Têm rodas, mas não foram pelo próprio pé. Os oito coches e berlindas em exposição no Picadeiro Real, em Belém, foram deslocados para o edifício principal do Museu dos Coches, do outro lado da rua. A mudança pode parecer uma operação simples, mas quando se trata de tesouros nacionais dos séculos XVIII e XIX, nada pode ser deixado ao acaso. Estes hipomóveis, viaturas de tração animal, tiveram de abandonar a morada habitual, um edifício de 1905, porque este vai ser alvo de obras de remodelação financiadas pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Para garantir que chegavam inteiros à oficina da estrutura principal do Museu, inaugurada em 2015, a diretora, Rita Dargent, chamou a ‘brigada’ do Laboratório José de Figueiredo (LJF), a entidade pública responsável pela conservação e restauro do património do Estado. .Filomena Rodrigues coordenou esta operação que envolveu 17 conservadores-restauradores do LJF de diferentes áreas de especialização - conservação preventiva, escultura/talha, metais, tecidos, pintura, fotografia - juntamente com Nuno Augusto, o único conservador-restaurador do Museus dos Coches. A operação envolveu também uma empresa de desinfestação, outra de transporte de bens culturais móveis e a GNR. As várias equipas estiveram a trabalhar em sintonia para que o transporte destes oito tesouros nacionais decorresse sem incidentes. Qual foi a grande preocupação dos conservadores-restauradores nesta operação? “No fundo, a estabilização para o transporte. Ou seja, uma intervenção mínima para assegurar que tudo o que está fragilizado, tanto quanto possível - porque há elementos que não são visíveis a olho nu -, chegue a bom porto. E isto passou por uma série de processos, como a criação dos patins que acompanham as rodas. Foram feitas várias versões, que têm também a ver com o edifício, era preciso que eles passassem. E, ao altearmos as rodas, criávamos um problema. Isto foi tudo ao milímetro”, diz ao DN Filomena Rodrigues. .Foi Tiago Dias, conservador-restaurador da área de escultura/talha do LJF quem desenvolveu os patins. Embora sejam verdadeiras “obras de arte sobre rodas”, os coches e berlindas há séculos que não rolam. “Estamos a tentar que todo o esforço seja feito nos carrinhos de transporte, que foram produzidos especialmente para esta operação, para garantir que o transporte seja o mais suave possível, sem esforço para a própria peça, porque os materiais estão bastante envelhecidos, e alguns já não cumprem a sua função”, diz ao DN, momentos antes da Berlinda dos Patriarcas, viatura de aparato do século XVIII, utilizada pelos Patriarcas de Lisboa, começar a ser deslocada.“Foi tudo planificado, vão estar quatro homens a puxar naquele sentido, vai haver uma cinta de travamento ancorada naquela máquina, que vai fazer com que a descida da rampa [pela qual é feita a saída do salão de exposição até à rua] seja o mais suave possível, com mais duas pessoas a controlar as cintas. Depois, durante o percurso, vai ser puxada por humanos, passámos de tração hipomóvel para tração humana. O papel do Laboratório neste percurso é mais de observação e garantir que a peça está a aguentar o esforço”..O processo começa e a berlinda desce a rampa, atravessa a rua com o apoio do polícia sinaleiro que controla o trânsito, e em pouco mais de dez minutos chega à ampla oficina do edifico principal do Museu dos Coches. Uma conservadora do LJF garante ao DN que a operação foi bem sucedida, não houve incidentes a registar. Logo a seguir, da mesma forma, sairá o coche D. Carlota Joaquina, do século XVIII. . Mas antes de serem deslocadas, as viaturas são pesadas, pela primeira vez na sua história, mas que se revelou ser necessário para avaliar se a rampa aguentaria a passagem. E foi para isso que foi chamada a GNR, munida do seu equipamento de pesagem de veículos pesados. As balanças retangulares foram colocadas debaixo de duas rodas e o aparelho ligado a elas ligado marcou 1700 quilos para o Coche D. Carlota Joaquina. Mas a viatura mais pesada já está na oficina do Museu dos Coches. Transportado nos dias anteriores, o Coche de D. Maria Francisca Benedita marcou as duas toneladas..A operação de deslocalização destes “tronos andantes” começou na passada sexta-feira, dia 10, e termina hoje, dia 17, com a mudança dos dois últimos tesouros nacionais, a Berlinda da Casa Real (1730-1750) e o Coche do Infante D. Francisco (1715). O transporte foi sendo feito de dois em dois dias e o DN acompanhou a operação na quarta-feira, dia 15. O trabalho de preparação começou muito antes, com a identificação das fragilidades de cada carro. “Do ponto de vista técnico, havia desafios em diferentes áreas. Por exemplo, naquela viatura que ali está [Coche de D. Maria Francisca Benedita], o tejadilho, a cobertura, estava toda a destacar-se. As colegas dos têxteis fizeram uma proteção, com tule e outros materiais, de forma a fixá-la. As cortinas, se olhar com atenção para elas, estão envolvidas em Melinex [filme de poliéster de alta qualidade]. E estão só apontadas, porque quando se pega nelas, desfazem-se”, diz Filomena Rodrigues. .O principal desafio foi mesmo preservar a estrutura das viaturas, por outras palavras, evitar que elas se desmoronassem. “Está a tocar no ponto. Tínhamos dois casos muito preocupantes. Por exemplo, os raios destas rodas, são rodas que estão sobrecarregadas. Isto são objetos móveis. E no seu dia-a-dia, museologicamente, eles estão parados. Isto cria problemas, tensões, forças que não são compensadas. Há vícios, há empenos que não se consegue corrigir. A grande preocupação é mesmo a questão estrutural”. Os conservadores restauradores retiraram dos hipomóveis todas as partes amovíveis que podiam cair, imobilizando e protegendo, com materiais próprios da conservação e restauro, as partes frágeis. Na chegada à oficina, procede-se ao desembalamento e depois entra em ação a empresa desinfestação, que colocará as viaturas numa bolha de anoxia. .