Não é por acaso que o livro O Amor em Portugal na Idade Média chega às livrarias por estes dias, afinal estamos em fevereiro, o Dia dos Namorados está a chegar e a editora fez coincidir o livro com a data. Não foi, no entanto, por esta razão que a historiadora Ana Rodrigues Oliveira se dedicou a uma investigação sobre uma temática muito pouco conhecida da nossa história: o amor na alegada "idade das trevas"..Um estudo que abrange as paixões antigas, onde o infringir de muitas regras sociais e o castigo por viverem situações de relações proibidas entre homens e mulheres - também entre homens e homens e mulheres e mulheres - é muito mais frequente do que se imaginaria. Segundo o paralelo que a autora faz entre o passado e o presente nesta entrevista, pode perceber-se que não existe assim tanta diferença entre a inventividade sexual e os comportamentos proibidos entre os dois géneros, o que mudou muito foi a penalização. "Hoje não há tanta legislação e os que infringem certas regras estabelecidas sabem que daí não vem mal ao mundo, contudo naquela altura esse mal vinha mesmo", refere. Não será por acaso, é que apesar do medo de infringir, o que não faltavam eram transgressões: "Entre frades e freiras, incesto, promiscuidade, e outras situações que eram proibidas, como a relação do cristão com judeus e muçulmanos, algo que se vê muito através da leitura das cartas de perdão. Era um mundo mais limitado, mas as pessoas não tinham medo de transgredir e muitas vezes esses amores acabavam em condenação..Este era um trabalho que a historiadora desejava fazer desde há muito, após outros na área da mulher e da criança, e que agora teve oportunidade para investigar e escrever, de modo a mostrar como viviam os antigos portugueses o amor..É um livro e um tema que precisa de ser contextualizado ou será mal entendido? Esse foi um dos meus primeiros cuidados porque o tema exige que se evite cair em anacronismos ao pensar-se que naquela altura as coisas se passavam da mesma maneira que hoje ou que possam ser ditas com as mesmas palavras e entender os comportamentos como na atualidade. Esse é um problema para qualquer historiador, pois não se pode projetar a nossa maneira de pensar no passado. De qualquer maneira, não creio que haja um fosso tão grande entre o amor na Idade Média e hoje em dia..Como assim? Temos de ter cuidado com o que significava a palavra amor. Hoje, referimo-nos ao amor conjugal, à paixão ou a uma relação emocional, naquela altura englobava vários sentimentos e emoções. É frequente encontrarmos dois cavaleiros que dizem que têm amor um pelo outro, mas isso não quer dizer que sejam homossexuais. Era a vivência de um código cavaleiresco, em que se encontram citações do rei que amava muito o seu criado - e não significava uma relação homossexual. Amor tinha uma conotação mais lata da que usamos hoje e dizer que o rei amava muito a sua rainha poderia querer dizer que ela trazia estabilidade ao reino, que era sua conselheira e que existia uma cumplicidade entre os dois e não necessariamente um amor de paixão..Encontrou muitos os tipos de paixão? É verdade! Ao longo deste estudo encontrei tudo aquilo que existe hoje: prostituição, homossexualidade masculina e feminina, incesto e adultério. A realidade atual não é assim tão diferente, o que mudou foi hoje ser tudo mais livre enquanto naquela época toda a vida amorosa estava regida por normas muito restritas. Tanto civis - é o caso da legislação régia que proibia e penalizava drasticamente a homossexualidade, a relação entre duas pessoas de religião ou de etnias diferentes - como religiosas - que era altamente castradora. Naquela altura, diga-se, as pessoas eram muito mais religiosas e por isso corriam um risco maior..Havia muitas pessoas a pisar o risco? Bastantes, e até acabavam por ser mandadas matar por essa razão. Corria-se muitos mais riscos do que hoje, porque vivemos num tempo em que a legislação já não penaliza certas coisas e a religião vale o que vale..Pode dizer-se que a relação