Telma Tvon, escritora e MC.
Telma Tvon, escritora e MC.Paulo Spranger / Global Imagens

"Num mundo utópico, mas que para mim faria todo sentido, um partido como o Chega não existiria"

Os jovens negros portugueses, e as suas vidas, são as personagens principais do livro de estreia de Telma Tvon, Um Preto Muito Português. A escritora explica as razões para dar voz a uma franja da sociedade que passa muitas vezes despercebida.
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Num pequeno pátio de uma loja dedicada à cultura do hip-hop, no centro de Lisboa, Telma Tvon, escritora e MC (pertenceu a vários grupos hip-hop), contou ao DN como nasceu o seu primeiro livro. Um Preto Muito Português, relata a história de Budjurra, um português neto de cabo-verdianos, feminista, que aborda, pela sua vivência, questões de descriminação, igualdade e humanidade, numa Lisboa que ainda é, para muitos, desconhecida.

Como é que surgiu a ideia de escrever este Um Preto Muito Português?
Não surgiu de forma espontânea, porque de início não ia escrever um livro. Estava a escrever uma letra para uma música sobre temas da identidade e de ser negro em Portugal. Só que quando dou por mim tinha umas 20 páginas escritas...


E foi aí que uma canção se transformou em livro?
Fiz a letra a pensar que podia ser cantada pelos artistas Solange e Lancelot, mas tive vergonha de lhes pedir, e como estava a ficar muito grande pedi à minha irmã para a ler. E foi ela que me disse que devia escrever um livro. Ainda fiquei com algumas dúvidas, mas ela insistiu que estava a dar voz e visibilidade a muitas pessoas.

O propósito principal deste livro é esse, o de dar voz a essas pessoas, através das personagens do livro?
Sim, hoje para mim é! Inicialmente não pensei em nada, foi tudo muito fluido, foi acontecendo, e até ter o livro nas mãos não acreditei muito que ia acontecer. Mas depois comecei a ter algum feedback. Como quando fui a uma universidade falar sobre o livro e, no final, algumas pessoas vieram ter comigo para dizer que se identificavam com as histórias e que parecia que tinha escrito sobre as suas vidas. Percebi que não estava só a escrever sobre casos que conheço, sobre amigos que tenho, mas sobre outras pessoas que passam pelo mesmo.

No livro relata como, por exemplo, é difícil a procura de emprego por pessoas negras qualificadas, com estudos...
A cor influencia na procura de trabalho, em vários aspetos. E o que nós esperamos dos nossos aliados, o que esperamos de várias pessoas brancas, é que assumam que há desnível, que há falta de acesso a oportunidades precisamente por causa da cor.

Como é que foi o processo criativo deste livro, já que começou como uma canção? Foi certamente um processo mais lento do que escrever uma canção, não?
Quando tinha um grupo de hip-hop - éramos quatro mulheres MC -, íamos para casa escrever as canções para as apresentar no ensaio do dia seguinte, não havia muito tempo, até porque depois tínhamos ensaios e concertos. O livro levou muito mais tempo. Houve capítulos que escrevi de uma assentada, outros que demoraram mais tempo, porque emocionalmente puxaram mais por mim, principalmente os casos que têm a ver com pessoas que conheço.

Há duas opções claras no livro, a personagem principal ser um homem e ser descendente de pais cabo-verdianos, quando você é mulher e nasceu em Angola. Porquê essa escolha?
Quis afastar-me da minha história. Já sabia que se fosse escrever sobre uma mulher com origens angolanas as pessoas iriam associar a algo autobiográfico. E também porque queria desmistificar a ideia de que quase todos os homens negros e africanos, ou descendentes de africanos, são insensíveis, muito brutos, e não falam sobre os seus sentimentos, nem sabem lidar com mulheres. Por isso trouxe para o livro um homem feminista. Até porque, lá está, conheço muitos homens assim. Hoje em dia, na casa dos 40 anos, já não se coloca essa questão, mas quando tínhamos 18/19 anos os meus amigos partilhavam esses pensamentos comigo, só que quando estavam no meio dos outros rapazes, com outros homens, já não o faziam. Porque não era cool, eram gozados. Havia um certo bullying  dentro da nossa comunidade. E é preciso falar nesses homens, porque tendemos a focar-nos só nas coisas negativas. Tenho familiares que nunca traíram, nunca bateram em ninguém, mas não vejo ninguém a dizer: “Olha, boa, és um exemplo de um homem.” Acho que muitas das vezes focamos-nos mais no que acontece de errado, dando-lhe ainda mais poder.

Mas não seria mais fácil, no livro, existir uma voz de luta, de raiva contra o racismo e as dificuldades que existem na comunidade negra, como na linha do que estamos habituados a ler e a ver nos Estados Unidos, por exemplo?
Esse é um outro grande problema da literatura negra - e eu estou confortável com quem sou e as questões que quero trazer à baila -, mas muitas das vezes o que eu vejo de outros, lá fora e mesmo aqui, é que não é expectável que uma escritora ou um escritor negro escreva sobre o amor, por exemplo. Têm de estar sempre a dar a voz à luta. A escritora norte-americana Bell Hooks (1952-2021) escreveu sobre visões de amor da nossa comunidade. Culturalmente carecemos imenso de afeto em várias frentes e, por isso, também precisamos de pessoas que escrevam sobre isso. Aliás, precisamos de escrever sobre tudo, sem ter o rótulo que temos de só falar sobre dor e luta. É extremamente triste, nós não queremos estar constantemente nesta situação, neste papel, queremos fazer outras coisas, temos criatividade e vontade de fazer muitas outras coisas.

