Para Joaquim Arena, este novo romance encerra a trilogia sobre os negros que vieram para a metrópole.
Para Joaquim Arena, este novo romance encerra a trilogia sobre os negros que vieram para a metrópole.

Romance sobre o antigo Texas de Portugal

 Joaquim Arena retrata em As Mortes do Meu Pai a violência do século XIX, recuperando o episódio de rebelião de Remexido que durante anos alvoroçou o Algarve.
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Antes de mais há que enquadrar o tempo do novo romance de Joaquim Arena, As Mortes do Meu Pai, pois é cenário temporal que a quase totalidade dos portugueses em muito desconhece: 28 de julho de 1838. Esta pode ser a data mais emblemática pois é quando o “herói” deste romance, José Joaquim de Sousa Reis, mais conhecido por Remexido, é capturado pelo exército liberal e conduzido para Faro, onde é levado a Conselho de Guerra e fuzilado em menos de uma semana. Ou seja, estamos perante um livro que regressa às lutas entre D. Pedro e D. Miguel, e a um período bastante prolífico em acontecimentos políticos de exceção e confrontos populares. Uma revolta que, assume Arena, lhe faz “lembrar o romance de Vargas Llosa, A Guerra do Fim do Mundo, no qual existem dois mundos distintos que se opõem no Brasil do final do século XIX: a república e António Conselheiro, representando este o antigo regime.”

Esta época da História de Portugal, o século XIX, continua muito ignorada pelos portugueses, daí que se questione o escritor Joaquim Arena sobre a escolha desse tempo e de como foi inteirar-se destes anos, principalmente os vividos tão a Sul? Começa por referir a sua paixão pela História desde criança e também pela Geografia, enquanto estranha que a época escolhida para a narrativa seja completamente desconhecida dos portugueses: “Não o deveria ser.” Explica o porquê: “Esta primeira metade do século XIX é a época mais violenta que o país conheceu, em que mergulha numa guerra civil, seguida de uma guerrilha nas serras do Algarve, para além de bandos de insurgentes por todo o Alentejo. Mas há razões para a violência porque se vive um período de transição do antigo regime para o que se pode chamar de modernidade. Ou seja, o reflexo das ideias napoleónicas vindas da Revolução Francesa, com a Carta Constitucional a ser o garante dos direitos dos cidadãos, assim como o Código Civil. Há uma rutura no modelo de sociedade e de governo, que parte do país não apoiava por estar ainda muito ligado à ordem anterior, a do Rei absoluto e a da Santa Aliança entre o Trono e o Altar.”

Também se questiona sobre o protagonista escolhido: “Quando descobri Remexido, fui procurar tudo o que havia sobre ele. O que mais me fascinou desde logo foi essa adesão completa à ideia do trono e do altar e o esforço, que pagou com a sua morte e a de dois dos seus filhos, para que D. Miguel voltasse a instalar o absolutismo em Portugal numa verdadeira epopeia contra o ritmo dos tempos. Em seguida, descobri que mal começava o Alentejo, o Sul foi sempre caracterizado pela violência desde a Idade Média e onde as autoridades sempre tiveram problemas com assaltos, banditismo e assassínios. Encontrei registos e relatos de uma «terra sem lei» sobretudo no século XVIII, o que ajuda a compreender estes bandos de homens à deriva, de bandidos, desertores e assaltantes que se juntaram a Remexido, sempre mais pelo saque do que pelas suas convicções políticas.” Para Joaquim Arena, o Sul de Portugal foi sempre violento: “É uma espécie de Texas ou México de Portugal. Para se ter uma ideia, o último fôlego da guerrilha - mais bandos de assaltantes do que outra coisa - é já a meio do século, 1848/50, com a morte dos irmãos Baiôa, no Alentejo, emboscados pelas autoridades. Ou seja, mais de uma década após o fuzilamento de Remexido.”

As Mortes do Meu Pai é um romance que não surge do acaso, nem será a narrativa que os leitores esperavam após o premiado Síriaco e Mister Charles. Joaquim Arena tem essa consciência: “Acho que é o romance que me esperava depois de Debaixo da Nossa Pele e de Siríaco e Mister Charles e com ele encerro a Trilogia Negropolitana, em que dei voz a homens e mulheres descendentes de escravizados trazidos para a «Metrópole». Negros na Metrópole, os negropolitados, que por cá viveram e se misturaram, fazendo parte da paisagem urbana e rural deste país.” Para o escritor, tanto Siríaco como As Mortes “são uma espécie de spin-off de Debaixo da Nossa Pele, onde Siríaco e a figura de Remexido e a do jovem soldado negro, Domingos, já estão presentes”. Portanto, assegura, “foi uma trilogia que se impôs pelas próprias personagens, pela época e o espaço onde estas histórias decorrem e que fecha um capítulo de romances históricos localizados entre o final do século XVIII e inícios do XIX".

