Valter Hugo Mãe: "A verdade é muito digna. Mas eu trocaria a verdade por um verso"
Valter Hugo Mãe, escritor premiado – ganhou o Prémio José Saramago com o remorso de baltazar serapião, em 2006, e o Prémio Oceanos com a máquina de fazer espanhóis, em 2010 – acaba de lançar A Educação da Tristeza, um livro de não ficção que reúne 27 textos escritos ao longo de ano e meio. No ano passado publicou o romance Deus na Escuridão e em janeiro de 2006 deverá lançar o próximo. Vai ser sobre duas costureiras, patroa e empregada, “as duas muito falidas, muito sem futuro” que não vão ter nome, porque “as mulheres valem pelo que fazem”, revela ao DN. É o protagonista do documentário O Lugar Nenhum - O retrato de Valter Hugo Mãe, do cineasta Miguel Gonçalves Mendes, que foi apresentado no início deste mês, mas ainda não tem data de estreia. O que iremos ver? “Um Valter Hugo Mãe parecido com o Miguel Gonçalves Mendes, porque se há coisa que eu aprendi em observar um documentarista a trabalhar, é que o documentado transforma-se no documentador”, diz o escritor.
O livro A Educação da Tristeza é muito bonito graficamente. Fez os desenhos de propósito ou aproveitou-os?
Foram feitos para o livro. De início, eu até achava que o livro seria editado de uma forma um pouco austera, correspondendo, assim, a uma certa solenidade do que retrata o livro, do que o livro fala. Mas depois, na editora, alguém disse, Valter, talvez fosse interessante, como é um livro curto, ser enriquecido com os teus desenhos, uma vez que a Isabel era pintora, e uma vez que tu dizes que os teus desenhos começavam na relação que tinhas com ela. E, na verdade, o livro está muito em volta do desaparecimento da Isabel e do meu sobrinho, do Eduardo. E a relação que eu estabeleci com o meu sobrinho, quando eu cuidava dele, quando ele tinha três anos, também passava pelo desenho, era o que nós fazíamos, era a maneira de o entreter, era a maneira de comunicarmos. E então os desenhos têm muito que ver com isso. A Isabel era pintora de facto, toda a vida quis que eu soubesse pintar, faço uns bonecos aleijados, mas ela queria que eu pintasse. Eu adoro artes plásticas, adorava ser um artista plástico, mas eu adorava ser muita coisa.
Mas não é também? Tem um ateliê, já fez exposições...
Mas eu sou mais cobiçoso do que efetivamente. Sou um amador, nesse sentido de amar as coisas e deito-me a fazer, mas eu acho que sou um escritor, sonhei muito em ser um escritor, por isso tenho que estar grato por isso, mas depois gostava de saber fazer tudo.
A Educação da Tristeza tem a ver com a morte do seu sobrinho e de Isabel Llano, como disse. Escrever este livro foi uma forma de lidar com estas perdas, de fechar “um ciclo de tristezas”?
Foi. A tristeza eventualmente não acabará, mas foi um livro que se me impôs, gostaria de não ter motivos para escrevê-lo, mas ele aconteceu de alguma forma. Esta coisa que a literatura tem de nos iludir, parecendo transformar o que nos acontece numa obra de arte, transformando aquilo que nos falha, falta, magoa, entristece, em algo que subitamente pode ser pelo menos belo, é irresistível. E se num primeiro momento o sofrimento, a dor, instala em nós uma sensação de destruição que não é fértil, só tem mesmo isso, a perceção da destruição. Num momento seguinte há qualquer coisa que nos impele para um regresso à vida, que nos impele para uma sobrevivência e que nos diz, olha, ainda estás vivo, e a melhor ideia nisto tudo é, de facto, voltar à vida.
O primeiro texto deste livro intitula-se Fazer Alegria...
É porque é a única estratégia possível, é a única decência, eu diria assim. Eu gosto muito desta noção, é a única decência que nós temos na existência, em existir, é, custe o que custar, voltar sempre à alegria, fazer sempre a alegria. E nós sabemos perfeitamente que a vida vai ser um convite para todas as fraturas, inclusive, no fim, termina sempre mal para cada um de nós.
Mas quando diz que fará alegria, a alegria faz-se? Em muito do que escreve há essa ideia de que nós somos donos do nosso sentir.
