"Portugueses emocionam-se na Batalha por aqui estarem sepultados protagonistas maiores da nossa História”
Rui Miguel Pedrosa / Global Imagens

"Portugueses emocionam-se na Batalha por aqui estarem sepultados protagonistas maiores da nossa História”

Joaquim Ruivo, à beira de jubilar-se ao fim de 12 anos como diretor, falou com o DN sobre o “seu” Mosteiro de Santa Maria da Vitória.
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Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ou Mosteiro da Batalha, como é popularmente conhecido. Este monumento celebra a vitória sobre Castela, na Batalha de Aljubarrota. Estamos a falar de um episódio central da História de Portugal.

Absolutamente central e decisivo na História de Portugal. É impressionante. Esta batalha enfraqueceu definitivamente as pretensões castelhanas de uma monarquia dual, num contexto de uma crise global que se instalou na cristandade ao longo da segunda metade do século XIV. A crise nacional de 1383-85 e a Batalha Real (ou de Aljubarrota) integram-se nessa conflitualidade geral europeia, a chamada Guerra dos Cem Anos, em que duas casas reais, a dos Valois, na França, e a dos Plantagenetas, na Inglaterra, lutam por se superiorizar, arrastando outras monarquias ocidentais. Não admira, portanto, que na Batalha da Aljubarrota D. Juan I de Castela tenha tido o auxílio dos franceses e D. João I de Portugal o apoio dos ingleses. E, nessa mesma altura, o Grande Cisma do Ocidente dividia a cristandade entre dois papados: o de Roma e o de Avinhão. Castela estava pelo papa da Avinhão e Portugal (se identificarmos Portugal com D. João I e os seus apoiantes) pelo papa de Roma. Mas esta batalha pode representar um momento decisivo onde, talvez pela primeira vez na História do reino de Portugal, se possa observar com alguma certeza um fulgor identitário e independentista. Esta Batalha Real correspondeu ao princípio do fim de uma crise sucessória, após a qual o governo do reino cairá nas mãos de uma “nova geração de gentes”, no dizer de Fernão Lopes. Uma geração que em breve se motivará pelas conquistas e descobertas além-mar e que levará o reino de Portugal a erguer-se como Império.

Quem tem a ideia da construção do Mosteiro? E o que o distingue em termos de arquitetura?

A ideia é de D. João. Na véspera da batalha, D. João promete a N.ª Sr.ª a construção de uma “casa de oração” em caso de vitória contra os castelhanos. Logo no ano seguinte, em 1386, a promessa está a ser cumprida. Num vale fértil e abundante em água, mas desabitado, chegaram os primeiros trabalhadores. Na realidade, os primeiros habitantes de um povoado que está na origem da vila da Batalha. D. João I entendeu que esta “casa de oração” deveria ser, nas palavras de Frei Luís de Sousa, “a maior que até então se tivesse construído em toda a Hispania”. E as razões parecem óbvias: D. João I quer também legitimar-se de pleno direito aos olhos do reino e da cristandade, vinculando-se a uma vitória conseguida com intercessão divina. Uma legitimação que exige um empenho redobrado, porque D. João I, para uma parte da nobreza, não deixa de ser um bastardo de D. Pedro. O Mosteiro de Santa Maria da Vitória, por ser um empreendimento real, tem garantidos meios e recursos espantosos para a época. Construído de raiz, o Mosteiro virá a representar um sinal de mudança na arquitetura portuguesa. Durante 150 anos tornou-se o grande estaleiro de inovação artística e arquitetónica do reino. Primeiro com mestre Afonso Domingues e, depois, a partir de 1402 até 1438, com o catalão Huguet. E ainda hoje o visitante, ao percorrer o Mosteiro, pode ter essa certeza: tudo o que possa ver foi novo e inovador na arte e arquitetura do seu tempo. Mais ainda: a Sala do Capítulo, com os seus 20 por 20 metros, com uma única abóbada, sem pilar central, foi um dos maiores desafios técnicos da engenharia desse tempo em toda a Europa. Algo que um dos desenhos de Villard de Honnecourt já parece idealizar por volta de 1250, mas só aqui conseguido com Huguet, quase 200 anos depois. Por vezes esquecemos que o Mosteiro da Batalha também foi estaleiro da modernidade no alvor do séc. XVI com Mateus Fernandes, que aqui experimentou o seu “ideário manuelino” em várias obras. E os primeiros vitrais fabricados em Portugal, há que lembrar, foram-no na Batalha, na primeira metade do século XV, com a contratação de Mestre Luís o Alemão.

