Como reagem as pessoas quando diz que se chama Safaa Dib?É sempre uma surpresa quando digo às pessoas que o meu nome é Safaa Dib, porque quando olham para mim sentem que eu sou portuguesa. Falo um português perfeito e as minhas feições não lhes parecem de alguém do Médio Oriente. E, portanto, quando sabem que eu tenho um nome tão invulgar, a tendência é perguntar qual é a origem. E quando digo que é um nome árabe e que a minha origem é libanesa, ficam surpreendidos, e têm tendência a fazer muitas perguntas e a querer explorar um pouco a história da minha vida.Dá por si a ter de explicar que é portuguesa, que vive cá desde os dois anos, que é de origem libanesa, mas nasceu no Dubai. Que é árabe e drusa. Como se sente nestas identidades todas?Na verdade, só com este livro é que eu revelei a minha identidade drusa. Até agora, raramente falava sobre isso, mesmo com amigos ou pessoas do meu trabalho. Eles desconheciam por completo essa minha identidade, até porque não conhecem a diversidade do Médio Oriente, não conhecem a realidade das comunidades etnorreligiosas. Era algo que pertencia à minha esfera privada e achava que, se partilhasse, iria criar ainda mais confusão na cabeça das pessoas. Então, limitava-me só a assumir a identidade libanesa. Mesmo assim, muitas vezes perguntam : “Mas que língua é que falas? É libanês?”. “Não, é árabe. Somos árabes”, respondo, e, portanto, acabo sempre por associar a minha identidade ao povo árabe e à nacionalidade libanesa.Quando diz que é libanesa e fala árabe, automaticamente pensam que é muçulmana?Têm tendência a assumir que sou muçulmana. Desconhecem que o Líbano tem uma enorme diversidade de religiões, que, na verdade, é até um país com um sistema multiconfessional, e, portanto, não fazem a mais pequena ideia do que são os drusos.É até o país árabe que, percentualmente, tem mais cristãos em todo o Médio Oriente, além de muçulmanos sunitas e xiitas também, e, claro, os drusos.Desconhecem por completo toda essa parte das identidades religiosas do Líbano, e, sim, assumem que sou muçulmana. Mas, por outro lado, há sempre uma enorme confusão, porque as minhas características não são as que associam normalmente a mulheres muçulmanas. Não veem um lenço islâmico. E agora vou dizer algo que vai soar um pouco estranho, mas, na verdade, olham para mim e dizem: “mas tu és tão branca”? E eu respondo, mas vocês já olharam bem para as pessoas do Médio Oriente? Os árabes e muçulmanos têm olhos de todas as cores, têm peles de todo o tipo de cores e, portanto, não seria correto estarmos a assumir que estamos todos enfiados num mesmo saco, de uma mesma forma homogénea. E, portanto, realmente, ficam muito confusos com a minha identidade. Eu acabo por desconstruir muitos dos estereótipos.Diz que só durante a escrita do livro fez questão de assumir ser drusa. É uma das minorias do Médio Oriente, uma comunidade étnica e religiosa dividida por vários países. A identidade drusa é importante para si?Ser drusa não significa que tenha de seguir um determinado número de rituais ou frequentar um templo. O facto de nós não termos aqui em Portugal locais de representação religiosa faz com que, na verdade, a nossa vida siga a aparência normal de cidadãos europeus. Ou seja, as pessoas não nos associam a uma determinada identidade religiosa. Agora, é verdade que ser druso não é só seguir os trâmites de uma religião. Nós estamos associados a uma etnia, estamos associados a uma comunidade que foi perseguida há mais de mil anos e que se refugiou em determinadas zonas do Líbano, da Síria… Sempre nas montanhas, não é?Sempre nas montanhas. O Monte Líbano, e em certas províncias da Síria ligadas também à cordilheira montanhosa.Também o Monte Carmelo, em Israel.Sim. Em certos territórios que agora estão anexados por Israel também há muitos drusos. E, portanto, como é óbvio, eu tenho consciência de que é uma etnia que ainda por cima é difícil de explicar porque uma coisa é ser um druso libanês, outra coisa é ser um druso sírio ou um druso israelita. Mas sempre tive uma relação difícil com essa identidade porque eu própria levei muito tempo a compreendê-la. Acho que a experiência de escrever este livro ajudou-me também a decifrar a identidade drusa à qual pertenço e tentar fazer as pazes com essa minha herança, de certa forma. Porque ter nascido numa família drusa era assumir que tudo aquilo que os meus pais acreditavam, tudo aquilo que a minha família fazia, era natural. Mas