Agosto foi o mês mais quente desde que há registo em países como Espanha ou Austrália. Este tipo de notícia é suficiente para as pessoas, e especialmente os líderes mundiais, perceberem que, como diz no seu livro, “o calor é que nos vai matar”? Essa é a questão, não é? Foi a questão desde que se começou a falar em alterações climáticas há 40 anos - qual será esse momento? Eu escrevo sobre alterações climáticas há quase 25 anos e cheguei à conclusão de que não vai haver um momento mágico. Não vai haver um verão quente, ou uma grande tempestade, ou uma grande seca, ou seja o que for que irá fazer com que as pessoas percebam. Vai ser progressivo. .Para si, no entanto, foi um momento específico que o fez querer escrever o seu livro O Calor É Que Te Vai Matar. No dia em que, em Phoenix, decidiu caminhar até uma reunião e percebeu que o calor o podia mesmo matar. Conte-nos esse momento. Não acredito que vá haver um momento de despertar global, mas há momentos que afetam as pessoas individualmente. Para mim… eu visitei Phoenix num dia quente no verão de 2017. Na altura, há 15 anos que escrevia sobre alterações climática e o calor faz parte das mesmas, não é segredo. Mas nunca tinha pensado nisso como algo pessoal. Naquele dia estava em trabalho e já estava atrasado, o meu Uber não apareceu e decidi fazer 20 quarteirões a pé num dia muito quente. Quando lá cheguei, estava com tonturas, o meu coração estava a explodir no peito. Então pensei: “Oh, meu deus, o que eu fiz foi muito perigoso.” E a parte engraçada é que nunca tinha pensado antes nesse perigo pessoal que o calor constitui. Apesar de escrever e refletir sobre alterações climáticas há muito tempo, nunca me tinha ocorrido que o calor me pudesse matar. Naquele dia percebi que nem sequer conseguia explicar o que é o calor, embora soubesse o que era a temperatura. Mas se me perguntasse o que era o calor, não saberia responder. Então pensei que esta era uma ideia interessante para um livro..Geralmente pensamos nas alterações climáticas como algo que nos vai matar dentro de umas centenas de anos… Sim, as gerações futuras, os nossos filhos - que mundo é que vamos deixar aos nossos filhos?.Naquele momento sentiu a urgência de alertar para o perigo imediato - não é uma coisa que vá acontecer no futuro. Exatamente. E foi daí que surgiu o título do livro. O meu editor achou que era péssima ideia, que ninguém ia ler um livro com este título, mas disse que ia falar com umas pessoas e me ligava. No dia seguinte ligou a dizer “nem pensar, não pode ser o título do livro”..Mas é mesmo o título. Como é que o convenceu? Argumentei, expliquei que o livro é exatamente sobre isto, que queria desafiar as pessoas, queria que sentissem a ameaça. Não quis ser alarmista, mas queria que não fosse um assunto sobre os nossos filhos, que não fosse sobre glaciares a derreter lá longe ou sobre pessoas de outros continentes. Desejava que fosse sobre nós, sobre estarmos sentados aqui, sobre irmos dar uma corrida num dia de calor e não estarmos preparados. Sobre pessoas a viver em apartamentos em Lisboa sem ar condicionado quando está cada vez mais calor. Quis que fosse visceral e atual. Por isso tenho todo um capítulo sobre o que acontece ao corpo com o calor. .A ideia é dar-nos uma sensação física do que o calor faz ao corpo? Sim, porque quase toda a gente sabe que, quando temos demasiado calor, podemos apanhar uma insolação. O que as pessoas não sabem, como eu não sabia, é o que acontece ao corpo e por que o calor é tão perigoso. Nos EUA, um crítico escreveu que parte do livro parece um romance de terror, o que assumi como um elogio, uma vez que queria que as pessoas sentissem realmente como os seus corpos derretem por dentro com o calor. .O Calor é que te Vai MatarJeff GoodellLua de Papel 384 páginas.China e EUA são os dois maiores poluidores mundiais. Sem uma ação forte por parte destes países a luta contra as alterações climáticas é uma causa perdida? Não, a luta contra as alterações climáticas não é uma causa perdida. Esse é o maior mito - o de que é tarde demais. E compreendo porque é que algumas pessoas dizem isso. Tem a ver com a forma como as convenções da ONU para o clima funcionam, com os objetivos de 1,5 graus ou 2 graus de aquecimento. Ficamos com a ideia de que, se não travarmos o aquecimento nesses 1,5 ou 2 graus, estamos metidos em grandes sarilhos. Mas não é assim que funciona, não é um sistema linear, não é como se falhássemos os 1,5 graus e já fomos. Cada tonelada de CO2 que não lançamos para a atmosfera mantém o futuro um pouco mais fresco, cada tonelada a mais que lançamos torna-o um pouco mais quente. Cada árvore que plantamos