Eis um ciclo de cinema cuja designação concilia uma palavra e uma canção. A palavra, “malamor”, provém de um neologismo de Carlos Drummond de Andrade num poema intitulado Amar (“amar e malamar”); a canção, Tainted Love, é um clássico da soul, gravado por Gloria Jones em 1964, popularizado no início da década de 80 pelos Soft Cell. O ciclo chama-se, assim, Malamor / Tainted Love e resulta de escolhas de dois cineastas, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata - acontece na Cinemateca Portuguesa, em 25 sessões, ao longo de setembro e outubro, e também, numa versão abreviada, na Filmoteca Española, em Madrid. O acontecimento decorre do modelo Realizadores Convidados, já posto em prática pela Cinemateca com autores tão diversos como Pedro Costa, Mark Rappaport ou Albert Serra. Trata-se de organizar uma verdadeira câmara de ecos entre os filmes do(s) convidado(s) e outros títulos que, por razões temáticas, estéticas, simbólicas ou tão só afetivas, com eles possam dialogar. Neste caso, o panorama é tanto mais interessante quanto João Pedro e João Rui não são, de facto, coautores de todos os seus filmes, sendo possível encontrar várias formas de colaboração, com assinaturas conjuntas ou individuais - vale a pena referir que na sua conta de Instagram se identificam como “the_joaos”.O programa contextualiza a diferença de tal unidade (ou a unidade dessa diferença), começando por lembrar que João Pedro sempre foi um espetador assíduo da Cinemateca: “Era, portanto, necessário dar-lhe a oportunidade de retribuir, em forma de programação, a confiança que demonstrou ao longo dos anos por esta casa. Naturalmente, o convite estendeu-se a João Rui Guerra da Mata, seu colaborador e companheiro, cujos gostos e cinefilia complementam de forma provocadora o olhar de João Pedro Rodrigues.”Daí que cada sessão surja como um evento organizado a partir de um jogo de espelhos que é, afinal, um exercício plural, pedagógico e sensual, de cinefilia: os filmes refletem-se entre si, de alguma maneira iluminando a sua própria história. Exemplo cristalino é a junção de duas curtas-metragens numa mesma projeção: Parabéns! (1997), de João Pedro, com João Rui a interpretar o papel central, e O Que Arde Cura (2012), com as funções “trocadas”, isto é, João Rui como realizador, João Pedro como ator. A primeira destas curtas foi rodada na casa dos cineastas, enquanto a segunda “reproduz” essa casa em estúdio, sem esquecer que a mesma casa já servira de cenário a Corte de Cabelo (1995), de Joaquim Sapinho, longa-metragem que, por isso mesmo, completa o alinhamento da sessão.Os filmes remetem, assim, para uma intimidade cinéfila pontuada por filmes que passaram a pertencer ao imaginário do próprio casal - exemplo emblemático será o seu musical de eleição, Une Chambre en Ville (1982), de Jacques Demy (que João Pedro descobriu num ciclo da Cinemateca, em 1983, numa sessão com a presença do próprio Demy), a par de Um Quarto na Cidade (2021), uma correalização com imagens filmadas em Super8. Citando de novo o programa do ciclo, esta não é apenas “uma relação com o cinema”, mas sim “uma relação através do cinema”. . “Sem antes nem depois”Para lá da presença de obras de realizadores como John Waters, Derek Jarman ou Johnnie To, este é também, por tudo isso, um universo em que se refaz, literalmente, a memória do próprio cinema. Afinal de contas, “the_joaos” são autores de Onde Fica Esta Rua? (2023), filme de revisitação e reinvenção de um clássico do Cinema Novo, Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, alheio a qualquer determinismo sociológico, observando-o como um objeto que se libertou das amarras do tempo - aliás, o título completo é Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois.Sem Antes Nem Depois é também o título de uma instalação vídeo gerada, justamente, a partir desse filme dedicado a Os Verdes Anos, patente na Sociedade Nacional de Belas Artes (do outro lado da rua Barata Salgueiro) até 10 de Outubro. Entretanto, a BoCa Bienal de Artes Contemporâneas, colaboradora deste ciclo, encomendou um novo filme à dupla: intitula-se 13 Alfinetes e será apresentado no encerramento do programa, nos dias 15 e 23 de outubro, respetivamente em Lisboa e Madrid..Natália Correia em forma de puzzle.O elegante adeus a Downton Abbey