António de Andrade nasceu em Oleiros em 1580. E em 1624 foi, como missionário, o primeiro europeu a visitar o Tibete. Este destino de ir para os jesuítas não é surpreendente para um jovem, naquela época, nesta parte em Portugal, pois não?Não, não é surpreendente porque Oleiros era uma povoação extremamente pobre, um território que não tinha grandes recursos. Era normal qualquer jovem, com a capacidade de ir além fronteiras, querer embarcar numa aventura destas. Seria, na época, o escape para os jovens mais aventureiros de Oleiros. Embarcar, em busca de um mundo novo, o Oriente ou o Brasil, era a forma dos mais jovens obterem essa oportunidade.Ou seja, sabem quando vão para o seminário dos jesuítas que o destino de vida provável é missionar além-mar?Sabem perfeitamente que vão ter uma missão, quer no Brasil ou no Oriente. A maioria seguia para Goa, pois era o centro da missão de evangelização oriental. No caso do António de Andrade, ele vai quase com 20 anos para a Índia. Embarca na nau de São Valentim, que é uma nau que ia transportar um dos vice-reis, Ayres de Saldanha, que ia tomar posse. E ele embarca juntamente com 19 padres e alguns irmãos, vão para Cochim e depois de Cochim fazem o trajeto para Goa. É em Goa que Andrade acaba os seus estudos, no colégio de São Paulo, que era praticamente o colégio que formava não só os nativos missionários da zona, de todo aquele Oriente, como também formava a elite da sociedade de Goa e de algumas ilustres famílias próximas também do território de Goa.E no caso do António de Andrade Trindade, ele forma-se em Goa. E depois tem esta oportunidade de ir com os jesuítas para a Agra, onde está a corte do imperador grão mogol, o grande soberano muçulmano da Índia naquela época. Isto significa que ele, de repente, passa de Goa, que apesar de tudo é uma comunidade luso-indiana, para o coração do poder indiano. Isso é essencial para depois ter a oportunidade de fazer a viagem ao Tibete?Ele era muito ambicioso e aventureiro, porque já em Oleiros o era, e para ir depois para os jesuítas teria mesmo que o ser. É em Agra que fica a saber que havia, para lá de umas montanhas muito altas, uma comunidade que não era parecida com o povo do Hindustão. Que havia, no fim daquelas montanhas, uma comunidade que não era daquela cor. E depois lá começa a relacionar-se com o poder, e começa a perceber que existe mesmo uma comunidade, para lá daquelas montanhas altíssimas, que ele designa como as montanhas mais altas do mundo, por isso o teto do mundo. Ele não se enganou porque tem cerca de 5600 metros, portanto são duas Serras da Estrela e mais um pedaço.Não são os picos mais altos dos Himalaias, mas é uma zona já de montanhas altíssimas.Na viagem, ele chega a ir a Mana, que fica a 5600 metros, e depois vai descer para o Planalto, que são 4600 metros, que é onde fica a cidade de Tsaparang. Mas, voltando à questão anterior, ele provavelmente deve ter ouvido lá em Agra muitas histórias, e ficou a saber que passavam lá peregrinações que seguiam para essas terras. E um dia, depois de ter saído de Agra em direção a Déli, juntamente com o Frei Manuel Marques, que era um compatriota também do interior de Portugal, de Mação, ele tenta disfarçar-se de mercador e ingressar nessa peregrinação que ia para Badrinath, que era um pagode, um templozinho, ali já quase a chegar a Mana, já no território que agora poderá ser do Nepal.Ou seja, o que eu li no seu livro De Oleiros ao Tibete - A epopeia do Padre Jesuíta António de Andrade é que ele aproveita uma viagem que o grão-mogol faz na direção de Lahore, mas em Déli separa-se da comitiva e faz-se passar por mercador. António de Andrade sabe persa, não é? Que é uma língua de cultura, a língua da corte, mas também a língua franca daquela época.Ele sabe persa até porque qualquer jesuíta na altura teria que o saber. Aprendiam muito as línguas da terra, porque estavam envolvidos nas comunidades há muitos anos. Aliás, qualquer jesuíta que estava presente em Ágra era provável que dominasse já a língua.Sim, portanto, falarem o persa ajudou também os dois portugueses nesse trajeto para o norte da Índia. Manuel Marques é importante nesta viagem sobretudo como parceiro?