“O processo de anoxia consiste na retirada do oxigénio no interior da bolha e na colocação de azoto. Vamos criar uma atmosfera modificada para garantir que todos os insetos, independentemente do estádio de vida em que se encontram, em larvas, fase adulta ou mesmo em ovos, acabam por morrer”, explica Rafael Pinho, responsável da empresa. Após 21 dias de tratamento, é possível abrir a bolha, explica o especialista. Contudo, estes tesouros nacionais vão permanecer na bolha pelos menos três meses. “Quanto mais densos os materiais orgânicos, mais demorado deve ser a anoxia. O caruncho já está habituado a viver nas profundezas da madeira, está habituado a uma certa falta de oxigénio. Por isso é importante que seja um período demorado para este tipo de viaturas. Quanto mais longo, melhor”, explica Nuno Augusto, conservador do museu. "Como nós não temos nenhum plano para já de intervenções de conservação e restauro ou para exposição, é o que eu vou pedir aos colegas da EXPM. Para eles é indiferente se fica três meses, se fica seis, um ano"..Nuno Augusto sublinha a complexidade de uma intervenção de conservação e restauro neste tipo de património. "Estas viaturas têm uma complexidade técnica e material muito grande. Se olhamos para um simples coche, temos aqui talha, madeiras, pintura, cabedais, metais, vidro, têxteis. É necessário um conservador-restaurador especializado em cada uma das áreas, e conjugar uma equipa complexa e extensa como esta não é fácil". A diretora do Museu dos Coches, Rita Dargent, diz que será aproveitada “a excelente conjuntura” para intervenções nalguns carros, mas admite que para já não há plano, calendário ou financiamento para uma campanha de conservação e restauro de grande fôlego. “Não queremos criar falsas expectativas, sabemos que são bens que precisam muito de ser intervencionados, e preservado o seu esplendor, mas não consigo prever. Sabemos que no curto prazo vão ficar três meses dentro destas bolhas de anoxia”.As obras de requalificação do Picadeiro Real, com os seus dois salões, vão custar 5,4 milhões de euros, financiados pelo PRR. “A nossa intenção é libertar todo o edifício, que vai para obras de remodelação, de restauro de todas as pinturas, pinturas do teto, mas também pinturas parietais, de revitalização e melhoramento de tudo o que são acessibilidades, novo elevador, novas casas de banho, entradas e espaços de acolhimento ao público", diz Rita Dargent."Vamos também transportar os restantes bens. Pintura, arreios, estribos, telizes, manequins, arcas, por aí fora. Tudo o que temos no Picadeiro em bens musealizados vem para cá, ficou à minha responsabilidade", adianta Nuno Augusto. O projeto de requalificação do Picadeiro Real é do arquiteto Pedro Vaz, que pertence à secretaria-geral da Presidência da República. Ele explica ao DN que inicialmente o projeto previa apenas a modernização das casas de banho e do elevador, um investimento de 500 mil euros. Mas que foi possível deslocar verbas de outros investimentos do PRR, tendo a ação do anterior secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, Hélder Reis, sido determinante para isso. .Ainda não há data, mas quando o edifício reabrir, será com um projeto museográfico renovado. "O espaço museológico vai manter-se, gostaríamos que tivesse também uma sala dedicada à Rainha D. Amélia, fundadora do museu, que este ano faz 160 anos. Este ano é um ano em que temos muitas datas a celebrar: também são os 120 anos de inauguração do edifício, em 1905, do antigo Picadeiro Real como museu dos coches, o primeiro museu do mundo de coches. Esta é a coleção mais emblemática em todo o mundo, porque reúne, não só muitas tipologias, mas também pelo valor patrimonial e histórico dos bens e pela abrangência temporal muito grande", sublinha Rita Dargent.Além da sala dedicada à Rainha D. Amélia, a diretora do Museu dos Coches gostaria de dar mais destaque ao património equestre de Portugal. "A Arte Equestre Portuguesa foi elevada a património imaterial da humanidade, no final do ano passado. E como temos aqui muito acervo equestre, eu gostava também muito que no antigo picadeiro houvesse algumas salas, onde eram as antigas reservas, dedicadas ao património equestre. Porque nós temos atavios, arreios, muito acervo documental, e isso tem de sair das reservas, tem de vir cá para fora ser exposto". .Como coches de 200 anos voltam à rua, mas sem tocar o chão? Veja a operação realizada pelo Museu Nacional