ilegítima entre um homem e uma mulher era mais perigosa na Idade Média? Sim. Se fosse fora do casamento havia fortes penalizações da Igreja e também do direito civil. Basta ver que o adultério era muito penalizado, até com a morte, mas mesmo assim os portugueses arriscavam..A maior diferença da Idade Média para hoje é a de a mulher ter direitos? Também, mas a lei abrangia tanto a mulher como o homem porque as proibições eram iguais. Não havia assim uma diferença tão grande, embora muitas situações mudassem ao longo dos séculos e houvesse situações em que a mulher era mais penalizada pela legislação. Mas posso dizer que havia mais coragem então para enfrentar uma relação "pecaminosa" do que hoje, um tempo em que há mais liberdade para escolher os parceiros..Era mais perigoso pecar naquela época? Sem dúvida, tanto ao nível da legislação régia como da da Igreja, sendo que nesta última havia uma tão grande quantidade de interditos sexuais para o casal que as relações sexuais eram proibidas durante quase metade do ano - não deveriam ser praticadas em dias e épocas religiosas, pela condição fisiológica da mulher, entre outras..Refere a homossexualidade feminina. Era tão frequente assim? Não se pode dizer que era frequente mas existia e isso vê-se principalmente nas cantigas de escárnio, onde a sexualidade aparece de uma forma mais ou menos subtil mas com uma linguagem desbragada, e aí a homossexualidade feminina aparece muito. É claro que se dava menos importância à homossexualidade feminina porque a masculina chocava mais, era uma quase desonra para a virilidade e um terreno fértil de chacota. No caso da mulher, como vivia mais recatada e era casada, não dava tanto nas vistas..A legislação portuguesa era mais rigorosa? Éramos muito regidos pela legislação de Castela e utilizávamos muito da que foi feita pelo rei Afonso X, por isso não havia muita diferença. Quanto à legislação canónica, era igual em todo o mundo católico..Há pouca documentação para este tema? Não existem muitos elementos porque tudo o que tenha que ver com a questão do pudor, da intimidade e dos sentimentos não está escrito. Esta investigação torna-se um desafio porque tive de procurar nas entrelinhas de, por exemplo, os livros de milagres que eram feitos nos santuários onde as pessoas iam invocar uma graça e tudo ficava registado, ou nos livros penitenciais, os dos confessores, onde se explicava como confessar e que penitências atribuir. Aí, apercebemo-nos da quantidade de erotismo e sexualidade que existia. Esses livros têm tudo o que pode haver a nível de práticas sexuais, até de posições, de que se deveriam penitenciar..Quando refere "posições", quer dizer que a inventividade sexual já existia? Sim, pois o facto de existir legislação reiterada e penitências mostra que existia..Encontrou algum caso que a chocasse? Chocar não, afinal o mundo de hoje é muito liberal. Contudo, nunca pensei que nesta altura tudo isto existisse, o que mostra como é errado dizer-se que nada há a investigar nesta temática na Idade Média. Além de que se vê outra realidade, a de que até nos casamentos combinados dos nossos reis, como o de D. João I e D. Filipa, D. Duarte e D. Leonor ou D. Afonso V e D. Isabel, existe muito amor entre eles. E nem falo de Pedro e Inês....De amor e sexo no caso dos reis? Nestes casos sim, existia esse amor e sentiam-se bem um com o outro. É bem visível essa cumplicidade nestes casais régios..Este livro clarifica a nossa história? Claro. Vemos, aliás, que não existe tanta diferença assim e confirma-se que é um estereótipo da Idade Média o facto de a mulher não ter liberdade. É falso. Só a mulher nobre é que sim porque casava com quem lhe mandavam. A nível do povo não, pois trabalhava ao lado do homem na agricultura, no comércio e no artesanato, tendo muita da liberdade atual. É um mito e um estereótipo que a mulher - do povo - não tinha qualquer liberdade.. O Amor em Portugal na Idade Média Investigação da historiadora Ana Rodrigues Oliveira. Ed. Manuscrito, 341 páginas