em Lisboa vai dar sombra que não estaria ali se não o fizéssemos. E se construirmos edifícios mais adaptados aos diferentes tipos de clima, teremos um futuro melhor do que se não o fizermos. Cada ação conta. As pessoas estão sempre a perguntar-me: “Escreve sobre alterações climáticas há 25 anos, como é que não se tornou num alcoólico que vive numa caverna a rabiscar as paredes com giz sobre o mundo perdido para os seus filhos?” Mas não me sinto assim, porque acho que a luta é contínua e toda a mudança importa. Sabemos que estamos em sarilhos, mas, ao compreendermos o que está por vir, podemos fazer escolhas melhores e eleger melhores políticos. Mencionou a China e os EUA, que são historicamente os maiores poluidores. A Europa, a UE também. Mas não é justo dizer que não estão a fazer nada, pois estão a fazer muito. A China está a fazer muito, como preparar-se para deixar a indústria automóvel europeia fora do mercado devido à ascensão dos carros elétricos. Estão a instalar mais painéis solares, mais eólicas do que o resto do mundo todo. Claro que ainda queimam muito carvão, não estão a fazer o suficiente, mas a China está a implementar muita coisa. E os EUA também, e a UE, e Portugal. Estamos todos a fazer muito, mas não chega. Estamos a pensar o futuro energético - em que vai haver energia abundante, barata e de baixo carbono, mas o problema é abandonar agora os combustíveis fósseis. Outro grande desafio, sobretudo com o calor, é a adaptação. Como é que Lisboa vai ser diferente? Como é que estes edifícios antigos que não têm ar condicionado, que não foram construídos para temperaturas extremas, vão resistir ao calor, aos incêndios florestais, ao fumo dos incêndios florestais, à inflamabilidade de um mundo mais quente. Como é que vamos lidar com o calor como uma força predatória? O calor vai refletir-se primeiro nas pessoas mais vulneráveis. Os mais ricos podem meter-se nos seus carros e conduzir para outro lugar ou apanhar um avião. O dinheiro pode não garantir um salvo-conduto para escapar às alterações climáticas, mas de facto ajuda, sem dúvida..Escreve sobre alterações climáticas há 25 anos. Imagino que muitas pessoas cheguem ao pé de si a perguntar o que podem fazer para ajudar o ambiente. O que lhes diz? Garantam que Trump não é eleito! [risos] O que podemos fazer são coisas óbvias. A maioria das pessoas sabe o básico que deve fazer para reduzir o carbono: se conduzir, compre um carro elétrico, se puder, ande de bicicleta, pois todas essas coisas servem para reduzir a sua pegada de carbono. Mas, em última análise, tudo se resume à política. Tudo se resume a eleger líderes que compreendam isto, que possam afastar-se ainda mais dos combustíveis fósseis. Os subsídios, pelo menos nos EUA, são um problema enorme. O governo dá muito dinheiro. As energias renováveis estão a acontecer muito rapidamente, mas ainda queimamos muitos combustíveis fósseis, e isso deve-se às proteções governamentais à indústria. Em última análise, acho que a solução é política: é colocar no poder pessoas que entendam isso, sendo localmente ativas no terreno, com as escolas, com os líderes locais da cidade, e falando realmente sobre isso. E também é essencial educar-se, quer seja lendo o meu livro ou livros de outras pessoas, porque há muita desinformação por aí. O meu livro é um exemplo de como as pessoas podem ser ignorantes. Eu era ignorante. É um problema complicado, na medida em que implica uma mudança nas nossas vidas. E estes dois aspetos - educarmo-nos mais sobre as escolhas que temos e colocar os políticos certos no poder - são as grandes alavancas. .Os EUA têm eleições em novembro. Ser Kamala ou Trump a vencer vai ter um enorme impacto no ambiente? Disse há pouco para não elegerem Trump… Vai ter um enorme impacto. Trump é direta e deliberadamente estúpido em relação ao clima, porque está envolvido com a indústria dos combustíveis fósseis, que o apoia. A opinião dele sobre o ambiente é uma farsa, mas é clara e direta: não tomará qualquer medida. Então, sim, é uma eleição com muitas consequências nos EUA. Contudo, penso que o que é realmente importante é que esta transição esteja a acontecer. E se Trump for eleito, Deus nos livre, isso não vai impedir a transição. Vai desacelerá-la, vai mudar um pouco o rumo, mas a transição dos combustíveis fósseis para energias mais limpas é como a transição do óleo de baleia para o petróleo no século XIX. Irá acontecer, já está a acontecer. Trump não vai impedir isso porque a economia está muito melhor, tanto a economia dos carros elétricos como a da energia solar. Portanto, sim, ele terá impacto na trajetória. E, dada a rapidez com que as coisas