É um companheiro, como qualquer jesuíta, até porque a designação é Companhia de Jesus, não é? São companheiros, têm que atuar em grupo. E ter naquela aventura uma pessoa, um irmão, alguém que possa colaborar, ajudar, foi importante.Não se trata só do primeiro europeu que chega ao Tibete, mas na verdade dos dois primeiros europeus que chegam ao Tibete, ambos portugueses.A razão de ser o padre António de Andrade a ter maior protagonismo, é porque foi quem escreveu as Cartas a contar o Tibete e quem se tornou mais tarde o Provincial de Goa e quem dirigiu o colégio. E com toda essa cultura que ele já tinha, foi mais decisivo que Manuel Marques, até porque Manuel Marques quis desistir da viagem. E é António de Andrade que volta atrás e vai buscá-lo para continuarem a viagem juntos, quase já a chegar a Tsaparang. Ainda são cerca de três, quatro meses que eles demoram mais ou menos a chegar a Tsaparang.Para se orientarem usam o astrolábio?Usam o astrolábio e também o relógio de Sol. Porque os jesuítas dominavam o ensino da astronomia, dominavam o ensino da matemática, da geografia, das ciências. Se repararmos, quem dava formação a todos os pilotos e capitães dos navios, eram os jesuítas, no colégio de Santo Antão, atualmente o hospital de São José, em Lisboa, na designada "aula da esfera". Era nesse colégio que eram ministradas todas as disciplinas para formar os pilotos, que depois seguiam para as viagens, e não só pilotos portugueses.Os jesuítas, no fundo, eram homens de ciências?Eram homens das ciências. António Andrade só esteve um ano em Coimbra, nos jesuítas. Como ele tinha tanta vocação, tanto entusiasmo e era um indivíduo com tanto dinamismo, foi transferido para Lisboa, para o novo colégio que abriu, precisamente no ano a seguir a ele estar em Coimbra. Ou seja, ele veio para aqui com cerca de 17 anos e até aos 19 anos, estudou no colégio de Santo Antão. Provavelmente teve de estudar matemática, astronomia, aprendeu a utilizar todos os equipamentos que se usavam a bordo dos navios, nomeadamente o astrolábio, que era um instrumento de navegação. E é esse instrumento que ele vai utilizar juntamente com um relógio de Sol para se guiar, nomeadamente nas altitudes.Para saber a quantos metros, realmente, estava acima do nível da água do mar. Portanto, toda aquela descrição que vamos ter de que ele estava a quatro mil e que aquela aldeia, Mana, ficava a 5600, é tudo graças ao astrolábio.Ou seja, ele mede cientificamente a altitude a que está. Não é o que lhe dizem.É mesmo científico, porque já no mar também se faz para se precisar a distância a que estamos em relação a uma determinada estrela. Este método de navegação utilizado com o astrolábio, é o método que Andrade vai utilizar em terra.E quando eles chegam ao Tibete, à parte ocidental do Tibete, vão naquela expectativa de encontrar cristãos, não é?Sim.Mas não encontram cristãos, encontram budistas. Como é que é este choque?Ele não quer assumir que não encontrou lá cristãos. Até porque, se repararmos, eu descrevo isso no livro, a religião budista, os tibetanos, têm ali uma filosofia e têm uns templos culturais muito semelhantes aos cristãos. Os templos têm gravuras nas paredes e utilizam uma trilogi semelhante aos cristãos (o Pai, o Filho e o Espírito Santo). Portanto, há aqui algumas semelhanças. Mas depois compreendeu que realmente aquilo não era a sua religião.Mas consegue ter boas relações com os governantes do Tibete, porque inclusive é autorizado a fazer uma