A escritora Telma Tvon.
Paulo Spranger/Global Imagens



Ou seja, escrever sobre o amor?
Exatamente. Por isso é que uma das minhas grandes lutas e de imensa gente dentro desta educação antirracista é precisamente isso. Por favor, não vejam isto como uma luta do bem e do mal, porque eu sinto que quando há essa questão do bem e do mal as pessoas defendem-se e não mudam.

E o próximo livro já está a ser pensado?
Já o estou a escrever, agora já só depende mesmo da Quetzal (Editora).


E será dentro dos mesmos temas?
Também será de denúncia, mas desta vez estou mais virada para as mulheres. Neste primeiro livro a personagem principal é um homem, que é feminista, tudo bem, mas ainda assim sinto necessidade de pôr cá fora histórias de mulheres com quem eu me cruzo constantemente. De mulheres que poderiam ser as minhas amigas, as minhas tias, de mulheres como eu.


Mas não é válida a riqueza cultural que existe atualmente em Portugal, sobretudo nas grandes cidades e, por exemplo, na música? Temos o chamado Som de Lisboa, que mistura batidas africanas, música brasileira...
Sim, mas vou ser mesmo muito sincera, acho que esse projeto chumbou, claramente. Claramente ou escuramente, como quiserem dizer. Lembro-me perfeitamente, na altura, desse boom musical quando entrava em lojas e ouvia as nossas músicas na rádio. Até então só ouvíamos aquela música na nossa comunidade e de repente passou um bocadinho para o mainstream. Pensei que era o momento em que as pessoas africanas e afrodescendentes iam passar a ser vistas e ouvidas, mas não foi isso que aconteceu. Tentaram branquear a nossa cultura, porque se formos a olhar para os festivais de música, por exemplo, e de uma maneira geral, vão buscar pessoas brancas para dar voz à nossa cultura, mas não vão buscar os fazedores da cultura. E mais uma vez nós estamos relegados para o segundo, terceiro ou quarto plano. Existem vários artistas que poderiam ser convidados e que estão aí há mais tempo e que não o são. Não quero com isto fazer crítica aos artistas convidados, mas sim a quem pega neles, porque são, de uma forma geral, miúdos que não vão falar de nada, não vão rebuscar a cultura e dizer: “Olha, nós somos negros, aceitem-nos, acabem com este racismo institucional, sistémico, cultural.” Não vão fazer isso, porque não pensam sobre isso e, se calhar, porque não andamos todos focados com essas questões. Há quem simplesmente seja negro e não pense nisso. E que até diga: “Olha, racismo não existe, nunca me aconteceu.” Está no seu direito, mas não acredito nisso. Acho que é alguém que o diz como estratégia de defesa. São pessoas instrumentalizadas.

E como vê as recentes mudanças políticas em Portugal com o aumento da votação na direita populista?
Sinto como um retrocesso e estou apreensiva. Num mundo utópico, mas que para mim faria todo sentido, um partido como o Chega não existiria. Terem chegado onde chegaram, com tudo o que dizem, com tudo o que eles representam, é assustador. Gostava que as pessoas estivessem mais despertas.


Mas esse tipo de pensamento sempre existiu ou é uma coisa nova?
Ah, não, eu acho que sempre existiu. E agora parece que encontraram voz. Alguém está a dizer o que muita gente sempre pensou, mas não era dito como agora. Acho muito engraçado quando as pessoas às vezes dizem “não tem nada a ver convosco”, percebo logo que votaram no Chega. É só olharmos para a História. O facto de muita gente jovem ainda ter orgulho no colonialismo e de achar que Portugal não esteve tão mal como outros países europeus é sintomático. Já tive conversas sobre isso com muitas pessoas e umas deixaram de ser minhas amigas, outros fizeram a desconstrução do que aprenderam na escola. A minha questão é muito simples: põe-te do lado oposto. Imagina que alguém vai para o teu canto e diz como é que tu tens de viver, despoja-te de tudo o que tu conheces, retira-te de tudo, os teus recursos, a tua existência, a tua autoestima e quebra-te dessa maneira. Como é que tu te sentirias assim? Que orgulho há nisto, em fazer isto, independentemente dos tempos? Já me disseram que me podia ir embora, mas esquecem-se de que eu hoje estou cá também por causa das condições em que foi feito o colonialismo em Angola, e noutros PALOP, e da forma como a independência foi feita, como as coisas aconteceram. E não estou a tirar a responsabilidade ao MPLA e afins, porque também podiam ter feito muito melhor. Amílcar Cabral disse uma coisa muito curiosa: “Vamos tirar os portugueses daqui, mas quem vem a seguir vai fazer igual.” Estamos a ver precisamente isso. Não vou para lá precisamente por causa disso, porque sou completamente contra o que está lá a acontecer.


Mas tal como a personagem principal do livro também se sente portuguesa. Ou não?
Sinto-me portuguesa para irritar essas pessoas que dizem que eu não sou portuguesa, muito sinceramente. Culturalmente sou muito angolana e muito africana, mas a mim ninguém me vai dizer que eu não sou portuguesa, porque estou aqui há muito tempo e se eu quiser puxar desses galões, puxo. Tenho mais anos de vida em Portugal do que em Angola, na verdade. Vim com 13 anos e vou fazer 44. E até dou um exemplo: quando viajo e fico muito tempo fora vou comer a um restaurante português. Só não me sinto portuguesa quando me mandam para a minha terra, não obstante eu saber qual é a minha terra.


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