O primeiro filme realizado pela americana Miranda July, lançado em 2005, centrava-se na personagem de uma jovem adulta que ela própria interpretava. A sua odisseia paradoxal, dramática e burlesca, envolvia os prazeres, sobressaltos e agruras da maturidade — chamava-se Eu, Tu e Todos os que Conhecemos. Vinte anos depois, July assina o romance De Quatro, recentemente lançado entre nós (ed. Quetzal, tradução de Telma Costa). Por uma ironia suscitada pela própria escrita, talvez lhe pudéssemos colar um subtítulo que seria qualquer coisa como “Eu, tu e todos os que conhecemos tão mal”.Quem sou eu? Quem são os outros para mim? Para a narradora de De Quatro, as atribulações que tudo isso envolve são indissociáveis da cruel passagem do tempo: “Há vinte anos estava eu nos meus 20 e tais, daqui a vinte anos estaria na casa dos 60. Não estava mais perto dos 65 do que dos 25, uma vez que o tempo anda para a frente e não para trás, 65 é já amanhã e os 25 algo discutível”.Tendo em conta que July já passou a barreira dos 50 — nasceu em Barre, Vermont, a 15 de fevereiro de 1974 —, seremos tentados a ler o romance como uma deambulação existencial da própria autora (por interposta personagem). A tentação será tanto maior quanto a protagonista é uma artista californiana de múltiplas linguagens, rimando com o facto de July, além de escritora e cineasta, ser também uma criadora de instalações e performances (a sua mais recente exposição teve lugar na Fundação Prada, em Milão, de março a outubro de 2024).Seja como for, não estamos perante uma dessas confissões anedóticas sustentadas pela “ideia” segundo a qual quem souber colocar umas quantas vírgulas no meio de algumas frases pretensiosas está a elaborar um sermão capaz de redimir as vidas dos pobres leitores. Nada a ver, ainda menos, com as prosas de “autoajuda” que por aí circulam. De Quatro parte de um pressuposto primitivo, tão desesperado quanto poético: “Ninguém sabe o que se passa. Somos atirados para as nossas vidas por um vento que começou a soprar há milhões de anos”.Significa isto que, instante a instante, a vida se faz de coisas espontâneas e misteriosas, num ziguezague que, mesmo nas situações mais dramáticas, atrai os sobressaltos da comédia. Assim, a heroína de July despede-se do marido e do filho, em Los Angeles, para uma viagem, de carro, rumo a Nova Iorque: serão duas semanas para alguns eventos relacionados com a sua arte e, sobretudo, para revigorar corpo e alma... Só que, percorridas umas poucas dezenas de quilómetros, sai da autoestrada, instala-se num motel e encomenda à respetiva gestora, Claire, uma nova decoração do seu quarto (que passa a merecer a designação de suíte), ao mesmo tempo envolvendo-se com Davey, o jovem marido de Claire, numa bizarra comédia sexual.Sexual? Ainda que evitando revelar mais do que é devido, convém dizer que as tardes partilhadas pela nossa narradora e o talentoso Davey (que, afinal, possui dotes invulgares de bailarino) estão longe de satisfazer a banal noção “telenovelesca” da relação sexual como uma ginástica mecânica de mútua satisfação. Mas será que o par tem, em algum momento, alguma relação sexual? A aparente ligeireza da comédia contém, afinal, um verdadeiro tratado de introspeção: “Sem o saber, sem compreender verdadeiramente, tinha sido um corpo para as outras pessoas, mas sem conseguir ter um corpo para mim.” Ou seja, com Davey, ela sente-se “inteiramente presente, se é que isso ainda importa”.Anti-romantismoClaro que a relação com Davey vai arrastar um preço nada romântico. Claro que o regresso ao marido e ao filho não será uma mera repetição do que acontecia antes. Claro que a proximidade da menopausa circula por todos os capítulos como uma barreira, mas também um fantasma, porventura uma paradoxal libertação...Miranda July trata tudo isso como uma verdadeira aventura literária de descoberta e autodescoberta, não se coibindo, alegremente, de recorrer a um elaborado calão sexual aplicado ao corpo feminino (e também ao masculino). Convenhamos, aliás, que se fosse um homem a utilizar os mesmos palavrões haveria uma certa “pureza” dos costumes que não deixaria de o acusar de desrespeitar as mulheres... Indiferente a tudo isso, e um pouco à maneira dos seus filmes (lembremos também O Futuro, 2011), a autora transforma De Quatro num genuíno labor de medo e maravilha face aos enigmas que o mundo gosta de preservar..Valter Hugo Mãe: "A verdade é muito digna. Mas eu trocaria a verdade por um verso"