Eduardo Batarda, em 2018.
Eduardo Batarda, em 2018. Leonardo Negrão/Global Imagens

Eduardo Batarda (1943-2025): O pintor culto, crítico e irónico que desafiava ao jogo

Figura maior da arte contemporânea, Eduardo Batarda morreu aos 81 anos. "De um humor ácido, era crítico, mas também autocrítico", diz João Pinharanda.
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Eduardo Batarda, um dos nomes mais marcantes da pintura contemporânea em Portugal, morreu aos 81 anos, vítima de doença prolongada. A notícia foi confirmada pela família e pelas galerias Miguel Nabinho e Pedro Oliveira, que representavam o artista.

Nascido em Coimbra em 1943, Batarda, pai da atriz Beatriz Batarda, teve "um percurso singular iniciado nos anos 60" e "foi autor de uma pintura profundamente pessoal, marcada pela ironia, pela liberdade formal e pela densidade intelectual, capaz de cruzar referências literárias, musicais e visuais", lembram.

Professor durante décadas na Faculdade de Belas-Artes do Porto, deixou marca decisiva na formação de várias gerações de artistas. O seu trabalho integrou coleções públicas e privadas de referência, dentro e fora do país, e esteve presente em exposições fundamentais em instituições como o Museu de Serralves, o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e o MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia. Está representado em importantes coleções, incluindo na Coleção de Arte Contemporânea do Estado, que tem cinco obras do pintor, de 1979, 1985 (duas), 2000 e 2001.

'I Like Art ou a Perspectiva do Costume com Água no Bico' (1967), tinta acrílica sobre madeira.
'I Like Art ou a Perspectiva do Costume com Água no Bico' (1967), tinta acrílica sobre madeira.D.R./Centro de Arte Moderna da Gulbenkian

"O seu legado permanecerá como testemunho incontornável de uma das vozes mais originais da pintura portuguesa contemporânea", escreve a galeria Miguel Nabinho, que o representava, na informação sobre a morte do pintor, nas redes sociais.

Eduardo Batarda estudou Medicina durante três anos, curso que viria a abandonar para ingressar em Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, tendo-se licenciado em 1968, ano em que realizou a sua primeira exposição individual. Prosseguiria os seus estudos no Reino Unido, no Royal College of Art, entre 1971 e 1974, com uma bolsa da Gulbenkian. Em Londres conviveria com Paula Rego e outros intelectuais portugueses, sublinha João Pinharanda, diretor do MAAT, museu que acolheu uma das últimas grandes exposições.

"Lugar singular"

A Fundação EDP atribuiu a Eduardo Batarda o Grande Prémio EDP Arte em 2007, uma distinção que já tinha sido atribuída a Lourdes Castro (2000), Mário Cesariny (2002), Álvaro Lapa (2004) e Jorge Molder (2010), e da qual resultou uma grande exposição retrospetiva no Museu de Serralves, no Porto, em 2011/2012 - Eduardo Batarda: Outra Vez Não.

"Reconhecendo o quê? Um lugar muito singular na realidade portuguesa, devido a um cruzamento raro da cultura pop inglesa, da qual ele tinha um conhecimento muito vasto, com o conhecimento que ele também tinha da cultura erudita europeia e da América do Norte, não só visual, mas até musical e literária, a níveis que até ultrapassavam o próprio conhecimento da arte contemporânea", diz ao DN João Pinharanda.

"A grande especialização dele em termos de conhecimento erudito era o Renascimento, o Maneirismo e o Barroco. Ele doou recentemente a sua grande biblioteca - que devia ser uma das melhores bibliotecas de Portugal da área -, à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Nova", diz Pinharanda.

As obras do período londrino refletem a influência da banda desenhada, com desenhos detalhados de cariz político, social e sexual, inscrições, e a utilização da técnica da aguarela. As aguarelas destes anos, destaca João Pinharanda, "pareciam quase iluminuras medievais, aliás, com um tamanho gigantesco e um perfeccionismo absoluto, que ele depois vai levar para a pintura".

'She takes chances (…ce soir, 7 heures)' (1973). Aguarela e tinta-da -china sobre papel.
'She takes chances (…ce soir, 7 heures)' (1973). Aguarela e tinta-da -china sobre papel. D.R./Centro de Arte Moderna da Gulbenkian

Nos anos 1980 Eduardo Batarda regressaria à tinta acrílica que usou nos anos 60 e abandonaria as figuras e as inscrições. As cores tornar-se-iam mais escuras, e a pintura feita em camadas.

