Marguerite Duras (1914-1996): escrever é um "vaivém entre mim e mim".
Marguerite Duras (1914-1996): escrever é um "vaivém entre mim e mim".

Memórias de um filme nascido das palavras

Lançado em 1959, Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais, foi um dos filmes fundadores da Nova Vaga francesa. O respectivo argumento, da autoria de Marguerite Duras, é um invulgar objecto literário, agora reeditado no mercado português — ou como o cinema pode começar na arte da escrita.
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Está de volta ao mercado português um dos livros mais célebres, e também mais fascinantes, de Marguerite Duras (1914-1996): Hiroshima, Meu Amor (tradução de Maria José Palla e M. Villaverde Cabral, ed. Quetzal). A sua história, mais do que isso, a sua identidade é indissociável do filme homónimo de Alain Resnais (1922-2014), lançado em 1959: a par de títulos como O Acossado, de Jean-Luc Godard, e Os 400 Golpes, de François Truffaut, Hiroshima, Meu Amor foi uma bandeira da Nova Vaga francesa, abrindo as portas de uma modernidade capaz de transfigurar todas as formas narrativas clássicas.

Tudo isto envolve um equívoco ou, pelo menos, uma ambivalência que, por vezes, os clichés cinéfilos tendem a tratar com alguma indiferença. Dito de outro modo: este não é o “romance” que serviu de base ao filme de Resnais, já que foi o próprio Resnais que convidou Duras a escrever para ele um argumento que se chamou… Hiroshima, Meu Amor. Não estamos, portanto, perante uma narrativa que tenha começado por existir enquanto livro: Hiroshima, Meu Amor, de Duras, é um objecto literário nascido do desejo de transformar em livro o argumento que ela escreveu para Resnais.

Por essa altura, Duras tinha já publicado romances tão singulares como Uma Barragem Contra o Pacífico (ed. Difel, 2008), Os Cavalos de Tarquínia (ed. Dom Quixote, 1991) ou Moderato Cantabile (ed. Relógio D’Água, 2014). Em qualquer caso, a sua escrita permanecia exterior ao mundo do cinema — Hiroshima, Meu Amor corresponderia à sua entrada nesse mundo, de alguma maneira “prenunciando” o seu trabalho enquanto cineasta.

Hiroshima, 1957

As marcas da bomba atómica lançada sobre Hiroshima no dia 6 de agosto de 1945 estão sempre presentes, transfigurando a própria percepção do lugar: são marcas realistas e são também fantasmas que desafiam a possibilidade de escrever (ou filmar) a história de tão radical tragédia. Como um desesperado contraponto, Hiroshima, Meu Amor relata o encontro, intenso e efémero, de um homem e uma mulher.

“Estamos no Verão de 1957, em agosto, na cidade de Hiroshima” — assim começa a sinopse que abre o livro. Ficamos a saber que há uma “mulher francesa, de cerca de trinta anos”, que veio a Hiroshima “para interpretar um filme sobre a Paz”. O certo é que a rodagem desse filme (dentro do filme) está a chegar ao fim: “É na véspera do seu regresso a França que esta francesa, cujo nome nunca será mencionado no filme, que esta mulher anónima, portanto, encontrará um japonês (engenheiro ou arquitecto) e terá com ele uma breve ligação amorosa.”

Que acontece, então? “Estão deitados num quarto de hotel. Estão nus. Corpos lisos. Intactos. De que falam eles? De Hiroshima, justamente. Ela diz que viu tudo em Hiroshima.”

Não deparamos com uma simples descrição romanesca. O que Duras propõe é um rol de “acções” que, sem renegar a sua respiração literária, antecipa a matéria de que o filme se fará. Daí que ela avise o leitor (que começa por ser o próprio Resnais) da necessidade de sublinhar o que é esse “tudo” que ela viu, assombrando a frágil ligação do par: “Vê-se o que ela viu. É horrível. Entretanto, a voz dele, negativa, acusará as imagens de mentirosas, repetindo, no seu tom impessoal e insuportável, que ela não viu nada em Hiroshima.”

Será preciso sublinhar a actualidade política desta pedagogia das imagens? Hiroshima, Meu Amor é uma crónica íntima sobre o ziguezague das representações do mundo e o facto de nenhuma imagem esgotar a complexidade da realidade a que se refere. Até porque qualquer imagem convoca outras imagens, pondo em jogo outros olhares, diferentes memórias e imaginações.

Duras vai-nos dando a conhecer a mulher sem nome. Ela “esteve doida em Nevers”, algures na região central do hexágono francês: “Raparam-lhe a cabeça em Nevers, em 1944, aos vinte anos. O seu primeiro amante foi um alemão.” Relativizando todas as geografias, Duras acrescenta que ela sobreviveu também através de Hiroshima: “Deixaram-na numa cave, de cabeça rapada, em Nevers. Só quando Hiroshima aconteceu é que ela já se encontrava em estado de sair da cave e de se misturar com a alegre multidão das ruas.”

