Ricardo Adolfo era um dos poucos escritores portugueses contemporâneos sobre quem António Lobo Antunes tinha curiosidade e de quem disse sobre os seus livros a seguinte qualidade: “Uma maneira de falar completamente nova na literatura portuguesa”. Lobo Antunes era reticente nos elogios e era preciso regredir a Francisco Manuel de Melo (1608-1666), Luís de Camões (?-1580) ou Fernão Lopes (1385-1460), para destacar outros nomes na nossa literatura que lhe agradavam. A razão para escolher Ricardo Adolfo em detrimento dos cá de casa – Adolfo mora no distante Japão há mais de uma década – teria algum fundamento especial, que não justificava.O que faria de Adolfo o escolhido? E não é só do escritor que o é, pois existe uma corte de leitores que espera anos e anos por cada livro novo. Desta vez a história não é totalmente estranha para o leitor acostumado a ver filmes em que os yakuza e outros meliantes japoneses andam em luta pelos territórios da criminalidade. No entanto, se o pano de fundo não é original, a história contada já o é um muito mais. Afinal, reflete a ascensão das mulheres aos cargos mais altos das empresas criminosas de fachada por obrigação dos novos estatutos que as chefias impõem aos vários departamentos. Não só as mulheres são empoderadas, também há outras quotas a preencher, como todo o género de deficientes, que mostrem à direção que está em curso uma modernização das empresas dedicadas a extorquir dinheiro aos clientes a que emprestam, entre outras facetas empresariais.A protagonista é secretária do Chefe e irá competir com outros chefes pela direção de um departamento. Não é por acaso que Ricardo Adolfo escolhe esta temática: “Enquanto escrevia este livro, que demorou muito tempo pois andei uma década a pesquisar e mais dois anos até me sentir confortável com o resultado, a preocupação foi sempre a de como traduzir o meu dia-a-dia de trabalho e o dos outros e refletir sobre ele. Acho que a maior parte do livro é uma reflexão sobre a forma como trabalhamos, as coisas que fazemos e as que não fazemos, o que dizemos, as mudanças que queremos efetuar ou não. Há uma série de desafios nessas empresas, que tem muitas particularidades no caso de serem japonesas, mas que já traduzem em grande parte o que se passa no mundo corporativo em todo o mundo.”Diga-se que Ricardo Adolfo se dedica a um setor especial das empresas do país onde vive: “Os grupos de crime organizado que conheço da pesquisa feita - nunca trabalhei para eles - e que fazem parte da realidade diária pois sempre tiveram uma grande influência na sociedade japonesa, especialmente a seguir à II Guerra Mundial. Tiveram uma grande expansão entretanto, mas hoje estão a ser confrontados com outro tipo de desafios, porque as práticas que tinham no final do século passado já não são permitidas. Portanto, também eles, como organizações, estão a ser obrigados a mudar.”O que o autor considerou mais fascinante para ser o tema do romance foi o facto de muitos destes grupos representarem alguns dos valores mais tradicionais: “Só que a reação a esta nova modernidade força-os a mudar as suas práticas. Daí a ideia inicial do livro: é preciso ter mulheres em cargos de chefias e noutros papéis. Até nos gangues e no crime organizado, é necessário impor a diversidade e uma mudança em termos sociais e de mentalidade, ou seja, tem de haver uma consciência social e, mesmo estes criminosos, não podem ter os valores e formas de trabalho iguais aos de duas ou três décadas. Isso está a verificar-se em toda a Ásia, mesmo que no caso do Japão estas mudanças ainda sejam mais lentas.”Será que o facto de a narrativa se passar no Japão exige uma adaptação de termos, locais a atividades mais conhecidas dos leitores portugueses ou não é preciso essa preocupação? Adolfo considera que é necessário fazer certos enquadramentos porque, apesar de tudo, o mundo ainda não é todo igual. Daí que na fase de leitura, as responsáveis pela edição portuguesa lhe tenham pedido evitar situações muito específicas e que só são rotineiras para quem vive em Tóquio ou no Japão: “São situações difíceis de perceber e necessitam de algum contexto. Algumas, fazem sentido, outras são tão parte do dia-a-dia que quem está interessado numa história sobre o país, se tiver curiosidade, é só procurar na internet. Dou um exemplo: um dos personagens foi comer uma bifana… Para um português não há dificuldade, mas um japonês não percebe o que é uma bifana! São coisas dessas que foi preciso refazer.”A protagonista é feminina e jovem. Pergunta-se se é o género de protagonista preferido? Não nega: “Há uma maioria de personagens femininos porque acho que continuam a ser mais fascinantes. Neste caso, há muitos obstáculos e desafios que nunca seriam feitos a um personagem masculino; ou seja, há um combustível muito maior para a história. É uma personagem complexa e que numas vezes é tímida e noutras vezes não tem problema em matar alguém. A empresa em que trabalha lida com muitos casos de endividamento pessoal, que é um problema muito grande no Japão. Como trabalhei com muitas empresas esta é uma área que faz parte de uma realidade empresarial do dia-a-dia e uma realidade que conheço de alguma forma.” .A CHEFE DOS MAUSRicardo AdolfoCompanhia das Letras264 páginas Outras novidades literáriasO AMOR E O PSIQUIATRA (1)Daniel Sampaio tem vindo a escrever livros em que reúne o saber do seu passado profissional enquanto psiquiatra e a incursão na linguagem do romance, sendo que a cada volume vai penetrando no mundo do amor, no do “casamento”, do dia-a-dia, no das tragédias pessoais – com o da infeção por covid -, nas crises da adolescência, ou seja, em áreas separadas mas que têm um grande ponto de interceção: a humanidade. Neste novo livro, é uma radiografia ao amor de um casal homossexual e um retrato da sociedade em que estão (des)inseridos. .UM AMOR QUE NÃO SE DIZDaniel SampaioCaminho275 páginas O AMOR E O PSIQUIATRA (2)Todas as semanas o psiquiatra José Gameiro conta uma história no Expresso e o leitor já se acostumou à sua forma de narrar os casos de que se ocupa, com uma sensação de quem começa a ler a coluna sabe que não é capaz de abandonar a leitura sem chegar ao fim. Essa habilidade literária já reconhecida é posta à prova desta vez num trio de dois homens e uma mulher, que criam uma relação pouco habitual no sexo masculino e que atrai o leitor pelo inesperado de certas situações. .O OUTROJosé GameiroClube do Autor237 páginas.Tesouros nacionais. Coches e berlindas saem do Picadeiro Real e todo o cuidado é pouco... .O Nobel que diz tudo num parágrafo