Estou profundamente convencido disso, que a vida propõe-nos coisas más e coisas boas. As coisas más a vida normalmente oferece, as coisas boas ela simplesmente tolera, não nos oferece, assim, de mão beijada. As coisas boas implicam esforço e foco e até algum talento. Mas as coisas más, mesmo quem não faça nada, vão acontecer. Agora, a alegria ou a felicidade, é uma construção cultural, é uma força em cima da inevitabilidade de estarmos aqui para cair. Sinto muito que eu só sucumbo se verdadeiramente o permitir. Em última análise, é uma decisão. No fim das contas é uma decisão que precisamos de tomar. E neste livro, a dada altura, há uma expressão que eu acho que é fundamental que é, eu jamais humilharia os meus mortos fazendo com que eles significassem na minha vida uma tristeza. Eu preciso de dignificá-los com a felicidade, por isso, as pessoas que eu perdi, elas precisam de existir na minha vida como uma felicidade. Seria destituí-los da sua própria dignidade se eles para todo o sempre me atribuíssem a tristeza. Era injusto para eles que eles fossem o significado da tristeza.
Escreveu estes textos já a pensar em publicá-los como livro?
Não. Um ou outro apareceu como crónica e foram pensamentos que eu não consegui disciplinar ou que eu não consegui conter. Foram aparecendo e eu pensei, pronto, eu quero dizer isto por algum motivo, eu quero passar a ter isto como um objeto um pouco exterior a mim. E cada texto depois de o ser, também pode ser um pouco uma mentira. Enquanto não é texto, é só um sentimento meu, tudo é verdade, mas quando vira texto é literatura, a literatura, em princípio, é um artefacto, é uma artesania qualquer que a gente inventa e passa a ser externo. Passa a ser um objeto ou outro que não sou exatamente eu e torna-se uma ajuda.
Qual foi o primeiro texto que escreveu?
Talvez as primeiras coisas que eu comecei a escrever tenham a ver com as obras da casa. Quando o meu sobrinho é diagnosticado, ele é imediatamente diagnosticado com cancro terminal, e isso aconteceu quando ele tinha 14 anos, deram-lhe seis meses de vida, no máximo. E eu tinha acabado de comprar uma casa que seria a minha casa de sonhos e estava a preparar as obras da casa e a primeira coisa que eu senti que estava completamente desajustada da realidade foi o ter sonhado aquela casa para aquela criança, era o meu afilhado, ter sonhado que a minha família faria ali a maior das alegrias e, de repente, eu não ia ter tempo de concluir as obras e de ter uma casa e de criar esse espaço de sonho onde o meu sobrinho ainda pudesse aceder àquilo que podia ser uma experiência de felicidade. Subitamente, eu estou diante de uma criança de 14 anos e parece-me que tenho de encontrar a felicidade para lhe a dar em seis meses, e a primeira coisa que senti é que não tinha onde fazer essa felicidade, eu estava desalojado. Quando uma tristeza tão grande acontece, não cabemos em lado nenhum, estamos na rua, e nesse caso a questão das obras da casa colocaram-se muito importantes, porque eu não estava só na rua, eu estava a tentar pagar pelo silêncio, pagar pelo sossego, por um certo respeito pela necessidade de não ter de me preocupar com mais nada, de não ter a toda a hora alguém a ligar-me a dizer que acabaram parafusos ou que a tijoleira não chega, que é uma coisa que se torna tão fútil, tão agressivamente fútil, quando de repente nos dizem que uma criança morre.
Este livro é para ser lido de fio a pavio? Não tem índice...
As pessoas podem ir respirando. O tamanho das expressões para quem passou por aquela situação tem uma medida muito diferente do que pode ter para outra pessoa, que simplesmente perspetiva as coisas ainda na posição de quem pode abeirar o mesmo tipo de sofrimento. E eu percebo que entro neste livro com uma coragem que alguns leitores poderão não ter. Eu posso ser muito concreto. O meu pai morreu há 25 anos e eu leio com muita facilidade textos sobre os pais que morrem. A minha mãe tem 85 anos e eu não aceito ler textos sobre mães que morrem. Eu odeio livros onde as mães morrem e até lhe posso dizer que censuro os livros quando leio um romance qualquer e há uma passagem onde uma mãe morre. Tenho um pincel de tinta da China e cubro aquela passagem e o livro é guardado na minha biblioteca claramente censurado, assim, ostensivamente censurado. Há um sofrimento que é património meu e há um sofrimento que eu sei que vai ser património meu, mas que eu recuso o tanto quanto possa. Por isso, eu suponho que as pessoas vão ler este livro consoante o património que tenham, a bravura que possam apresentar e algumas pessoas vão parar várias vezes, certamente.
