Foi no início deste mês, dia 2, que passaram 100 anos sobre o nascimento de James Baldwin (1924-1987), escritor excecional redescoberto nos últimos anos, que desde a infância no Harlem soube o que queria fazer da vida. “Naqueles tempos, a minha mãe mantinha o hábito exasperante e misterioso de ter filhos. À medida que iam nascendo, eu cuidava deles com uma mão e lia um livro com a outra”, conta nos apontamentos autobiográficos a abrir Notas de Um Filho da Terra. Com efeito, o livro agora lançado pela Alfaguara (tradução de Pedro Rapoula), não poderia ser mais oportuno para o contexto das celebrações: um conjunto de ensaios dos Anos 1940/50 que tanto discorrem sobre os equívocos da literatura americana na representação dos negros, como narram partes de uma autobiografia que se confunde com a própria resistência do romancista e ensaísta comprometido com a liberdade de pensar a sua herança.Depois dos romances Se Esta Rua Falasse, Se o Disseres na Montanha, O Quarto de Giovanni, e do volume de ensaios Da Próxima Vez, o Fogo - estando já anunciada para outubro a publicação do romance Um Outro País -, a editora prossegue, assim, com o projeto de trazer aos leitores portugueses um legado vagamente conhecido e apreciado, mas nunca antes devidamente descoberto na sua plenitude e substância literária. Uma operação editorial que surgiu, vale a pena recordar, na sequência da estreia de um brilhante documentário de Raoul Peck, I Am Not Your Negro (2016), assente nas palavras de um manuscrito inacabado de Baldwin, lidas por Samuel L. Jackson.Notas de Um Filho da Terra concentra então uma voz que salta da página para nos envolver no pensamento em torno da experiência negra na América (“Esta é uma guerra travada diariamente no coração”), e fora dela. Irmão mais velho numa casa com nove filhos, escritor precoce, ativista dos direitos civis e homossexual que procurou distância na Europa para ver melhor a realidade do seu país de origem, Baldwin deixou a sua marca numa prosa inconformada e perseverante na dissecação de uma dor individual e coletiva. Da questão do romance de protesto, enquanto género literário carregado de boas intenções, ao relato da estada numa remota aldeia suíça onde Baldwin se sentiu um corpo estranho (na interpretação mais literal do termo), os ensaios que compõem Notas de Um Filho da Terra estão entre o rigor da análise artística e social e as histórias que confirmam o drama na primeira pessoa. .O Negro no cinema, figura paterna e Paris.É curioso, por exemplo, descobrir a visão do autor sobre o filme Carmen Jones (1954), de Otto Preminger. Num texto nada elogioso, bem pelo contrário, mas nunca fútil ou ligeiro na sua crítica, somos conduzidos por argumentos que fazem perfeito sentido, independentemente de se gostar ou não da obra: “O mais importante deste filme – e a razão pela qual, apesar de si próprio, é um dos mais importantes filmes exclusivamente Negros que Hollywood já produziu – é que as questões que sugere se relacionam menos com os Negros do que com a vida interior dos americanos”, escreve Baldwin depois de o reconhecer como “uma das primeiras e mais explícitas fusões de sexo e cor”, com um erotismo mais potente que “um filme de Lana Turner”. .Já no texto que dá título ao livro, a figura do pai emerge, por sua vez, como motivo para falar do ressentimento e do caminho que o levou a experimentar a “raiva no sangue”, depois de ouvir repetidamente, de diferentes empregados de mesa, o mesmo “aqui não servimos Negros”. Episódio distante, apenas do ponto de vista geográfico, daquele outro em que um jovem James Baldwin, nos seus primeiros tempos em Paris (onde viveu durante nove anos), foi preso por causa de um lençol de hotel roubado por outro americano... Digamos que uma aventura impossível de transformar num musical de Vincente Minnelli chamado Um Americano em Paris. .Este, como cada “novo” livro do escritor insubmisso, particularmente os seus ensaios, traz uma espécie de iluminação intelectual a jusante, uma influência que se prolonga depois da leitura. É, afinal, um gigante das letras aquele que nos fala a partir do lugar da negritude, e que vai muito além dessa base na reflexão sobre a América e os seus paradoxos, a violência racial e os modos de a disfarçar, enfim, no olhar sobre a lógica que perpetua o “problema Negro” num país que nunca aprendeu a viver consigo próprio – basta ter presente os fenómenos da atual corrida à Casa Branca para perceber o fascínio e espírito crítico com que Baldwin versa sobre o jogo da identidade numa terra de ódios mais ou menos fogosos. Na letra do autor, porém, há sempre uma réstia de amor que leva a melhor na observação lúcida da angústia da pele. .Notas de um Filho da TerraJames BaldwinEdição Alfaguara208 páginas