"As aguarelas que ele fez principalmente ao longo de toda a década de 70, eram aguarelas figurativas. E nessas aguarelas figurativas, além de muitas imagens e textos obscenos - enfim, hoje em dia já não seriam considerados como tal, mas na altura eram -, há também críticas políticas, sociais, culturais, tudo isso era explícito. Depois, nas obras que ele fez nos anos 80, quando os artistas começaram a fazer muita arte figurativa, ele passou a fazer arte abstrata", diz João Pinharanda.

As telas eram alvo de "uma preparação absolutamente minuciosa e obsessiva e de uma sobreposição de camadas, velaturas de tinta, de pintura, umas por cima das outras, que as torna talvez das pinturas mais capazes de atravessar os séculos na arte contemporânea. Mas isso tinha a ver com aquele conhecimento que ele tinha da arte italiana, principalmente, mas também francesa, etc."

'Néctar' (1984). 
Tela e tinta acrílica
'Néctar' (1984). Tela e tinta acrílicaD.R./Centro de Arte Moderna da Gulbenkian

O diretor do MAAT destaca "a capacidade de análise do real, que ele usava com uma violência sarcástica, de um humor ácido, era crítico, mas também autocrítico. Ele tinha essa dimensão auto derrisória, e isso tudo era plasmado em obras muito provocatórias".

Para João Pinharanda, "não há na arte portuguesa esta visão crítica, intensa e tão bem informada como a dele", materializada em "soluções plásticas muitíssimo interessantes. A obra dele, como a conversa dele, como os textos dele, são muito feitos de sobreposições".

Eduardo Batarda, Outra vez não − CDG (2011), tinta acrílica sobre tela.
Eduardo Batarda, Outra vez não − CDG (2011), tinta acrílica sobre tela.D.R./Museu de Serralves

A última grande exposição individual de Eduardo Batarda foi no MAAT, em 2016/2017, intitulada Eduardo Batarda. Misquoteros – A Selection of T-shirt Fronts, com curadoria de Ana Anacleto e João Fernandes, com cerca de 30 telas. "O recurso à ironia, ao registo tragicómico e ao sarcasmo (sobretudo virado para si próprio e para o desempenho da sua condição de artista) alia-se às questões inerentes à prática e à história da pintura", escreveram os curadores sobre este conjunto de telas que Eduardo Barata considerava uma só obra.  

"As pinturas eram inteiramente cobertas de texto, não sabíamos bem se havíamos de as ler, se havíamos de as ver. Mas vendo-as, éramos obrigados a lê-las, e a lê-las em contínuo. Cada uma era uma espécie de página de um livro. No catálogo, esse texto está inteiramente vertido. É um texto muito divertido, mas não é de um humor muito leve, é um humor muito difícil de alcançar", diz João Pinharanda.

'Eduardo Batarda. Misquoteros – A Selection of T-shirt Fronts', no MAAT.
'Eduardo Batarda. Misquoteros – A Selection of T-shirt Fronts', no MAAT.D.R./MAAT

Mariana Pinto dos Santos, curadora e historiadora de arte, que estudou a sua obra no âmbito académico, destaca que "há um lado de jogo, enquanto observadora das telas dele, eu senti esse jogo, que era desafiada para um jogo e que esse jogo intelectual e visual era sempre ganho por ele, sem dúvida. Ele ganhava sempre".

A historiadora observa que nas aguarelas dos anos 70 havia muitas inscrições e que estas regressaram nas séries mais recentes. "Ele era um escritor magnífico. Ele fez muitos textos sobre o seu próprio trabalho, que eram sempre bastante irónicos também, ou seja, sempre também a minar possibilidades interpretativas, e muitas vezes combinava pintura e texto e, nas últimas obras que fez, na última exposição, voltou a combinar texto e imagem, de uma forma muito interessante e desafiante também".

O título da exposição, Misquoteros, é em si um jogo de palavras, do inglês misquote (citar algo erradamente) e de mosqueteiros. "Ele fazia imensos jogos de palavras deste género, vale a pena lê-los e vê-los nas pinturas", diz Mariana Pinto dos Santos, que trabalhou de perto com Eduardo Batarda no textos para a exposição retrospetiva de 2011/2012.

Isabel Carlos, curadora do Pavilhão Julião Sarmento, considera que Eduardo Batarda deu um "enorme contributo para a pintura portuguesa dos finais do século XX, inícios do século XXI, desde o primeiro registo pop, cartoon e BD, até à abstração mais recente". Mas ela era sobretudo uma grande amiga de Eduardo Batarda, que descreve como pessoa de "humor finíssimo, de uma atenção e dedicação extrema, uma boa companhia". E revela que Eduardo Batarda, apesar de doente, continuou a pintar até à cerca de um ano.

Eduardo Batarda, em 2018.
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