Alguns dos costumes do judaísmo foram adotados pela cultura crioula de São Tomé.
Alguns dos costumes do judaísmo foram adotados pela cultura crioula de São Tomé.GERARDO SANTOS

O caso dos meninos judeus que D. João II enviou para São Tomé

No final do século XV, o mito da boa convivência religiosa nos reinos peninsulares desvaneceu-se. Um dos episódios mais cruéis é a retirada de cerca de 2000 crianças judias aos pais.
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De D. João II, que a História consagrou como “Príncipe Perfeito”, conhece-se a vontade que não admitia contestação. No âmbito da sua política ultramarina, terá decidido enviar cerca de 2000 crianças e adolescentes de origem judaica para a ilha de São Tomé, depois de separadas dos pais e batizadas à força. Corria o ano de 1493 e o episódio, que se tornaria um dos mais cruéis da história da expansão portuguesa, será em breve evocado num filme que está a ser produzido pela comunidade Judaica do Porto (que, em 2024, já apresentou um documentário de animação sobre o massacre de Lisboa de 1506).

Mas quem eram estas crianças? Segundo nos diz a historiadora Susana Mateus, investigadora do Centro Interdisciplinar de História, Cultura e Sociedades da Universidade de Évora e da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste da Universidade de Lisboa: “Eram sobretudo filhos de famílias que tinham passado por Portugal, na sequência do édito de expulsão de judeus de Castela e Aragão, em 1492. Não sabemos exatamente o número de pessoas que vieram nessas circunstâncias, mas sabemos que o número era muito significativo.

Na sequência desses acontecimentos, as judiarias das cidades portuguesas aumentaram muito de população, o que naturalmente gerou conflito social e tensão.” A autorização de entrada concedida por D. João II, mediante o pagamento de dois cruzados à Coroa, tinha, no entanto, um prazo de validade: o salvo-conduto extinguia-se ao fim de oito meses. A partir daí, os judeus poderiam viajar para outras paragens, mas o rei só lhes permitiu embarcar em navios com destino a Tânger e a Arzila. Alguns fizeram-no, mas acabaram por regressar a Portugal depois de terem sido maltratados e roubados pelos residentes dessas praças.

O envio dos meninos para a longínqua ilha de São Tomé seria eternizada pelo rabi Samuel Usque, judeu português que o relata no livro Os Sofrimentos e Tribulações de Israel (publicado em 1553), onde também se refere que, perante a inevitabilidade da deportação, muitos pais passaram às crianças a importância de continuar a observar o judaísmo. Com efeito, apesar dos esforços dos padres católicos, algumas dessas crianças mantiveram-se fiéis à religião dos pais, de tal forma que alguns dos costumes e tradições dessas culturas foram adotados pela cultura crioula das ilhas. No início do século XVII, ou seja mais de 200 anos após estes acontecimentos, o bispo católico de São Tomé, Pedro da Cunha Lobo, ainda se queixava do “problema do judaísmo” na ilha.

“Não creio que fossem enviadas para morrer”, afirma a historiadora Susana Mateus. “Estamos é perante aquilo a que podemos chamar uma engenharia populacional por parte da Coroa. Estas crianças, que estavam ao cuidado do capitão donatário de São Tomé, Álvaro Caminha, iam acompanhadas por escravos e por um grupo de prisioneiros degredados por crimes civis.” A elevada mortalidade que se abateu sobre estas crianças nos primeiros tempos passados na ilha, ficar-se-ia a dever, segundo esta historiadora, “à dificuldade de adaptação a um clima tropical, com que a Medicina da época não sabia lidar.”

Entretanto, na Península Ibérica, o ambiente era cada vez menos propício à liberdade religiosa. Já no reinado de D. Manuel I (cunhado e sucessor de D. João II), o acordo de casamento do rei com a infanta Isabel de Castela, filha dos reis católicos previa nas suas cláusulas a expulsão dos judeus e muçulmanos de Portugal, o que o rei foi obrigado a aceitar. Mas Susana Mateus considera que a atuação de D. Manuel foi “um pouco ambígua”, procurando, por todos os meios (desde as conversões forçadas em massa aos obstáculos ao embarque), que estes não saíssem do reino, conforme lhe fora recomendado por alguns membros do seu Conselho. Em causa estava a mais do que previsível fuga de capitais.

Mas os acontecimentos precipitaram-se. “O que acontece, depois da instituição da Inquisição castelhana é que há uma disparidade muito grande entre os dois reinos. Aqui não tínhamos inquisição, e havia mesmo judeus em cargos importantes, em Espanha eles eram perseguidos.” Susana Mateus considera que “até ao massacre de Lisboa, em 1506, há uma política de D. Manuel para promover casamentos mistos, tentando, de alguma forma, diluir o chamado sangue judeu através da integração na sociedade portuguesa, já que se acreditava que a religião era transmitida por via genética”. Mas o massacre de 1506, com a sua violência inaudita, demonstrou da pior maneira que a integração dos judeus na sociedade portuguesa não acontecera: “Apesar do Rei ter sido exemplar na punição dos culpados e da própria cidade de Lisboa por tão terríveis acontecimentos, o primeiro pedido a Roma para o estabelecimento da Inquisição em Portugal será feito ainda no reinado de D. Manuel I, em 1515.

Esta chegaria já no reinado do seu filho, D. João III, em 1536, e ficaria por mais de 200 anos, marcando de forma trágica e profunda a sociedade, tanto em Portugal continental, como nas possessões ultramarinas.

Alguns dos costumes do judaísmo foram adotados pela cultura crioula de São Tomé.
"Portugueses emocionam-se na Batalha por aqui estarem sepultados protagonistas maiores da nossa História”
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