Algumas sinopses têm utilizado a expressão “documentário ficcionado” para apresentar o filme A Mulher que Morreu de Pé, sobre a escritora Natália Correia (1923-1993), a partir desta quinta-feira, dia 11, em várias salas do país. Expressão sugestiva, sem dúvida. Seja como for, vale a pena refletir sobre a sua calculada ambivalência.Não será que qualquer documentário é inevitavelmente “ficcionado”? Porquê? Porque a realidade que é documentada não se oferece numa transparência imaculada e unívoca, como se só fosse possível filmá-la de “uma” forma única e, por assim dizer, compulsiva - em boa verdade, uma boa parte dos documentários de raiz televisiva nasce dessa ilusão, do seu infantilismo cognitivo, por vezes da sua demagogia narrativa.Rosa Coutinho Cabral, argumentista e realizadora de A Mulher que Morreu de Pé, conhece as atribulações de tal ilusão e não esconde que o retrato que nos propõe é “a minha Natália”. E não apenas porque ela própria vai pontuando as imagens, através de uma presença com tanto de físico como de fantasmático. Sobretudo porque o imenso e fascinante puzzle da vida e da obra de Natália Correia resiste a qualquer abordagem banalmente descritiva ou hagiográfica.O estratagema adotado parte de um desafio envolvente, mesmo quando podemos sentir que algumas das cenas que vai gerando se ficam, talvez inevitavelmente, por um efeito esquemático ou redundante. Assim, A Mulher que Morreu de Pé desenvolve-se através de uma ficção, justamente, em forma de casting. Que se procura? Pois bem, alguém (mulher ou homem) que interprete Natália Correia no interior de uma evocação biográfica em que os materiais de arquivo, para lá de verdadeiras provas de vida, surgem também como peças vivas de uma narrativa potencialmente infinita - tão infinita como a complexidade ética e estética do legado de Natália Correia.Eis, assim, um filme que se liberta (e nos liberta) da preguiça televisiva que gosta de “vender” a história plural da nossa cultura como uma antologia de figuras santificadas por uma simplificação beata das nossas contradições. Daí a vibração muito especial das imagens televisivas de Natália Correia, testemunhando, afinal, um tempo em que a democracia mediática ainda não tinha cedido aos horrores da Reality TV e coisas afins.Daí também que A Mulher que Morreu de Pé, evocando a sua visão apaixonada do 25 de Abril, não esconda o profundo desencanto com que Natália Correia analisou alguns dos respetivos desenvolvimentos políticos e simbólicos, numa palavra, culturais. O que justifica um reparo pedagógico: quando algum político surgir no pequeno ecrã a celebrar o modo como o cinema nos faz pensar, esperemos que pense nisso.