igreja, não é?Sim. Os guardas do povo tibetano descobrem que provavelmente dois mercadores estavam a chegar, porque há sempre uma forma de saber que vem a caminho, e fazem uma recepção à chegada aos dois. Depois descobrem que eles não trazem nada para trocar e a rainha fica um bocadinho decepcionada, mas o rei achou piada às histórias que ele ia contando e autorizou realmente a ficarem e a regressarem para construir uma missão cristã. Talvez o rei tenha achado interessante a comparação com a religião católica. O certo é que autorizou que António de Andrade criasse uma missão no reino de Guge, que durou 10 anos.As Cartas que António de Andrade escreve são realmente, até hoje, grandes documentos para conhecer o Tibete de há 400 anos?As Cartas que ele escreve são autênticos relatórios, não só de botânica, da fauna e da flora, como de geografia do próprio terreno e do clima. Também fala do tipo de costumes, das tradições, até da matança dos animais. Ele, à medida que vai descrevendo a viagem, vai observando tudo e faz sempre uma análise comparativa como era na sua terra, em Oleiros. Recordo-me, por exemplo, de alguns trechos em que ele diz que os tibetanos matam os cabritos de forma diferente de Oleiros, não os sangram, afogam-nos e o sangue deles espalha-se pela carne, dizem que é mais saborosa. Também faz a comparação das espécies de árvores de frutos que existem na zona de Oleiros e aquelas que existiam ali, nomeadamente o pêssego e o damasco, que vai aparecendo. Depois também diz a certa altura que os pinheiros são muito parecidos com os nossos.E quando diz que ele faz a comparação, fala mesmo de Oleiros, não é de Portugal em geral?Não, ele está a referir-se à terra dele. A comparar com terras que são mais íngremes e mais agressivas do que as montanhas em redor de Oleiros, que chegam os 900 metros.António de Andrade volta a Goa. Faz uma segunda viagem ao Tibete. É nomeado Provincial, são reconhecidos todos os méritos, mas em 1634 morre e é praticamente dado histórico que foi envenenado. Tem ideia porquê?Sim, a devassa diz que sim, que foi envenenado, e ele próprio reconhece que quando bebeu três golos pensando que era água, disse que tinha peçonha, que era o veneno. E ele assumiu que provavelmente um irmão, alguém dentro do próprio mosteiro, ou do colégio, o envenenou. Porquê? No ponto de vista mais popular, dizem que como ele era muito benevolente nos castigos que aplicava em nome da Inquisição. Isso causava desagrado junto dos companheiros e irmãos. Era da consciência de cada presidente de mesa aplicar menor ou maior castigo. E isso levava a que, nesse momento, não fosse bem vista a atitude dele nos tribunais do Santo Ofício. Eu tenho uma outra opinião, que escrevo aqui no livro, que é precisamente: tratar-se de um homem nascido em 1580, no ano da União Ibérica, Portugal e Espanha, com um mesmo rei, e Goa como centro da religião no Oriente. Ou seja, um Filipe a governar metade do mundo e a ter um português a governar outra metade do mundo, religiosamente.Ou seja, o Provincial Jesuíta de Goa era um homem muito poderoso.Era um homem muito poderoso, porque, desde o cabo da Boa Esperança até Nagasaki, no Japão, assumia toda a liderança da fé e da religião católica.O que temos certeza é que tinha inimigos.Tinha muitos inimigos. Poderá ter sido a benevolência dele, quando presidia aos tribunais do Santo Ofício, que levou realmente ao ódio dos próprios irmãos de igreja. Mas depois, também acho que ao nível político, os Filipes não o viam como muitos bons olhos. Porque era um português que dominava realmente todo aquele território. E não podemos esquecer que a Companhia de Jesus é uma companhia criada por um espanhol, Inácio de Loyola, não é? Portanto, é provável que o rei em Espanha quisesse ter um espanhol à frente da companhia, como provincial, e não um português.