Em 2018, o cineasta romeno Bogdan Muresanu (nascido em Bucareste, em 1974) adquiriu uma inusitada projeção internacional graças a The Christmas Gift, eleita melhor curta-metragem nos Prémios do Cinema Europeu (além de outras distinções em diversos festivais). Era o retrato burlesco de uma família cujo filho escrevia uma carta ao Pai Natal pedindo que ele satisfizesse o desejo do pai. A saber: a morte do ditador Nicolae Ceausescu... Seis anos depois, Muresanu “ampliou” The Christmas Gift, criando uma teia de histórias vividas nos dias finais do regime comunista da Roménia, em dezembro de 1989. O resultado chama-se O Ano Novo que Não Aconteceu, foi duplamente premiado no Festival de Veneza de 2024 — Prémio FIPRESCI (crítica internacional) e Melhor Filme da secção Orizzonti — e chega agora às salas do nosso país. Sendo um painel de histórias cruzadas de diferentes personagens (com uma estrutura que poderá fazer lembrar o filme Magnólia, de Paul Thomas Anderson, lançado em 1999), O Ano Novo que Não Aconteceu apresenta como pivot da sua dinâmica a produção de um especial televisivo (de Ano Novo, precisamente) que, para satisfazer os ideólogos do regime de Ceausescu, deve conter uma homenagem ao líder, enaltecendo-o como “símbolo vivo do amor por este país”. Acontece que um inesperado grão humano perturba a engrenagem: depois da atriz escolhida para tal celebração ter fugido do país, à nova intérprete escolhida falta convicção para dizer tais palavras... Vale a pena sublinhar que o filme de Muresanu se demarca da visão de alguma informação televisiva que nos quer fazer acreditar que o sistema televisivo de comunicação é um elemento neutro da vida social, limitando-se a “transcrever” a realidade — como se a realidade fosse uma entidade passiva que se deixa narrar de modo transparente e automático; como se qualquer visão do mundo não fosse uma construção que envolve responsabilidades específicas. Não será necessário dizer (ou talvez seja, sobretudo para os mais precipitados na vontade de purificar o pensamento dos outros) que nada disso envolve qualquer paralelismo, realista ou irónico, entre os ecrãs televisivos dominados pela implacável ditadura de Ceasescu e a pluralidade democrática da nossa televisão. O que está em jogo, sem dúvida mais complexo, é um facto verificável na maioria das sociedades contemporâneas, mesmo quando são geridas por sistemas políticos com lógicas claramente opostas: a televisão deixou de ser (se é que alguma vez o foi) uma “janela” para o mundo, passando a existir como um elemento vivo que pontua, influencia e transfigura todas as dinâmicas sociais — logo, como bem sabemos, também o funcionamento da cena política. Tudo isto acontece num elaborado regime de alternâncias que produz algo de invulgar enquanto memória histórica, fascinante no plano da linguagem cinematográfica: um filme verdadeiramente coral cuja musicalidade narrativa surge confirmada, com calculado humor, na utilização final do Bolero de Ravel. Para lá dos “heróis” Os resultados são tanto mais pedagógicos quanto a realização de Murasenu se mostra especialmente atenta à memória do aparato técnico da televisão da época. Para lá da sugestiva reconstituição dos estúdios, com os seus ecrãs, câmaras e máquinas, o próprio filme utiliza um tipo de enquadramento, dito “quadrado” (na verdade, com as proporções 4x3), raro hoje em dia, mas ainda frequente naquele tempo. Por tudo isso, O Ano Novo que Não Aconteceu constitui mais um belo capítulo da saga de um cinema romeno empenhado em revisitar as memórias da ditadura sem maniqueísmos fáceis e, sobretudo, sem alimentar o infantilismo político que se esgota em esquemáticas galerias de “heróis”. Importa, assim, colocar o nome de Murasenu ao lado de Cristi Puiu, Cristian Mungiu ou Corneliu Porumboiu — há um cinema romeno que continua a merecer toda a nossa atenção..'A Mais Preciosa Mercadoria'. Desenho animado e parábola humanista .'Bird'. Variações sociológicas em tom menor