Sabe quantos textos tem o livro?
Por acaso, não sei. Eu sou pouco matemático, sou todo intuitivo.
Tem 27.
27, não gosto [risos]. Quando era miúdo achava que o meu número da sorte era o 28. Curioso, quando reimprimirmos quero acrescentar um texto.
E o texto 25 intitula-se Feliz Natal...Há alguma lógica na ordem dos textos no livro?
Eles foram escritos talvez num tempo de ano e meio e foram-se sequenciando mais ou menos como estão. Eu aldrabei um ou outro, escrevi antes e pus para depois, porque achava que não fazia sentido ser Natal muito tempo. Tinha que ser Natal no início do livro e Natal para o fim do livro. Senão é muito Natal junto. Preciso de dispersar um pouco as coisas para compor mais este ano desgraçado. Então há aí alguma mexida. Por isso é que eu também dizia que, na verdade, nós nunca escrevemos uma autobiografia. É sempre uma mentira, é sempre uma composição, é sempre uma construção.
Trabalho de edição neste caso?
E é uma construção, inclusive. E eu sou muito fascinado pela dimensão poética do texto. E acho que escrevo, sou escritor exatamente por causa da poesia. E por isso, muitas das vezes, eu não opto por escrever a mentira, mas o esplendor de uma frase conquista-me. Eu lembro-me muito do Torga que no Diário dizia à mulher, à esposa dele ‘quero sempre que saibas que te amo. Mas também que em todas as ocasiões te trocarei por um verso.’ Eu acho de uma honestidade... Que não é contra a esposa do Torga, ele não teria problemas com a esposa.
Mas essa construção é a pensar no leitor ?
Não, é a pensar no verso. Quando um verso se coloca como um esplendor qualquer. Como uma coisa gloriosa que alcançamos. Nem que seja por estupidez, por ilusão, por utopia. Nós paramos ali deslumbrados e a vida toda parece justificar-se por aquilo. E é o problema dos artistas todos. Por isso é que somos todos considerados um bocadinho malucos. Ou capazes de uma maluqueira qualquer. Eu não acho que tenha a ver com loucuras. Não é uma loucura. Mas é uma folia que é construída na hipótese de encontrar alguma coisa que não foi encontrada antes. O verso é isso.
É criação?
É passarmos pela vida não só como criaturas, mas como criadores. E eu acho que quem procura fazer arte procura isto. A verdade é muito interessante e muito digna. E tem muita decência. Eu não trocaria a mulher, mas trocaria a verdade por um verso. Em todas as oportunidades, eu trocaria a verdade por um verso. Prefiro ter um verso do que ter a verdade.
A certa altura, num dos textos, parece sugerir que a sua arte está a ser um estorvo para a sua escrita.
É porque eu rabisco e isto leva muito tempo. Eu fico a rabiscar e depois, no fim, não é o Caravaggio. Se eu estivesse três semanas ou duas semanas a rabiscar um papel e no fim eu visse um Caravaggio, eu pensava, fui mesmo esperto, em vez de estar a escrever um livro, fui mesmo esperto a pintar estas coisas. Mas eu sei que não são.
Mas está a ser mais difícil para si escrever?
É muito mais fácil de escrever agora, no sentido em que se eu estivesse na escola e a professora dissesse, faça lá uma redação, eu, em dez minutos, despachava o desafio. Mas a questão é que aquilo que se torna muito fácil de escrever deixa de ser interessante. Parece-me correr o risco de não acrescentar nada àquilo que eu já fiz. Então, de facto, a passagem para o lugar da escrita é cada vez mais estreita. Porque eu atafulhei com muita coisa. Quando se começa a ter muitos livros, há muita obra feita, o caminho onde se colhem as coisas, o lugar fértil onde as coisas estão à minha espera, ele vai ficando tomado. Então, eu preciso de chegar mais para lá, preciso de passar para um espaço onde nunca entrei. É como se eu precisasse de encontrar um mecanismo de não ser quem sou, para passar a ser outra coisa qualquer, outro autor. Isso é que era uma coisa maravilhosa. Mas não era um autor qualquer, era um autor que fosse bom. Mas outro autor.