Também existe uma outra novidade em As Mortes do Meu Pai, a de ser escrito num registo que não é o habitual no autor. A história exigia uma outra linguagem e Joaquim Arena confirma-o: “Sim, depois de ter procurado por várias opções, o registo final ficou diferente e pouco habitual pois escrevi o livro todo na segunda pessoa do singular.” Explica: “A primeira razão para fugir ao registo da terceira pessoa ou da primeira, que são os mais usuais, foi o receio de ficar demasiado colado aos factos históricos. Tal acontece em muitas abordagens deste tipo e tive receio de ir «à boleia» dos acontecimentos e tornar a narrativa em algo desinteressante ou pouco dinâmico. A segunda pessoa, além de ser bastante envolvente para o leitor, tem o condão de ser uma escrita evocativa por excelência. Que é o que se passa no livro, quando há uma razão para essa evocação e que é, ela própria, complexa. Ou seja, a filha mais velha confronta o pai com as suas responsabilidades em várias mortes ocorridas durante a luta que opôs a guerrilha miguelista às tropas do exército liberal e depois as da rainha, já com o novo governo estabelecido, após a Convenção de Évora Monte.”

Para Joaquim Arena o registo pode ser diferente no escritor: “Penso que cada história e narrativa exige o seu próprio género, voz ou estilo. Essa é uma busca que cada escritor deve fazer até encontrar o modelo que melhor serve ao seu objetivo. No caso deste livro, embora a pessoa visada fosse Remexido e as suas profundas contradições, as suas diferentes dimensões seriam expostas por uma outra personagem, a filha Maria Marciana. E como já acontecia após ele ter sido julgado, condenado e fuzilado, a linguagem viria carregada não só de desilusão, desencanto e o amor da filha, mas também pretende trazer a busca por um sentido lógico para esses acontecimentos. Também uma procura de justiça, se é que se pode identificá-la numa situação em que cada uma das partes defende com a vida a sua própria verdade.”

Joaquim Arena quis entender a violência algarvia de Remexido 
Joaquim Arena quis entender a violência algarvia de Remexido DR/Tania Contrastoc

É impossível não querer entender a escolha da filha de Remexido para protagonista de um romance no qual pretende compreender as atitudes do pai. Pergunta-se ao autor se, sendo elas tão cruéis e de difícil entendimento, considera que o romance consegue justificar os seus atos? Segundo Joaquim Arena, o que desejou foi levantar questões e não há qualquer tomada de partido: “As personagens vivem num mundo de muita contradição, como é o caso de Remexido, a quem a filha Marciana questiona sobre as suas decisões; se as quis mesmo tomar e estava consciente da injustiça delas. De um homem católico convicto e que manda, por exemplo, fuzilar o padre que um dia o casou e lhe deu esse sacramento. O romance serve, principalmente, para que a personagem da filha procure essas explicações, se é que existem, e através da sua inquietação, levar ao leitor uma época que Portugal viveu e que hoje é como se não tivesse existido.”

Neste romance sabia-se de antemão o final. Como se segura uma narrativa com o desfecho anunciado? Joaquim Arena considera que foi um risco que correu: “Partindo de um facto histórico, entendi que a analepse poderia ser um recurso para trazer dinâmica à estrutura narrativa, para além de nunca se afastar do presente. É a articulação entre o passado, quer da família do Remexido, com passados mais recentes, dos acontecimentos da guerra, e o presente da filha Marciana. Para mim, as dinâmicas da narrativa são muito importantes, e, mais do que as personagens, é a dinâmica da narrativa que dá gás à história, com os vários momentos misturando-se e alimentando a narrativa de forma orgânica e como um ser vivo e em ação. Na minha opinião, muitas das melhores ficções partem do final e, entre as minhas várias opções iniciais, foi esta que logo se revelou mais adequada.”

Ao investigar a documentação sobre aquela época, o escritor não ficou indiferente, antes chocado com os relatos que consultou. Dá um exemplo: “Sobretudo com o episódio de Albufeira, que ocorreu ainda durante a guerra civil, em 1833. De acordo com os registos, foram massacradas para cima de 60 pessoas, entre soldados, homens e mulheres, a tiro, à baioneta, atirados pelas escadas, das varandas. Foi um ato de pura crueldade, baseado em disputas antigas entre liberais e absolutistas, em ajustes de contas de gente expulsa da vila e que ao regressar só pensa em vingança. Mas também o que se passou em Loulé, com gente assassinada de forma gratuita, neste caso sem que Remexido pudesse evitá-lo. Durante os dois anos, de 1836 a 1838, há assassínios de ambos os lados. Famílias que apoiavam os liberais são «passadas pelas armas» ou «atiradas para o barranco», como diziam. Os guerrilhas apanhados pelas tropas liberais eram sumariamente julgados e fuzilados, incluindo os menores de 16 anos. Se são fidedignos ou exagerados estes relatos, isso cabe aos historiadores dizer. Eu sou um escritor, ficcionista, desde que façam sentido, numa determinada narrativa, posso utilizar essa documentação. Aliás, fi-lo, quando acrescento mais casos e vítimas, etc, situações criadas por mim e misturadas com as outras.”

Estando o leitor a viver atualmente uma época de grande violência bélica, pergunta-se a Joaquim Arena se a vivida naqueles anos difere da que a humanidade vem mantendo no presente. Responde: “Toda a época tem a sua violência e as suas verdades. Os defensores de D. Miguel diziam às tropas liberais que os podiam matar mas não iriam denunciar Remexido ou revelar o seu paradeiro. Os bandos de guerrilhas só existiram por causa do apoio da população e os liberais perceberam isso. Quando controlaram esse apoio popular, em víveres sobretudo, a guerrilha definhou. Mas o que alimentava essa guerra e depois a guerrilha foi a fé. Uma fé numa determinada forma de sociedade, uma crença e devoção que cegavam. Remexido era profundamente religioso e hoje seria considerado um fundamentalista e um radicalizado.”

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Joaquim Arena

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