"Não consegui salvar o meu irmão da SIDA. Mas a sua morte fez de mim o homem que sou"

Richard Zimler conta como um sonho, com o seu irmão mais velho, que morreu aos 35 anos e era seropositivo, o levou a escrever o seu romance <em>O Evangelho Segundo Lázaro</em>, de 2016.
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Foi um sonho repetido, por vários anos. Richard Zimler encontrava o seu irmão, Jerry, três anos mais velho, a andar num pátio de uma mansão de pedra. A primeira vez que teve este sonho foi logo após o funeral de Jerry, em 1989.

"Com uma onda de alívio, pensei: O Jerry voltou à vida - tudo vai ficar bem agora! Saí do meu quarto para me juntar a ele, mas ele não me cumprimentou com entusiasmo ou afeto. A cara dele estava triste. Descobri que, embora ele pudesse falar, e embora me reconhecesse, não conseguia mostrar outras emoções além de tristeza e deceção. O seu rosto triste era o mesmo que me mostrou nas suas últimas semanas no hospital - o rosto de um jovem que foi enganado para fora da vida. O sonho voltou várias vezes durante as semanas seguintes e depois desapareceu da minha vida durante 17 anos - reapareceu quando eu estava a cuidar da minha mãe idosa em 2006. Nessa ocasião, o meu encontro com Jerry num sonho fez-me pensar em como ele teria sido como um homem de meia-idade, e logo a figura de Lázaro entrou na minha mente. No Evangelho de João, Lázaro é caracterizado como o amigo amado de Jesus, e Jesus ressuscita-o dos mortos."

Num texto publicado no The Guardian, o escritor garante que esse foi o ponto inicial do seu romance, publicado pela Porto Editora: "Decidi que tinha de fazer de Lázaro o narrador do meu próximo romance."

"Para tentar descobrir o que me perturbou tanto na ligação entre Lázaro e Jerry, reli a Bíblia, que tinha estudado na universidade nos anos 70. Também comecei a ler todos os livros que podia encontrar sobre a vida diária no momento da ressurreição de Lázaro. Foi durante este período de pesquisa que percebi o que poderia ter sido óbvio para mim, mas não foi: que a história de Lázaro representava o meu maior desejo, que era trazer o meu irmão de volta à vida. Cheguei à conclusão de que o meu inconsciente queria que eu reconhecesse que nunca me sentiria completamente em paz com a sua morte - que nunca seria inteiramente capaz de "seguir em frente", como todos parecem recomendar tão facilmente nestes dias."

O romance foi escrito em 2014 e 2016, anos em que a memória de Richard Zimler recordava as brincadeiras (a franja que ajudava o irmão a compor, com creme de cabelo, para se assemelhar a Spok, da Guerra das Estrelas) mas também a culpa. "No caso do meu romance, isso significava estar disposto a enfrentar meu próprio fracasso em salvar o meu irmão e a minha falta de fé na vida depois da morte."

No livro, Jesus consegue salvar o seu amigo Lázaro do "maior e mais inevitável inimigo da humanidade, isto é, a morte".

Mas há 30 anos, nos EUA, Richard e Jerry lutavam contra algo mais. "Quando o meu irmão mais velho Jerry adoeceu com Sida na década de 1980, trabalhava como psicólogo em Nova Iorque e eu morava numa pequena casa em Berkeley, Califórnia, com o homem que agora é meu marido. Eu telefonava ao Jerry todas as noites e voava uma vez por mês para o ajudar a limpar o seu apartamento e a abastecer-se de comida, bem como para discutir os seus tratamentos com os seus médicos e investigadores do VIH. Uma vez, enquanto ele estava a recuperar de uma infeção parasitária que lhe tinha causado lesões no cérebro e lhe tinha dado demência, pegou na minha mão e disse-me: "Eu ficaria órfão se não fosses tu." Como centenas de milhares de outros irmãos e irmãs em todo o mundo, continuei a dizer ao Jerry: "Aguenta-te, porque um dia em breve haverá uma cura"."

Richard era, na prática, o único cuidador do irmão. "Durante o seu último ano, assumi grande parte da responsabilidade de acompanhar a sua doença, porque ninguém mais estava em condições de comprometer-se com o seu bem-estar, exceto os nossos pais, mas Jerry recusava-se a vê-los. A raiva que ele sentia pela sua infância infeliz - pelas suas dificuldades em crescer numa época em que ser gay era considerado desviante e vergonhoso - piorou quando começou a sofrer com Sida."

Durante a escrita do livro, Richard Zimler conta que descobriu "uma revelação importante": "Não só eu nunca conseguiria superar a morte de Jerry mas, por mais chocante que isso possa parecer para alguns, eu não queria. Porque todos aqueles meses atormentados que passei a tentar salvar a sua vida transformaram-me numa pessoa mais compreensiva e empática - alguém que aceitava muito mais o medo da doença e da morte que quase todos nós temos. E fez de mim um escritor muito melhor, também - um escritor comprometido com a verdade, mesmo quando não é tranquilizador ou fácil de aceitar."

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