Para a Dinastia de Avis este Mosteiro é tão importante que D. João I e os filhos tiveram de ser aqui sepultados. Camões n’Os Lusíadas chamou aos filhos de D. João I e Filipa de Lencastre a “Ínclita Geração”. Quer explicar quem foram?

Para além de D. João I e D. Filipa de Lencastre, na Capela do Fundador foram sepultados os infantes D. Fernando, que após um cativeiro de sete anos, na sequência do desastre de Tânger, morreu como mártir; de D. João, que foi 3.º Condestável do Reino e administrador da Ordem de Santiago; de D. Henrique, administrador da Ordem de Cristo e um dos grandes impulsionadores dos Descobrimentos; de D. Pedro, que foi regente do reino após a morte de seu irmão, o rei D. Duarte, mas que os enredos da Corte acabaram por conduzir a um conflito direto com o seu sobrinho e genro, D. Afonso V, tendo morrido ingloriamente na Batalha de Alfarrobeira, em 1449. No Mosteiro está ainda sepultado o rei D. Duarte, num túmulo que até aos anos 30 do século XX se situou na Capela-Mor da Igreja, mas que hoje se pode visitar no Panteão por si encomendado, mas nunca terminado e, por isso, chamado de Capelas Imperfeitas. Foram ainda sepultados no Mosteiro da Batalha, na Sala do Capítulo, D. Afonso V e a sua esposa a rainha Isabel, o seu neto, o jovem príncipe Afonso, morto tragicamente numa queda de cavalo aos 16 anos e, ainda, D. João II, numa das capelas laterais da Igreja. No final do séc. XIX os seus restos mortais foram trasladados para novos túmulos na Capela do Fundador, onde repousam até hoje junto da Ínclita Geração.

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A chamada Capela do Fundador é a grande atração do mosteiro?

A Capela do Fundador é de visita obrigatória. Aí, ao centro, o túmulo conjugal de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, nos arcossólios da fachada sul os túmulos dos Infantes, bem como, na fachada poente, em túmulos do século XIX, imitando os primitivos, os reis D. Afonso V e D. João II e o príncipe Afonso. Esta capela emociona. Para os portugueses, em primeiro lugar, emociona por se saber que ali estão sepultados protagonistas maiores da nossa História, que todos conhecem. Também para todos os visitantes, porque sobressai a arquitetura e decoração da Capela, inovadora no seu tempo, com o seu octógono central fechado por uma abóbada estrelada de oito pontas. A luminosidade da Capela, inundada do colorido dos vitrais (a que se juntou em tempos a policromia de abóbadas e túmulos pintados), acrescentam uma ambiência única e especial.

Como se explicam as Capelas Imperfeitas?

Trata-se de uma encomenda de D. Duarte, ainda a Mestre Huguet. D. Duarte quis também construir para si e seus descendentes um novo Panteão. A primeira vicissitude foi a de a morte de D. Duarte coincidir com a de Mestre Huguet, em 1438. O projeto foi-se arrastando, sem ser finalizado. Com D. Manuel parece haver o impulso decisivo para a sua finalização, com a reformulação do projeto inicial, dando-lhe uma maior monumentalidade e onde se destaca o pórtico monumental de Mateus Fernandes, a grande obra-prima do manuelino. Mas os Jerónimos rapidamente se tornam a obra real por excelência e, na mesma altura, o estaleiro do Convento de Cristo também se sobrepõe ao do Mosteiro da Batalha. Com D. João III ainda se inicia a construção de um balcão renascentista, da autoria de João de Castilho, mas, sobretudo após 1540, a época é de crise. Manter o Império está a revelar-se um empreendimento deficitário, a caminho - diríamos nós hoje - da bancarrota. Faltam meios para custear obras que deixaram de ser prioritárias. E o Panteão de D. Duarte, por todos estes motivos, nunca será terminado.

Também devemos à Dinastia de Avis o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém, que com o Mosteiro da Batalha são os monumentos mais visitados. São os três de facto os mais emblemáticos da História nacional?

