Leila Slimani:“Gostava que as pessoas conhecessem melhor a cultura portuguesa”
A meio de uma residência literária em Cascais, promovida pela Fundação D. Luís I, encontramos a escritora Leila Slimani, um dos atuais expoentes da literatura francófona que em 2016 venceu o Prémio Goncourt - o mais prestigiado de França - com o romance Canção Doce. A autora, que tem os seus livros traduzidos em mais de 50 línguas, vive em Lisboa há um par de anos e está a terminar um novo livro onde irá continuar a saga familiar. Em Cascais, num dia muito chuvoso, numa livraria de obras já lidas (a Deja Lú), a conversa não teve pejo em abordar as crises que assolam o planeta, a condição humana , a França, Marrocos e a sua relação com a cultura portuguesa.
Esta residência artística, que em outras ocasiões recebeu nomes como Olivier Rolin ou Michael Cunningham, foi uma oportunidade para terminar o seu próximo livro?
Aceitei porque é uma grande oportunidade para me focar na escrita durante algum tempo, o que nem sempre é fácil no dia a dia e com filhos. Estava mesmo a precisar de me focar. Quanto ao novo livro… ainda estou no processo de escrita, não consigo dizer em que parte estou.
E do que trata o novo livro?
É a terceira parte da trilogia que estou a escrever. Agora será nos Anos 1980: o livro começa nesse ano e termina cerca de 20 anos depois. Durante essa altura houve o processo de globalização, em que muitas pessoas saíram de Marrocos. É também uma altura em que a personagem principal, o meu pai, passa por um momento muito trágico em Marrocos ao perder o emprego e ao enfrentar a violência do regime.
Como se organiza quando escreve, é como um trabalho das 9 às 5?
Absolutamente! É como um trabalho normal. Escrevo o dia inteiro desde que acordo até que me deito, com alguns pequenos intervalos para ler ou ver uma série. E em momentos, como este, sozinha nesta residência, estou mesmo muito focada em escrever.
E apesar da história que está a escrever estar balizada em termos de espaço e tempo, o ambiente ao seu redor, onde escreve, influencia-a?
Sim, mesmo que no início não me aperceba disso. Quando, por exemplo, faço uma pausa e vou para um café e se por acaso me sentar em frente a um casal observo a forma como falam, e talvez dali nasça uma ideia para uma cena do livro. Tudo influencia, até mesmo se está a chover ou a fazer sol. Mas, ao mesmo tempo, quando escrevo é como se vivesse num outra dimensão. Nessas alturas estou na minha bolha.
De uma estudante de Ciência Política em Paris, vinda de Marrocos, para uma autora com livros publicados nos quatro cantos do mundo. Sente-se confortável em ser uma escritora conhecida e reconhecida?
Na minha vida real isso não existe. Quando tenho de ir a uma conferência no estrangeiro apanho o avião, faço o meu trabalho e regresso a casa e nunca penso se sou ou não uma escritora conhecida. Sou muito feliz e agradecida por ter um público vasto e poder conhecer pessoas em todo o lado e ter conversas sobre literatura em vários locais do mundo. Mas quando somos artistas devemos sempre começar do zero. Quando escrevo um romance sinto que estou a escrever pela primeira vez e é sempre difícil.
E não há a pressão da fama?
Sim, muita. Mas é uma pressão que vem de mim, porque quero escrever o melhor romance possível. Não sinto pressão de fora.
Tendo nascido em Marrocos e sendo também francesa, como é que se cria uma identidade própria no meio destas duas culturas?
Não tenho resposta para isso. Não tenho a certeza se construí a minha identidade. Às vezes estou de um lado, outras vezes do outro… e sinto-me desconfortável muitas vezes…
…porquê?
Porque às vezes quando estou em França oiço certas coisas sobre as pessoas marroquinas ou sobre os árabes que me enfurecem e não me fazem sentir bem. Ou quando estou em Marrocos e oiço coisas sobre França que também me fazem ficar triste. Na verdade, sinto sempre que não pertenço totalmente a nenhum dos grupos. E a melhor forma é aceitar ser uma outsider, olhando para as coisas com uma certa distância.