“É urgente ver tudo num só olhar. Sem isso, a capacidade de detalhar o livro desaparece”. O que é que esta frase, que está no último texto, Voltar ao Livro, diz sobre o seu processo criativo?
Eu não consigo montar os livros como se fossem frankensteins, assim, feitos às peças. Para mim, um livro tem de imitar o fruto. Mas é imitado, porque um livro não é um fruto. Nós não somos árvores e não temos essa maravilhosa capacidade de ser uma macieira e produzir maçãs com toda a simplicidade. Um livro não é simples.
Não é uma dádiva tão milagrosa quanto acontece com o fruto. Por isso, ele é uma obra de engenharia. É uma coisa cheia de mentiras e de coisas postiças e de mecanismos postiços e falsidades e invenções e recuos. Agora, a intenção é fazer com que ele imite o fruto. A intenção é fazer com que ele surja e pareça tão natural quanto um filho. Mas ele precisa de ter essa performance. Ele precisa de ter essa intenção. É como se fosse um organismo que é inteiriço, que se forma num só, numa completude. Por isso, ninguém inventaria um organismo criando um braço em dezembro e uma perna em agosto para nascer depois, passado dois anos e meio. Não, tem de ser um fôlego, um olhar só. Uma coisa que pareça feita num só instinto de escrita.
Quando fala depois em detalhar...?
Isso faz-se não saindo do foco e passando, por exemplo, dois, três anos ou quatro anos, ou o que for preciso, sem sair de dentro do livro. Por isso é que as senhoras têm de ficar fora do verso, por maior que o amor seja. Porque o livro precisa de estar em todos os instantes. Eu sei que há pessoas que escrevem livros maravilhosos no meio de férias e entre férias, e a tratar de assuntos burocráticos, e preenchem declarações do IRS, e depois escrevem um capítulo, e no dia seguinte vão ao casamento, e uma semana depois escrevem outro capítulo. Eu não consigo. Eu posso ir a um casamento, mas eu só lá estou fisicamente, porque a minha cabeça está sempre no livro. Não presto atenção, não me comovo, não quero saber, desejo muitas felicidades, mas na verdade só me interessa o verso.
Em que é que está a trabalhar? O que pode dizer sobre o próximo romance?
Estou a escrever um romance sobre duas costureiras, uma patroa e uma empregada, e as duas muito falidas, muito sem futuro, mas em que a relação se confunde, porque a patroa, por ser patroa, nem por isso sabe fazer nada. A empregada é sempre a empregada, é a única que tem a ciência, e então a empregada um dia constata que se é ela que ganhou dinheiro, talvez ela deveria ser a patroa, porque é ela que consegue.
E já têm nomes essas mulheres?
Não têm nomes, não sei se devia dizer isto, mas as mulheres neste livro, nenhuma mulher neste livro tem nome. Nenhuma vai ter, a minha ideia é que as mulheres valem pelo que fazem.
Tem título, ou fica para o fim?
Não tem título ainda, honestamente, não. Por acaso eu preciso sempre de títulos e ando angustiado à procura. Já lhe dei montes de títulos, mas não estou convencido, sei que não tenho título.
Quando prevê publicá-lo?
Eu quero muito que ele saia em janeiro.
Voltando ao A Educação da Tristeza, no texto Notas Incompletas sobre os Assuntos do Tempo, diz que “o tempo separa gravemente, é um roedor”. Interessa-lhe explorar o tempo na sua literatura?
Sim, interessa-me ofender o tempo. Interessa-me protestar. A grande tragédia da nossa vida é o tempo. Passa demasiado rápido. Eu não dei conta, eu fui roubado. Estava muito distraído. E depois antigamente as semanas duravam uma semana, agora duram umas horas. É sempre segunda-feira, ou é sempre sexta-feira, ou é sempre domingo. Tenho a sensação de que, sei lá, acordo, tomo o pequeno almoço e é outra vez domingo. Não tenho tempo para fazer tudo aquilo que eu quero fazer. Estou à pressa, estou à pressa, estou à pressa. E por mais que eu me apresse, dá-me a sensação de que mais o tempo foge.
Escreve muito, há um sentido de urgência? Aliás, nesse mesmo texto fala no episódio da exumação do corpo do seu pai, e diz que colocou tudo em perspetiva - “tudo é urgência e tudo é pouco”.
