O Convento dos Cardaes, na Rua do Século, em Lisboa, é um segredo bem guardado, apesar de ter um museu homónimo e centenas de anos de história. Por fora, passa despercebido, mas por dentro é repleto de talha dourada, mármores e memórias. É também neste lugar que o maestro italiano Massimo Mazzeo, fundador da orquestra barroca portuguesa Divino Sospiro e radicado em Portugal, avança com um ciclo de concertos, nos dias 26, 28 e 29 de novembro, intitulado Lisboa Música Antiga, que pretende juntar património material, património imaterial e uma reflexão mais ampla sobre o papel da cultura na contemporaneidade, à qual chama uma “relação holística”.Massimo Mazzeo, uns dias antes de começar este ciclo, deixa ao DN uma série de advertências para que o público não seja apanhado desprevenido em relação ao que aí vem: “as pessoas, quando entram, aqui [no Convento dos Cardaes], são invadidas por esta overdose estética, e ninguém está à espera disso.”A escolha deste espaço, que é apenas um dos três que vão servir de casa ao ciclo, não é fortuita. O maestro vê este convento como “um espaço de uma beleza espantosa”, que simultaneamente é “testemunha de uma grande tradição, não só relativa à história portuguesa, mas também às relações que Portugal teve com outros países”.Para sustentar esta ideia, Massimo Mazzeo vira-se para o altar no Convento dos Cardaes, que tem mais ornamentos do que aqueles que é possível assimilar num relance, e explica que é “de inspiração florentina”, apesar da talha dourada ser “portuguesa, bem portuguesa”. É com esta descrição que Massimo Mazzeo reconhece que “há coisas com as quais devemos voltar a ter uma relação”, como este convento ou a Capela da Bemposta, que iria abrir o ciclo Lisboa Música Barroca, mas que, como consequência da intempérie do início do mês, ruiu parcialmente e ficou inacessível.Mas há outros fatores que contribuem para a escolha do convento como uma das moradas deste ciclo, como o facto de proporcionar uma proximidade com os artistas e “ter a acústica apropriada àqueles instrumentos”. A juntar a esta receita que favorece a fruição musical, o maestro sublinha também a possibilidade de colocar o público “num espaço suficientemente pequeno para criar uma intimidade onde a música é o material imersivo”.É também através destes lugares que Massimo Mazzeo descreve a música como “uma das quintessências” daquilo a que chama cultura, que também transporta alguma fragilidade, porque, afirma, muita gente “é movida pelas redes sociais, e, muitas vezes, não sabe quanta beleza, quanta inspiração vem de locais, de sítios que estão muito perto de todos, nas nossas vidas”.O ciclo prossegue na Igreja do Loreto e na Basílica da Estrela, respetivamente nos dias 28 e 29 de novembro, ambas peças-chave da Lisboa barroca que ressurgiu depois do terramoto de 1755, mas não se trata apenas de história. Para Massimo Mazzeo, apresentar repertório antigo - escrito até à primeira metade do século XVIII - em lugares históricos atribui-lhes uma dimensão imersiva impossível de emular em auditórios modernos. E não é apenas uma questão de acústica, mas de devolver à música a sua relação com o espanto.A cultura, o pensamento crítico e o entretenimentoO lugar ocupa um papel fundamental no conceito de espetáculo, e é por isso que o maestro opta pela marca da história e não pelos grandes auditórios para este ciclo de música barroca, porque, considera, “as salas de concertos, hoje em dia, são feitas daquilo que é chamado, num termo infeliz em inglês, mainstream”. No fim, tudo está ligado a uma lógica de mercado, que está a operar uma transformação na cultura, que, de acordo com Massimo Mazzeo, talvez não esteja a seguir “um caminho profundo”. .“É um caminho que está a dirigir-se para algo que é mais entretenimento”, argumenta, acrescentando que há uma corrente que “é criada não tanto para a cultura, mas para vender bilhetes. É para ganhar público naquela única ocasião. Se calhar, de um certo ponto de vista, um pouco efémera.”Porém, mesmo do ponto de vista do público, isto terá um efeito contrário, vinca o maestro, que afirma que, “nos últimos tempos, só assistimos a concertos que parecem playlists”. O maestro diz compreender que “as pessoas realmente pretendem ter uma hora de diversão, só desligar o cérebro”, mas que será uma perspetiva redutora do produto cultural.“Eu acho que a cultura serve para que o cérebro não desligue. E, portanto, ali, na minha opinião, reside um perigo. Quando começamos a deslizar para essa ideia de fruição da chamada cultura, que já tem imensos significados, para um mero entretenimento, acho que devemos bater-nos para fazer com que esse termo recupere a sua própria força identitária”, considera.E para este problema há uma solução, que, segundo o maestro, passa por não pensar apenas programações “corajosas, ou seja, fazer uma oratória ou uma ópera de um compositor importante”, que sobreviveu quatro séculos, mas acima de tudo “não fazer concertos onde vamos ter, novamente, a estrela do momento a fazer alguns gorgolejos”.Sobre a perspetiva que muita gente poderá ter sobre a música barroca, no sentido de requerer um gosto pré-adquirido, o maestro rejeita a possibilidade. Pelo contrário, acredita que o verdadeiro obstáculo é o preconceito. Relata casos de pessoas que jamais tinham entrado numa sala de concertos e que, depois da primeira experiência, começaram a frequentá-la regularmente. “Nós somos aquelas pessoas que criam o conceito de elite”, diz, enquanto conta as inúmeras vezes que falou com pessoas que recusaram “fazer umas notas de programa”, por considerarem que “é melhor ter mais fotografias, porque aquilo pressupõe conhecimento e é muito elitista”. “Deixem as pessoas ouvir”, apela.No entanto, para que essa aproximação seja sustentável, é preciso criar estruturas. E é aí que Massimo Mazzeo identifica uma das fragilidades mais graves do panorama português: a ausência de um ecossistema sólido dedicado à música antiga, que inclui uma temporada estável de música barroca, mais escolas e não apenas exceções, como acontece com a Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), no Porto, que o maestro reconhece como um caso isolado.Para Mazzeo, uma única escola não basta para sustentar um país inteiro, nem para criar condições de regresso a jovens músicos portugueses que estudam no estrangeiro e frequentemente não encontram lugar no mercado nacional.A ausência de uma orquestra barroca nacional é outro ponto que o maestro destaca. Vê com perplexidade que talentos portugueses, reconhecidos internacionalmente, tenham pouco ou nenhum espaço no país, como “cantores que fazem sucesso lá fora e que aqui quase não são conhecidos”Neste cenário, iniciativas como este ciclo confundem-se com atos de resistência.Tentativa de recriar o que não existeO ciclo Lisboa Música Antiga contou no ano passado com nomes como os do barítono alemão Andreas Scholl e o cravista e organista holandês Ton Koopman.Este ano, promete o maestro, na tentativa de criar esta temporada de música que ainda não existe, o público poderá encontrar no ambiente intimista dos locais barrocos lisboetas nomes incontornáveis como o contratenor espanhol Carlos Mena ou o tiorbista Daniel Zapico. A estes nomes, juntam-se a Divino Sospiro, que se dedica à interpretação historicamente informada, e o Nova Era Vocal Ensemble, também de origem portuguesa..Massimo Mazzeo. O maestro "muito italiano" que se rendeu em Sintra ao sorriso da violinista búlgara.Massimo Mazzeo: “Barroco é uma extraordinária civilização da imagem e do som a chegar ao coração”