Reinaldo Rodrigues/Global Imagens | REINALDO RODRIGUES
E não há uma certa vantagem de ver as coisas com dois olhares? já o disse, várias vezes, que, tendencialmente, o ser-humano gosta de sublinhar a diferença e fala-se pouco das similaridades existentes entre todos.
tenho o privilégio de viajar muito e aos 42 anos sinto que já vi muito para perceber como o mundo é grande. e muitas vezes, quando regresso a marrocos ou a frança, apetece-me dizer que o mundo é muito vasto e não faz sentido estarmos preocupados com algumas pequenas coisas, quando o mundo é tão grande e as experiências são tão diversas. por outro lado, os meus pais deram-me uma educação muito cosmopolita, quiseram que lesse livros de todo o mundo e que falasse várias línguas, e incentivaram-me a viajar e a ter a mente aberta. no dia a dia não penso em mim como sendo francesa ou marroquina, sinto que sou eu, leila, com a minha cultura, com os livros que já li, os locais que já visitei e com tudo o que me faz ser eu. e por isso não me defino apenas pela etnicidade ou pelo que está escrito no passaporte. sou mais do que isso.
o mundo vive momentos agitados desde a pandemia: a guerra na ucrânia e agora a crise agravada no médio oriente entre o hamas e israel. como é que olha para estas situações? sendo fruto de duas culturas tem uma palavra a dizer?
preocupa-me, sobretudo porque sinto que tudo o que aprendi como estudante fraquejou ou desapareceu. quando estava a estudar ciência política e tinha 20 anos, mais ou menos na altura em que se celebravam os 10 anos da queda do muro de berlim, havia uma ideia de que a democracia se ia espalhar por todo o mundo, que íamos viver num mundo sem guerras, com um forte papel da união europeia depois da queda do comunismo. havia a ideia de uma felicidade global, de um mundo sem fronteiras, onde as pessoas viajariam livremente e no qual a tecnologia iria ajudar a resolver muitos dos nossos problemas. essa ideia de mundo não aconteceu. mas ao mesmo tempo sou muito lúcida sobre a condição e natureza humana. nunca me surpreende a violência e as guerras. mas estou muito preocupada em saber como as nossas democracias vão resistir à pressão que existe.
disse numa palestra, recentemente, que perdemos a imaginação em relação ao futuro.
sim, foi numa conferência sobre josé saramago, e tem a ver com o facto de que tanto os populistas como os conservadores estão obcecados pelo passado, ou com uma ideia de um passado glorioso, em que se vivia melhor do que agora. essas pessoas são racistas, são contra o feminismo, contra a homossexualidade e têm tendência para dizer que o passado era melhor, sobretudo para os europeus, porque havia menos imigração, porque eram os homens que tinham o poder sobre as mulheres e porque os heterossexuais tinham o poder. essa visão do mundo está a ganhar cada vez mais poder. por isso, nós, progressistas, as pessoas que acreditam no progresso, temos de criar a nossa narrativa sobre o futuro que imaginamos e as respostas que podemos dar às guerras, aos conflitos e à crise climática. mas tem sido difícil criar essa narrativa porque há muita gente obcecada com o passado.
e qual o papel dos escritores nessa narrativa? não deviam regressar à rua e fazer ouvir as suas vozes?
não sei… não gosto da ideia de que se diga aos escritores o que devem fazer. a essência do escritor é ser um espírito livre e poder fazer o que quiser. ser como o fernando pessoa e ficar no seu quarto a escrever os seus poemas não é menor do que jean-paul sartre que andou a protestar nas ruas de paris. cada escritor tem a sua voz e a sua maneira de se exprimir. no meu caso tudo está nos meus livros, toda a minha visão do mundo em que tento mostrar o absurdo da condição humana, como reagimos e como percebemos o nosso presente, e como não percebemos o que se está a passar. e isso é muito óbvio no que escrevo. as personagens sentem-se muito impotentes sobre o que se passa ao seu redor.
a europa está a passar por momentos agitados, sobretudo a sociedade francesa, com a tensão crescente entre a comunidade muçulmana, as manifestações contra a idade da reforma, etc. como vê a frança pós-macron?
como já disse, quando eu era adolescente, poucos imaginariam que iríamos ter 89 deputados da frente nacional fr) no parlamento… era algo impensável. e agora que acontece ninguém vem para as ruas protestar. a fr têm cada vez mais poder e há cada vez mais pessoas que votam neles. uns acham mesmo que devem estar no governo e que marine le pen líder da frente nacional] deve ser presidente de frança. às vezes não consigo perceber o que se passa em meu redor. a sociedade francesa tem sofrido muito nos últimos anos, sobretudo desde 2015: com os ataques em paris, os coletes amarelos, a pandemia, as manifestações contra a alteração da idade da reforma, etc. sente-se tensão não só nos media, como nos políticos e também entre as pessoas. mas é um grande país e tenho a certeza de que vão encontrar uma solução. quer dizer, é a frança! um país com muitos intelectuais e artistas e muitas coisas positivas. quero acreditar que algo de bom vai acontecer.
e num mundo globalmente onde cada vez se fala mais inglês, e onde a cultura anglo-saxónica parece mais presente, como está a francofonia no mundo atual?
o mundo é cada vez mais diverso e isso é muito interessante. comecei a publicar há 10 anos e agora quando vou a conferências ou festivais literários - sejam na escócia, noruega e estados unidos - fico sempre surpreendida pela diversidade cultural que encontro. é possível conhecer artistas de moçambique, de angola, da nigéria, do senegal, os artistas falam múltiplas línguas, vivem entre vários países. e muitas vezes têm identidades multiculturais. é interessante não estarmos só numa caixa e não sermos representantes de apenas um país ou de uma cultura. agora é possível ouvir novas vozes, de homossexuais, de pessoas não-binárias, etc., pessoas que não ouvíamos há 10 anos. nesse sentido estou muito otimista.
