaram oportunidades para transformar as suas vidas”. Acrescenta: “Essas versões não constituem uma história paralela, nem devemos esperar que ofereçam uma visão totalmente oposta à dominante. O que fazem, contudo, é revelar dimensões menos visíveis de eventos históricos e mostrar que mesmo os marginalizados foram atores ativos na construção do Império.”Entre os múltiplos exemplos sobre o papel ativo deste amplo leque de marginalizados sob várias formas está também o da resistência quotidiana dos escravos, muitas vezes tornando-se a maior rival das rebeliões armadas. A história esqueceu em muito os primeiros mas não ignora assim tanto os que recorreram à contestação, como mostra Agata Bloch: “As grandes lendas costumam formar-se em torno das grandes revoltas. É natural, pois as rebeliões armadas geram mais ecos, debates e controvérsias.” Dá um exemplo: “Até a antiga Gazeta de Lisboa escrevia com maior interesse sobre revoltas do que sobre as formas mais discretas e pacíficas de resistência dos marginalizados. Esta resistência não se expressava em batalhas abertas, mas em gestos mais subtis, como na procura de escrivães ou procuradores, na saída das senzalas para redigir e enviar uma petição. Era um processo mais lento, menos imediato, mas que, a longo prazo, obrigava a própria máquina burocrática a adaptar a lei portuguesa às realidades concretas em que viviam os marginalizados. Muitas dessas decisões, uma vez tomadas, passavam a aplicar-se de forma uniforme a todas as áreas sob jurisdição portuguesa.” .Para a historiadora polaca, reconhecer nas cidades portuguesas testemunhos do papel destes marginalizados não é tarefa fácil, como explica: “Em Portugal, ainda não existe um espaço dedicado exclusivamente a estas memórias, como, por exemplo, o Museu Internacional da Escravidão de Liverpool, onde o conhecimento sobre os marginalizados, neste caso, escravizados, é reunido num só lugar. Mas isso não significa que os testemunhos desses grupos não tenham sobrevivido em Portugal. Pelo contrário: estão presentes, ainda que muitas vezes de forma mais discreta, exigindo um olhar atento.” Em Lisboa, por exemplo, ao passar-se pela Rua do Poço dos Negros ou pela Rua da Rainha do Congo; no campo das artes, encontra-se na figura de uma escrava no canto da pintura Vista do Mosteiro e Praça de Belém, ou os músicos negros atrás de um grupo de nobres retratados no Casamento de Santa Úrsula. “Os dois quadros estão expostos no Museu Nacional de Arte Antiga, mas tal como acontece com a documentação de arquivo, são presenças que existem, mas nem sempre são evidentes à primeira vista”, refere.Existirá uma das antigas partes do império português que seja mais importante para um confronto com situações que não imaginava terem existido? A resposta tem uma cidade principal: “As situações que mais me surpreenderam não estavam ligadas a um território específico, mas à mobilidade dentro do próprio Império. Muitos marginalizados deslocavam-se voluntariamente entre diferentes espaços imperiais, tendo Lisboa como destino final. Nas travessias transatlânticas, viam uma oportunidade de transformar a sua vida: embarcavam rumo à corte, não sabemos bem com que recursos, para apresentar pessoalmente as suas petições e reivindicar direitos diante dos oficiais régios. Foi precisamente Lisboa que mais me surpreendeu, uma cidade que acolhia indivíduos vindos dos confins do Império, que ousavam desafiar ou contrariar as decisões régias no coração do poder.”São várias as formas de se ser marginalizado desde a nascença, como o género e a cor da pele, mas não eram os únicos, como explica a historiadora: “A religião, o estatuto social e a posição familiar também moldavam a trajetória de cada indivíduo. Neste livro discute-se também como, mesmo entre pessoas que partilhavam características semelhantes, as oportunidades de protagonismo podiam variar de acordo com o lugar que ocupavam dentro da rede social. Ou seja, a identidade, o estatuto e até a própria perceção de si eram definidos não apenas por atributos «fixos», mas pelas relações estabelecidas no seu meio.”Se em Portugal e nos atuais países que se tornaram independentes após a Revolução dos Cravos, Marginalizados vem preencher vazios na historiografia, é impossível não perguntar a Agata Bloch sobre qual será o interesse na Polónia sobre estes seus estudos. Responde: “Diria que há três vertentes principais de interesse na Polónia relativamente a estes estudos. Em primeiro lugar, num país cuja história esteve fortemente marcada pelo sistema de servidão feudal, há uma atenção crescente às vidas das camadas mais baixas da sociedade. Não raras vezes, estabelece-se até uma comparação, ainda que com todas as diferenças, entre o servo polaco e o escravizado africano. Em segundo lugar, há o interesse comparativo. A antiga Polónia, isto é, a República das Duas Nações (1569-1795) muitas vezes descrita como um «império terrestre», é colocada em paralelo com o Império marítimo português, comparando ambições, formas de poder e experiências históricas. Tal como o Império português, era um estado multicultural com diversas minorias religiosas e étnicas. Por fim, a história da Polónia é também a história de migrações forçadas. Nas épocas das partilhas e das guerras, muitos polacos procuraram refúgio no estrangeiro, inclusive no Brasil. Daí surge a pergunta: quem eram os marginalizados polacos? Como foram vistos e tratados em outros contextos? Hoje, discute-se cada vez mais na Polónia temas ligados ao colonialismo e ao pós-colonialismo, e isso alimenta o interesse do público polaco pelo mundo lusófono em geral.” .MARGINALIZADOSAgata BlochEditora Parsifal 237 páginasOutras novidades literáriasRUÍDONão é necessário o leitor estar a regressar de férias de um local calmo para dar valor a esta História do Silêncio do historiador Alain Corbin. A sua linha de investigação encaminhou-se sempre para temas inesperados, como o da paixão pelo vento ou o medo e o fascínio pelos oceanos, entre outros temas que exigem abordagens diferentes das tradicionais. Neste caso, ocupa-se do valor do silêncio e, principalmente, do seu fim e da sua desqualificação como inspiração para a vida. .HISTÓRIA DO SILÊNCIOAlain CorbinQuetzal184 páginas INDEPENDÊNCIA DO BRASILJosé Bonifácio de Andrada não é figura muito conhecida em Portugal, mas na capa desta investigação do historiador José Theodoro Mascarenhas Menck surge o subtítulo que o colocou na história do Brasil: Patriarca da Independência do Brasil e Fundador da Nacionalidade. O seu percurso esteve muito ligado a Portugal, tendo sido professor na Universidade de Coimbra e, principalmente, à Europa, por onde andou durante quatro décadas, até regressar à colónia brasileira e assumir um importante papel junto de D. Pedro na sua independência em 1822. .JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADAJosé MenckTinta da China179 páginas.Os italianos foram protagonistas nos Descobrimentos, e não só com Colombo."António de Andrade na viagem ao Tibete chega a ir a Mana, que fica a 5600 metros. Usa astrolábio para medir"