São os chamados Monumentos Pátrios, na designação de Alexandre Herculano. Os mesmos que precocemente, antes de todos os outros, obtiveram logo em 1907 o estatuto de Monumento Nacional. Foram muito valorizados, tanto pela monarquia da segunda metade do séc. XIX como depois com o Estado Novo, num contexto ideológico marcado pela exaltação dos símbolos pátrios e valores nacionais. E na realidade essa exaltação até tem todo o sentido sob o ponto de vista artístico e arquitetónico. Não é por acaso que estes monumentos, conjuntamente com o Convento de Cristo e o Mosteiro da Alcobaça, foram incluídos nos anos 80 na Lista do Património da UNESCO, reconhecendo-os como obras de valor universal e excecional.

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Recorda-se da sua primeira visita ao Mosteiro da Batalha?

Talvez a foto que meu pai me tirou nas Capelas Imperfeitas me origine a lembrança de uma visita ao Mosteiro, teria aí uns quatro anitos. Uma lembrança que talvez não existisse não fosse a foto. Mas tenho boa memória das visitas a partir dos sete anos, que eram frequentes, até porque morávamos perto de Leiria e o meu pai era professor de História.

Como foi para si, também professor de História, dirigir um monumento tão importante? Que marca pessoal quis deixar?

Foram 12 anos excecionais na minha vida profissional e pessoal. Muito gratificantes e enriquecedores. Durante 12 anos não me lembro de um único dia em que tenha entrado no monumento desmotivado, sem vontade de trabalhar. Muito devo ao grande profissionalismo de toda a equipa de colaboradores e ao ambiente de trabalho colaborativo e de confiança. O fundamental foi garantir a execução de um programa de conservação e requalificação prioritário, continuado e coerente. Procurei dinamizar um programa cultural de qualidade, garantir um relacionamento e envolvimento direto com a comunidade próxima e com as suas forças vivas, bem como criar parcerias nacionais e internacionais no âmbito da investigação e na área artística. Empenhei-me fortemente na revalorização de um projeto de mediação cultural, sobretudo através do Serviço Educativo, dando prioridade ao encontro com novas gerações. Promovi a ligação com instituições universitárias e institutos de investigação de renome, que possibilitaram uma investigação de topo, tanto nas ciências sociais como nas geociências e engenharia. Os desafios, contrariedades e dificuldades são permanentes nestes cargos, mas fica também esta minha certeza, talvez um pouco imodesta, de uma dedicação plena, com sentido de missão e de serviço público.

Recorda-se de algum visitante ilustre, nacional ou estrangeiro, que tenha ficado maravilhado com este monumento?

Até há 20 anos, o Mosteiro da Batalha, entre outros, era de visita obrigatória para todos os grandes estadistas e dignitários. Hoje em dia as visitas protocolares ficam-se por Lisboa e pouco mais. A rainha Isabel II, o papa Paulo VI, o rei Juan Carlos, Kofi Annan, são visitantes que ficaram na memória dos funcionários ou das gentes da terra, por exemplo. Por aqui passaram, sempre se deslumbrando. Os Presidentes da República de Portugal, entre os quais se destaca o atual, são presenças regulares por motivo de participação nas comemorações anuais da Batalha e La Lys e do Dia dos Combatentes, em abril. No meu tempo tive oportunidade de receber historiadores insignes, prémios Nobel de várias áreas da investigação e até da Literatura, presidentes da República de nações europeias, ministros e embaixadores de muitas nações do mundo, a maioria em visita oficiosas, já para não falar em jornalistas, atores, artistas plásticos, músicos, cineastas. A Madonna filmou aqui um videoclip, por exemplo. Curiosamente o último primeiro-ministro de Portugal que aqui esteve em visita oficial foi António Guterres, o que também diz muito da cultura institucional da atual geração de políticos.

Uma pergunta final, ao professor de História: em 2043, Portugal celebra 900 anos. Se tivesse de escolher três grandes reis, D. João I seria sempre um deles?

Obrigo-me a escolher quatro reis e um regente. D. Afonso Henriques, D. Dinis, D. João I, por razões óbvias. Mas há que falar de D. Pedro, filho de D. João I, regente, protagonista maior da nossa História e cuja figura foi ofuscada injustamente pela historiografia, preterido em favor do seu irmão, o Infante D. Henrique. E finalmente, D. João II, também aqui sepultado. Não sem razão, conta-se que a rainha de Castela, Isabel a Católica, quando soube da sua morte terá afirmado: ‘Murió el Hombre!’.

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