depois, saía da minha casa e no meio da sociedade portuguesa apercebia-me que não, na verdade, não era assim tão banal.Tinha contacto com a realidade drusa, por exemplo, nos períodos que começou a fazer férias no Líbano, em Kaffarmata?Só tinha contacto com a realidade drusa quando ia ao Líbano. Kaffarmata é uma aldeia drusa no Monte Líbano. O facto de só ter contacto com essa realidade quando viajava ao Líbano fazia com que eu, na verdade, não me sentisse assim tão profundamente ligada às tradições. Mas, claro, não podia ignorar que fazia parte dessa herança. E então, à medida que ia crescendo também, eu ouvia muitas histórias que os meus pais contavam sobre as minhas avós, os meus avós, as batalhas e as lutas e as guerras que faziam parte da história do Monte Líbano e dos drusos. E então eu pensei, “há aqui uma história muito rica que se calhar merece ser descoberta por mim”. Eu queria descobri-la e queria perceber até que ponto é que me identificava ou não com essa comunidade. No fundo, é mais uma camada de identidade que eu acrescentei às muitas outras que já tinha. Mas percebi que esta era primordial, porque era a origem de todas.Essas idas ao Líbano foram já depois da guerra civil terminar, em 1990, mas ainda com memórias de violência bem presentes?Sim, a minha primeira vez foi em 1992 e o país ainda estava por reconstruir. Quando passeávamos em Beirute, víamos os prédios quase todos destruídos e esburacados e o território ainda estava muito marcado pelas linhas de divisão que existiam durante a guerra civil. Via-se uma enorme pobreza, e só havia eletricidade poucas horas por dia. E, ainda assim, a vida nas montanhas era relativamente resguardada do reboliço urbano. E tive aquela infância rodeada de primos e tios que acolhiam de forma muito calorosa a família emigrada e que nos tratavam como príncipes. Lembro-me de receber enorme onda de carinho da parte da família, que me marcou muito.Quando foi lá, sabia do massacre que tinha atingido a família em Kaffarmata, que conta no livro? Eu sabia que o meu avô paterno e a minha avó materna e outros membros da família tinham perdido a vida durante a guerra, em 1983, no ano em que eu nasço. Portanto, eu sabia que tinha havido um enorme acontecimento trágico. Os meus pais já tinham falado disso, mas não sabia nada dos pormenores. Nunca falámos dos pormenores. Só agora, com a escrita desse livro, decidi pedir-lhes para contarem toda a história. E falei também com tios e primos que foram sobreviventes. Foi com a escrita deste livro que me apercebi pela primeira vez desse enorme legado de tragédia que marcou muito a aldeia e o país durante a guerra civil. E achei que era uma história que também tinha de ser partilhada..Com esse contexto da guerra civil percebe-se porque o seu pai se sentiu tentado a uma primeira imigração, nos Emirados Árabes Unidos. Mas como Rachid el Dib se lembra de vir para Portugal com a família, pois era casado e tinha duas filhas e um filho?É uma história engraçada que já contei várias vezes. O meu pai está a trabalhar no Dubai num hotel e conhece um pianista madeirense, Eduardo, que lhe começa a descrever as belezas de Portugal. E ele nunca mais esqueceu dessas descrições. Mais tarde, quando decide emigrar para a Europa faz uma viagem por vários países para perceber qual iria escolher, e vai a França, vai à Áustria, vai à Espanha, mas na verdade não fica encantado com nenhum. Depois, quando está em Espanha, pensa “aqui ao lado é Portugal, se calhar vou visitar o país do Eduardo”. E então, quando ele chega a Portugal, há ali um clique qualquer, há ali um encanto, um charme. E ele sentiu “isto aqui para mim é perfeito, tem aqui umas belezas naturais que lembram muito o Líbano”. E depois apercebeu-se de uma coisa fundamental. As pessoas desconheciam por completo a realidade do Líbano, não sabiam nada sobre a identidade árabe, identidade libanesa, sobre a guerra civil, e pensou que era o sítio ideal para nós, porque ele queria afastar-se, sentia uma enorme revolta pelo que tinha acontecido.Como foi a integração? Conta que pensou abrir um restaurante árabe, bem antes do Fenícios.Ele ainda tentou abrir um restaurante árabe quando chegou a Portugal, mas ainda era demasiado cedo, ainda não se conhecia a cultura suficientemente bem para haver interesse. E então decidiu abrir um negócio de restauração portuguesa e a uma certa altura também abriu uma das primeiras pizarias em Lisboa.O tal espírito empreendedor