E SOBRE PORTUGAL. COMO É A SUA RELAÇÃO COM O PAÍS? CONTINUA A VIVER CÁ?
SIM, VIAJO BASTANTE, MAS A MINHA BASE É EM PORTUGAL. ATUALMENTE, PORTUGAL É O MEU TERCEIRO PAÍS, ENTRE MARROCOS E FRANÇA. GOSTAVA QUE AS PESSOAS CONHECESSEM MELHOR A CULTURA PORTUGUESA. NESTES ÚLTIMOS ANOS PASSEI A CONHECER MUITO DA CULTURA EM PORTUGAL E É UM SÍTIO MUITO INTERESSANTE PARA SE ESTAR. TEM ESCRITORES, MÚSICOS E POETAS MARAVILHOSOS. AS PESSOAS SÃO MUITO COSMOPOLITAS, ESPECIALMENTE EM LISBOA E NO PORTO. OS PORTUGUESES - EM ESPECIAL A NOVA GERAÇÃO - TÊM UMA MENTE MUITO ABERTA E ESTÃO ESFOMEADOS POR CULTURA E POR APRENDEREM COISAS NOVAS. LISBOA PODE SER UMA CIDADE ONDE SE ORGANIZEM EVENTOS CULTURAIS EM MUITAS LÍNGUAS. TENTO SER EMBAIXADORA DA CULTURA PORTUGUESA PARA ONDE QUER QUE VIAJE. ESTIVE EM INGLATERRA ESTE VERÃO, NUM FESTIVAL LITERÁRIO, E LEVEI UMA SÉRIE DE LIVROS DE AUTORES PORTUGUESES QUE ACONSELHEI. O PAÍS MUDOU MUITO NOS ÚLTIMOS 20 ANOS E TEM MUITO A PARTILHAR COM O RESTO DO MUNDO.
SENTE A LIGAÇÃO ENTRE A CULTURA PORTUGUESA E ÁRABE?
SIM, MUITO. E ESTOU MUITO CONTENTE PELA REALIZAÇÃO DO MUNDIAL DE FUTEBOL ENTRE PORTUGAL, MARROCOS E ESPANHA. PODE SER UMA OPORTUNIDADE PARA QUE OS PORTUGUESES DESCUBRAM MARROCOS E PARA OS MARROQUINOS CONHECEREM MAIS PORTUGAL. HÁ MUITOS PORTUGUESES QUE NUNCA FORAM A MARROCOS, QUE FICA A POUCO MAIS DE UMA HORA DE AVIÃO DE LISBOA. E HÁ MUITA COISA EM COMUM QUER NA CULTURA, QUER NOS LOCAIS. QUANDO CAMINHO AQUI EM LISBOA OU EM CASCAIS HÁ LOCAIS MUITO PARECIDOS COM MARROCOS, OS FORTES SÃO IGUAIS, POR EXEMPLO, E MESMO FISICAMENTE HÁ MUITOS PORTUGUESES QUE PODIAM SER MARROQUINOS. E TAMBÉM A LÍNGUA TEM MUITO EM COMUM. MAS SINTO QUE EM ESPANHA AS PESSOAS SABEM MAIS DA SUA HERANÇA ÁRABE, EM ESPECIAL NA ANDALUZIA, E AQUI NÃO TANTO.
E A PERGUNTA QUE SE FAZ SEMPRE NAS ENTREVISTAS COM ESCRITORES ESTRANGEIROS: HÁ ALGUM ESCRITOR PORTUGUÊS DE QUE GOSTE ESPECIALMENTE.
GOSTO MUITO DA ISABELA FIGUEIREDO, O SEU TRABALHO É MUITO INTERESSANTE, MUITO SINGULAR E ORIGINAL, ADORO O LIVRO A GORDA. ATUALMENTE É A MINHA ESCRITORA PORTUGUESA PREFERIDA. MAS TAMBÉM GOSTO DOS AUTORES LUSÓFONOS, COMO MIA COUTO, POR EXEMPLO.
FILIPE.GIL@DN.PT