O impulso amoroso

Hiroshima, Meu Amor apresenta-se como um texto “quase” teatral, com diálogos e anotações que, de alguma maneira, antecipam as possibilidades da encenação. Ao mesmo tempo, tais possibilidades não se esgotam num discurso “técnico”, já que Duras não abdica de “romancear” as suas indicações.

Por exemplo, a certa altura pode haver uma mudança de tom que surge assinalada por uma breve antologia de referências “visuais” que vão desembocar numa condensação romanesca. Dir-se-ia um poema de formato livre e rimas insólitas: “O tom recitativo cessa. As ruas de Hiroshima; mais uma vez as ruas. Pontes. Passagens cobertas. Ruas. Subúrbios. Carris. Subúrbios. Banalidade universal.” Ou ainda, desafiando sempre a linearidade do tempo: “Em Nevers. Um alemão atravessa uma praça, ao crepúsculo.” E um pouco mais à frente: “Em Hiroshima. Ela abandonou-se sobre a cama, cheia de fadiga e de amor. O dia desceu mais sobre os seus corpos.”

Há na escrita de Duras, não apenas o reconhecimento do impulso amoroso, mas a descrição metódica do seu excesso e, no limite, do seu carácter insustentável, porventura destruidor: “Vamos ficar sós, meu amor. A noite não acabará. O dia não voltará a romper para ninguém. Jamais. Nunca mais. Por fim. Matas-me. Fazes-me bem.”

Lembramo-nos, naturalmente, do filme de Resnais, do modo como Emmanuelle Riva e Eiji Okada interpretam as personagens sem nome nascidas no argumento de Duras. E podemos dizer “naturalmente” porque, para Duras, a arquitectura das palavras é o princípio fundador, não apenas do “visual” cinematográfico, mas do labor específico das imagens e dos sons — como se estivéssemos a assistir a uma descrição antecipada do que, naturalmente e inevitavelmente, irá aparecer no ecrã.

Aliás, essa antecipação não é uma especulação abstracta — funcionou como verdadeiro método de trabalho. Compreendemo-lo através da secção de “Apêndices” com que Duras encerra o livro. São notas soltas sobre elementos muito concretos do filme (e para o filme). Os respectivos títulos referem aspectos a esclarecer nas filmagens: por exemplo, “Sobre a imagem da morte do alemão.” Ou ajudam a reforçar o valor narrativo de elementos muito particulares: “Sobre as imagens do berlinde perdido pelas crianças.”

A vida material

Tudo se passa como se Duras estivesse, não a coligir informações para “facilitar” as filmagens, antes a criar um discurso literário a partir do próprio filme (antes de ele ser filmado). Numa nota de rodapé, ela recorda mesmo o paradoxal pedido de Resnais que deu origem a esses “Apêndices”: “Faça como se comentasse as imagens de um filme acabado.”

Lemos ou relemos Duras, podendo conhecer ou não conhecer o filme de Resnais, mas sentimos sempre que a sua escrita apela a uma “concretização” que, talvez, só o cinema possa fornecer. Hiroshima, Meu Amor, o livro, integra, assim, um gosto de deambulação literária que, de alguma maneira, Resnais transfigurou em parábola cinematográfica.

Daí nasce também a dimensão “autobiográfica” deste exercício de escrita, no sentido em que Duras está longe de se fixar na pergunta clássica: “Como escrever para que, da escrita, nasça um filme?” Hiroshima, Meu Amor é também uma obra sobre a arte difícil, porventura transparente mas indecifrável, de construir um mundo a partir da escrita. Num apêndice dedicado àquilo que aconteceu em Nevers, Duras entrega a primeira pessoa do texto à sua personagem e fá-la dizer o escândalo existencial do amor: “O seu corpo tornara-se o meu, já não conseguia distingui-los. Transformara-me na negação viva da razão. E todas as razões que pudessem opor a esta falta de razão, eu tê-las-ia varrido, e de que maneira: como castelos de cartas, como razões puramente imaginárias, justamente. Que me atirem a primeira pedra aqueles que nunca foram despojados de si próprios. Já não tinha outra pátria senão o próprio amor.”

Podemos parafrasear o título de um livro de entrevistas de Duras com Dominique Noguez, La Couleur des Mots, publicado postumamente (Éditions Benoît Jacob, 2001). Há uma energia na “cor das palavras” que liberta a escrita de qualquer caução enigmática ou esotérica, contemplando e partilhando a nudez da “vida material” — o que, bem entendido não é estranho ao facto de, em 1987, Duras ter publicado um livro sobre “este vaivém entre mim e mim, entre mim e os leitores neste tempo que nos é comum”, a que chamou A Vida Material (tradução de Tereza Coelho, ed. Difel).

No epílogo escrito para as entrevistas com Noguez, esses são elementos de uma solidão primordial, dita de modo singularmente concreto, isto é, material: “A palavra que me provoca mais horror na língua francesa e, creio, em todas as línguas, é a palavra ‘sonho’. Nunca sonhei, é por isso que escrevi.”

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