Julian Fellowes pode enfim descansar. Depois de uma série de seis temporadas e três filmes estreados no cinema (este último já sem a presença da matriarca Maggie Smith), o título Downton Abbey parece ter encontrado o momento justo para se despedir; isto sem cair na tentação dos exageros de pompa ou postura sentimental. Ainda responsável pelo argumento, o criador dessa série transmitida entre 2010 e 2015, um dos maiores sucessos da televisão britânica, encerra então um capítulo magno, apetece dizer, com a sabedoria e sentido prático de quem não tem tempo a perder - por esta altura, está a braços com outra série americana, The Gilded Age. Daí que Downton Abbey: Grand Finale, agora em estreia, surja como isso mesmo: uma despedida plena de emoções brandas e souplesse, feita para responder ao imperativo do fechar da cortina.E é precisamente com uma entrada “teatral” que somos recebidos. Ou melhor, no interior de um teatro, e seus bastidores, alguns membros da família Crawley conhecem Noël Coward, personagem que acaba por ser uma das notas alegres desta derradeira aventura aristocrática - ou não se ficcionasse aqui, noutra cena do filme, a ocasião em que o ilustre dramaturgo e compositor terá colhido inspiração para uma das suas mais célebres peças, Private Lives... Ambientado na década de 1930, Downton Abbey: The Grand Finale será, de resto, o espelho de uma sociedade e de um tempo demasiado presos a marcações de palco: no centro do drama está o divórcio de Lady Mary (Michelle Dockery), que a torna proscrita na elite, enquanto a visita de um tio americano (Paul Giamatti) vem sublinhar as questões financeiras que ameaçam a propriedade, impondo-se um ar de mudança na tradição familiar.Claro que, no meio das atribulações da aristocracia, também se espreitam as passagens de testemunho dos criados, naquela bonomia que Fellowes sempre trabalhou com precisão de relógio. E nesse quadro total, este terceiro filme consegue, não só versar sobre a nostalgia, sem excesso de ornamentação, como corrigir o ritmo narrativo que, no anterior Downton Abbey: Uma Nova Era, dava a impressão de “episódio longo”, em vez de filme “com o espírito de”. O que é uma melhoria notória, tratando-se do mesmo realizador, Simon Curtis.Elogio do passadoMuito se pode perorar sobre a inutilidade de séries e filmes como Downton Abbey, mas a verdade é que a instituição criada pelo veterano Julian Fellowes, com demasiado chá para uns e o suficiente para outros, representa um modelo infelizmente obsoleto. Aqui está uma impecável forma de navegar o humor britânico e o progresso dos códigos sociais, com elegância e diálogos afinados.Como se ouve uma personagem dizer a certa altura, “o passado é um lugar mais confortável que o futuro”. E, de facto, a marca da escrita de Fellowes - ele próprio um descendente da aristocracia britânica - passa por essa insistência na recriação do passado como um lugar de textura suave, onde aquilo que hoje nos parece uma anedota (exemplo: o tal escândalo por divórcio) é contado com gravidade apenas justa, de maneira a priorizar o gosto vintage e o prazer de habitar uma época em permanente tensão entre o velho e o novo.Quando Hugh Bonneville, ator que se tornou o rosto da série (juntamente com Maggie Smith e Elizabeth McGovern), se despede de Downton Abbey colocando a mão na parede do castelo, para sentir a história inscrita naquela pedra, não está apenas a fazer um gesto bonito e simbólico para a câmara. Há realmente vida nesse toque de despedida, mais do que poderemos saber, claro, e uma vontade de partir, na consciência de que o melhor da ficção televisiva “de conforto” se produziu naquele espaço de relação privilegiada com o passado. .Natália Correia em forma de puzzle