que se associa aos libaneses.Sim, sempre. Porque é aquele espírito comerciante também que fazia parte dos fenícios, noutra época. Mas sim, era sempre nesse ramo da restauração, do negócio, e acho que era a única coisa que ele realmente gostava e sabia fazer. E o processo de integração começa por aí, nós não conhecemos a língua, não conhecemos a cultura, e o meu pai decide abrir o restaurante e depois é uma total aventura para todos nós. E somos nós as crianças, que entramos nas escolas portuguesas e temos de aprender a língua, que, à medida que vamos aprendendo a língua, também vamos ajudando os pais a integrarem-se. Encontraram cá mais libaneses?Havia muito poucos libaneses em Portugal. Quando nós chegámos havia cinco ou seis famílias libanesas que viviam em Lisboa. Que só conhecemos quando chegámos a Lisboa. Eram de diferentes origens, de diferentes estratos sociais, mas que acabaram todas por se juntar e dar bem.E refletiam essa diversidade religiosa que existe no Líbano?Éramos de várias origens, tanto religiosas como socioeconómicas, mas estávamos fora do Líbano e estávamos unidos. O que é irónico, porque enquanto no Líbano estávamos todos separados por religião e classe, fora do Líbano não, não sentíamos essas divisões e acabámos também por estar unidos pela pertença ao país, pela identidade libanesa.Conta que sempre gostou de ler, que leu autores estrangeiros, mas sobretudo muito os portugueses. Essa imersão na literatura portuguesa, foi importante, para que, sendo luso-libanesa, o elemento luso ganhasse força?Acho que foi essencial esse meu contacto com a literatura portuguesa. A forma como começo a devorar os livros, desde a minha idade muito tenra, faz com que eu depois compreenda melhor a cultura, a sociedade e também a própria história. Tinha esta curiosidade insaciável, que me leva a ler tudo, e lia muitos jornais também desde cedo, o meu pai tinha uma enorme paixão pelos jornais que me transmitiu. A literatura foi de, facto, essencial para compreender a parte mais profunda da alma portuguesa, revelada pelos seus autores, mais do que a ler livros de história. Falo de Eça de Queiroz, de Camilo Castelo Branco, de Júlio Dinis, e depois os autores do século XX, Sophia de Mello Breyner, Miguel Torga, José Saramago, e eu podia ficar aqui a dizer mais e mais nomes. À medida que vou avançando na minha leitura, começo a sentir-me cada vez mais portuguesa, e a perceber melhor o que é ser português. Não posso negar o papel importante que a literatura teve na minha integração.Optou por uma carreira política. Como reagem as pessoas à candidata Safaa Dib? Surpreendem-se um pouco, ou já a conhecem e o nome não é uma questão?No meio lisboeta, já conhecem. Eu candidato-me normalmente na área de Lisboa, e aqui em Lisboa já estou há 11 anos na política. Fiz parte da fundação do Livre, e a minha associação ao Rui Tavares e ao Livre fez com que, de facto, me envolvesse numa série de aventuras políticas que fez com que o meu nome começasse a ser conhecido no meio. Devo também ao Livre o facto de ter começado a divulgar mais as minhas várias identidades, porque até então estava mais concentrada em seguir uma vida típica de alguém que estava com uma carreira profissional na edição, tinha comprado a primeira casa, já estava com a vida toda estabelecida e pensava que já tinha atingido tudo o que queria, até que, de repente, descubro um grupo de pessoas interessadas em fazer política num contexto social turbulento, que é o da troika e da austeridade, e começo a perceber que, na verdade, tudo aquilo que tinha planeado para a minha vida não era bem aquilo que queria.Entrar na política é uma afirmação cidadã, de integração?Também é um percurso de aprendizagem, porque eu própria, quando entro para a política, não tenho noção de quanto é que vou aprender. E aprendi que podia assumir melhor as minhas várias identidades e que não tinha que ter vergonha disso. Antes fazia questão de ser mais portuguesa do que os portugueses. Queria à força toda que as pessoas não destacassem aquilo que era diferente em mim. E durante muitos anos, até aos meus 30, 32 anos, fiz muito esse esforço de não destacar aquilo que era diferente. Não gostava que as pessoas falassem disso. Eu queria ser mesmo portuguesa 100%. A política ajuda-me a reconciliar melhor com esse meu outro lado e a aprender mais sobre como assumir isso sem ter de ver isso como coisa necessariamente negativa. .Natália Correia em forma de puzzle