A primeira peça da artista dinamarquesa Nina Beier que se vê na exposição Goods, Bens no espaço reservado à arte contemporânea na Fundação Albuquerque, em Sintra, intitula-se China (2015). É um cão decorativo ao lado de um vaso de porcelana chinesa que parece que foi mordido, faltando-lhe um pedaço. Poderia se ter sido o cão a morder-lhe, mas também neste faltam uns bocados, por isso agora o espetador que tire as suas conclusões. “Não quero que alguém sinta que está a perceber a peça, ou que há uma resposta, ou que a minha opinião interessa. Eu não estou interessada em opiniões, eu não quer dar lições a ninguém, a ideia é de que se passa algum tempo com estes objetos, e eles falam contigo, seja em que capacidade for que te permita ouvir”. . Nina Beier, que já expôs em grandes museus como a Tate Modern, em Londres, ou o Centre Pompidou, em Paris, e tem agora a sua primeira exposição individual em Portugal, não é ceramista, o seu trabalho é criado com objetos já fabricados. Contudo, na sua pesquisa de artistas para expor neste espaço, em diálogo com a coleção de porcelana chinesa, Jacopo Crivelli Visconti, diretor da Fundação Albuquerque e curador desta mostra, percebeu que a obra da artista dinamarquesa permitia estabelecer relações com a coleção de cerâmica em múltiplas dimensões. . “Apesar de ela não ser uma artista que trabalha com porcelana, a porcelana aparece bastante no trabalho dela. A grande instalação que abre a exposição é inteiramente de porcelana, só que são louças de banheiros. Não faríamos essa associação, é quase uma piada interna”, diz o curador, italiano nascido em Nápoles e radicado no Brasil, e que desde que assumiu a direção da Fundação Albuquerque vive entre São Paulo e Portugal. Jacopo Visconti refere-se à peça Plug (2018), composta por lavatórios em cerâmica em tons pastel com charutos enrolados à mão enfiados no local do ralo. “Relaciona-se com muitos assuntos que estão presentes e são muito centrais na história da Arte. Porque estão moldados de uma forma muito bonita, uma forma que não seria a primeira coisa para que olharíamos num lavatório, mas quando estão dispostos desta forma olhamos para isso, e claro que há uma relação com o urinol branco de Duchamp, que é provavelmente a obra de arte chave do século XX”, contextualiza o curador. “Depois, há uma ideia de feminilidade, com estes tons pastel e, ao mesmo tempo, há o charuto, que é um símbolo fálico de masculinidade branca, partilhado por políticos e criminosos-chave do século XX, mas também relacionado com a história colonial, da mercantilização do tabaco, da exploração contínua de países que produzem tabaco”, descreve. .“Todas as questões que são chave na configuração da coleção [de porcelana chinesa] estão aqui, mas de uma forma completamente diferente”, sublinha Jacopo Visconti . As 2600 peças de porcelana chinesa de exportação, ou seja, encomendada sobretudo por Portugal e depois por outros países europeus à China - colecionada pelo empresário brasileiro Renato de Albuquerque e exibida e depositada em Sintra - “levantam questões económicas, sociais, de globalização, de geopolítica”, sublinha Visconti. E é a este nível que se estabelece sobretudo o diálogo com o trabalho de Nina Beier. Nina Beier passou uma parte da juventude em Moçambique onde os pais eram pessoas socialmente ativas, o que a despertou para os temas da mercantilização e pós-colonialismo e influenciou o seu trabalho artístico, acredita o curador. “Tendo a colecionar apenas objetos com este background coletivo, que foram produzidos uma e outra vez, gerações dos mesmos objetos. E dentro desse tipo de objetos, toda a confusão é trazida para o espaço. Sempre me interessei por esses objetos que não são de autoria de uma única pessoa, mas que se desenvolveram através de diferentes culturas, tempos, sistemas de crenças e de valores. Sinto que esses são os objetos que me dizem alguma coisa, e que quero, de alguma maneira, desconstruir”, diz Nina Beier. . Explicando o seu método de trabalho, especifica que “não são objetos de nicho que eu encontro, são apenas coisas que nos rodeiam, e penso que na maioria das vezes começa comigo a dizer ‘that’s fucked up’. Aí eu fico curiosa e começo a colecioná-los. E, de alguma forma, é no espaço entre as diferentes versões de um objeto que eles começam a ficar claros. Preciso de reunir um número de objetos para perceber a sua natureza ”. Em estúdio, Nina Beier revela que começa “a brincar com eles”, embora não seja esse verdadeiramente o caso, porque para ela “é uma luta, testo formas de lhes dar vida, e é aí que estes encontros [entre objetos] acontecem”. Jacopo Visconti destaca que “ela é uma artista que se interessa principalmente por questões de circulação de bens - não é por nada que a exposição se chama Goods, Bens - discrepância e lógicas internas na definição do valor dos objetos, que é obviamente uma discussão que, no campo da arte, é fundamental, porque a atribuição de valor a obras artísticas tem uma grande parte de subjetividade. E não se reflete na quantidade de trabalho despendido na produção de um objeto, que são questões que estão muito imbricadas com a produção da coleção”. Também na coleção de peças de porcelana chinesa em muito poucos casos se sabe quem as produziu, sublinha o curador. “A gente imagina que as pessoas trabalharam em condições, não sei se de escravidão ou quase escravidão, mas certamente condições não idóneas do nosso ponto de vista contemporâneo.”Inicialmente, acredita Nina Beier, o seu trabalho era interpretado no contexto da escultura ou da história da Arte, e “depois as pessoas começaram a ver aspetos do trabalho que lidavam com a paisagem social”. A artista considera que a sua obra cruza “história pessoal, com história coletiva, e um ponto de entrada formal, escultórico”, e que “em diferentes tempos, um ou outro aspeto terá sido mais dominante, mas é muito mais sobre como a sociedade muda e as coisas que procuramos”. Goods, Bens mostra seis esculturas/instalações que podem ser vistas na Fundação Albuquerque até dia 4 de janeiro de 2026 . A escolha das peças resultou de um diálogo entre Nina Beier e o curador. “Sinto que é um passeio do Jacopo pela minha prática, olhando pela lente da coleção [de porcelana chinesa] para ver quais as peças que poderiam criar um diálogo interessante. Nesse sentido, penso que o principal esforço criativo é da parte do Jacopo”. O curador, por sua vez, agradece, mas sublinha que a artista “passou três dias a mudar” as coisas”. .Pedro Abrunhosa: “O novo disco é mais para a dor do que para a celebração”.Zineb Sedira: “Há um aumento do fascismo na Europa. Olhar para trás é muito importante”