Sim, foi horrível. Eu nunca pensei poder ver o cadáver do meu pai, dez anos depois. Pensei que ele estivesse reduzido a uns ossos brancos, como se fossem umas porcelanas que a gente recolhesse para levar para outro lado. Mas como o corpo não se desfez, só se desfez a cabeça - podia ter-se desfeito outra parte, mas foi logo a cabeça. A coisa mais identitária e que seria mais importante de ver intacta, foi o que desapareceu. E por isso fiquei muito arreliado, porque aquilo também é um tempo ilógico, é um tempo que não tem respeito nenhum, não tem decência nenhuma. Dez anos e a porcelana não está pronta, não está limpa. Deve haver garantia, deve haver respeito. Eu e o meu irmão fomos uns lorpas, ingénuos, porque estávamos ali à espera de alguma coisa que não nos assustasse. Que nos pudesse comover um bocadinho, mas era comichãozinha de que nós, como grandes machos, não tivéssemos medo. De repente, ver o corpo, ver os órgãos...
Isso foi há quantos anos? Teve impacto em algum dos seus livros?
Foi talvez há 15 anos. Algumas trevas dos meus livros, certamente foi porque eu fui àquele lugar e vi aquilo. Eu lido muito com uma certa fisicalidade. E a experiência de ver o cadáver do meu pai daquela forma é uma fisicalidade extrema. Há momentos nos meus livros em que o que está em causa é a carne. E nós quando estamos a ler, ou quando eu estou a escrever, eu tento que as palavras não estejam em questão. O que está em questão é uma espécie de abeirar o corpo, estou a abeirar o corpo. E normalmente o corpo é sempre uma equação muito difícil. Uma equação magoada, mutilada, aleijada. Claro que ter visto o meu pai daquela forma ... Enfim, não preciso de ver filmes de terror. A realidade é muitíssimo mais escabrosa.
O sentido de urgência e sobretudo a sensação de ser imprestável de qualquer maneira. De não dar certo. Eu sei que todas as coisas que fazemos e toda a impressão de sucesso que possamos criar na nossa vida é para que a derrota aconteça maior ainda. Quanto mais tivermos, mais sabemos que vamos perder.
O filme O Lugar Nenhum - O retrato de Valter Hugo Mãe, de Miguel Gonçalves Mendes, foi apresentado este mês, ainda sem data de estreia. Que Valter Hugo Mãe iremos ver?
Um Valter Hugo Mãe parecido com o Miguel Gonçalves Mendes, porque se há coisa que eu aprendi em observar um documentarista a trabalhar, é que o documentado transforma-se no documentador. Há muita coisa que ele mostra e que, estando eu em ação, corresponde sobretudo à angústia específica do Miguel. É muito curioso. De facto, talvez seja o que todos nós fazemos, ou desde logo o que fazemos com a literatura.
E vamos ver alguma faceta sua menos conhecida?
O filme é muito verdadeiro, porque ao fim de tanto tempo é impossível a gente manter máscaras e deixar demasiado de fora à pessoa que está a filmar. O que vão ver é algo que parece mostrar uma naturalidade muito grande. E, na verdade, filmando, parece tudo muito glamoroso, mas depois vendo o filme percebe-se que a vida de um escritor é uma palermice, porque nós escrevemos virados para umas paredes, e escrevemos em qualquer canto, estamos sempre como aflitinhos a tomar notas. Parecemos uns beatos de uma religião em que ninguém acredita, uma religião muito solitária onde só nós é que estamos. Somos, francamente, bizarros e até desadequados. As pessoas quando pensam em ser escritores, eu acho muito bem que queiram ser escritores, mas não é a profissão, não é o caminho mais sexy, não é a existência mais esplendorosa. A gente imagina tudo, é tudo ficção, a grande maravilha é por dentro da cabeça, por fora estamos encalhados.
Mas a escrita é o seu propósito?
É o meu sonho, estou a viver o meu sonho. Eu queixo-me muito da vida que levo, mas sou grato. Os meus grandes heróis, as minhas grandes heroínas, todas sofreram incrivelmente. Por isso, por vezes penso que se o Tolstoi foi o desgraçado que foi, o Proust, o Kafka, foram todos uns angustiosos, a Virgínia Woolf, meu Deus, que a mulher não podia sofrer mais, até a Florbela Espanca foi uma desgraçada. Como não haveria eu que sofrer um pouco também.