estão a mudar no mundo físico, precisamos de acelerar a transição, por isso é mau. Mas Trump não a irá parar. Nos EUA, os republicanos têm tradicionalmente feito o máximo na conservação e na energia limpa. Têm sido líderes nisso. Não é uma questão partidária. Leis ambientais importantes dos EUA foram feitas por republicanos. Quero enfatizar isso para que o que digo não pareça uma questão de democratas versus republicanos. Tradicionalmente, os republicanos têm sido muito melhores nesta questão do que os democratas..Quando pensamos em muitos países em desenvolvimento em África ou na Ásia, a preocupação ambiental de um líder dificilmente resiste se tiver de competir com a necessidade de desenvolver o país ou alimentar a população? Se tiver de usar combustíveis fósseis para isso, provavelmente vai usá-los… Certo, e isso é uma questão difícil. Claro que há a questão do desmatamento da Amazónia, há todo o tipo de questões ambientais e climáticas no mundo em desenvolvimento. Mas o facto fundamental é que as alterações climáticas são um problema do mundo ocidental rico, um problema de consumo. Para os 1% mais ricos da população as suas emissões são iguais às dos 50% ou 60% mais pobres. É sobre pessoas ricas que vivem vidas consumistas. São essas que estão a causar o problema. Mas são as do mundo em desenvolvimento que muitas vezes sofrem com isso. Nos países ricos do Ocidente temos muitas opções para nos adaptarmos. Mas no mundo em desenvolvimento… Estive na Índia este ano, não há muito dinheiro disponível para instalar ar condicionado, reconstruir casas, alterar códigos de construção, mas eles estão a sofrer com as nossas emissões. Isto remete para questões de justiça, e esse é o cerne da luta climática - o que é que as nações ricas que causam este problema devem às nações pobres que estão a sofrer? É a dinâmica essencial de todas as conferências da ONU sobre o clima..As alterações climáticas são um tema que diz muito às novas gerações. E isso é positivo. Mas vemos grupos de jovens a lançar tinta sobre edifícios ou obras de arte em protesto. Que efeito têm atos como estes? Beneficiam ou são contraproducentes? Não sou grande fã de lançar tinta a obras de arte ou de pintar Stonehenge de laranja ou coisas assim. Acredito que há um papel para a ação direta. Tivemos a luta pelos direitos civis nos EUA e o movimento antinuclear, que mostraram o poder desse ativismo. Mas não sou um ativista político, sou um jornalista, e não acho que lançar tinta sobre obras de arte vá ajudar a criar um movimento maior. Mas fico surpreendido por não haver mais ativismo nas ruas. Há uns anos saiu um livro muito popular, até foi feito um filme, chamava-se How to Blow Up a Pipeline? [Como rebentar com um oleoduto?]. Uma ideia muito controversa, mas nos EUA, durante o movimento ambientalista dos anos 70, havia muito disso. O problema é que não há aqui um líder. Até precisávamos que houvesse uma figura como Martin Luther King na luta pelo ambiente. O Movimento pelos Direitos Civis mostrou a tensão entre as duas alas do movimento. Havia o lado de Luther King, que marchava e protestava pacificamente, e havia o lado de Malcolm X, que tinha ações muito mais violentas. Provavelmente vamos voltar a ver isso. Não posso apoiar pessoas que andam a atirar tinta a obras de arte - a minha mulher até tem uma galeria de arte -, mas parece-me inevitável que os protestos se tornem mais imprevisíveis. .Portugal tem investido muito em energias renováveis. Poderá ser um exemplo para o mundo nesta matéria? Completamente. É espantoso, porque vocês passaram seis dias apenas com energias renováveis! Foi um processo impressionante e um bom exemplo desta revolução de que temos estado a falar. Portugal está bem posicionado para liderar nessa área porque tem sol, tem vento e tem mar. Mas é um sítio muito vulnerável por causa do calor, dos fogos, da subida do nível do mar. Portugal tem muito em jogo. Lisboa, tal como Paris e outras cidades, como Austin, onde vivo, vão precisar de ser reimaginadas. Com a subida do nível do mar, com o calor extremo, nos próximos 20 anos Lisboa irá ficar muito diferente. Vai ser muito mais quente, os mares vão subir e os incêndios continuarão, mas é uma oportunidade para agir. Estive há pouco em Paris e a presidente da Câmara, Anne Hidalgo, tem sido incrível, pois tem impulsionado grandes mudanças, desde nadar no Sena até às restrições de veículos no centro da cidade, árvores por todo o lado, reimaginar os Champs-Élysées. É o tipo de liderança que é necessário. Paris pode ser uma cidade melhor e Lisboa também pode. Mas não será a mesma cidade, porque é um mundo diferente. E não iremos voltar atrás.