As histórias que o cineasta iraniano Jafar Panahi conta nos seus filmes são indissociáveis das suas vivências, ou melhor, daquilo que ele gosta de classificar como uma inspiração vinda da sociedade. Assim acontece em Foi Só um Acidente, consagrado em maio com a Palma de Ouro do Festival de Cannes, a partir de amanhã nas salas portuguesas. O implacável desenvolvimento do seu drama envolve um homem que, ao ouvir um determinado som, julga detetar a presença daquele que o torturou na prisão - um som a que, por assim dizer, falta uma imagem. Daí nasce uma tensão visceralmente cinematográfica (imagem/som) que reflete as convulsões de um espaço social dividido por muitos muros, alguns metafóricos, outros tragicamente realistas. Por alguma razão, Panahi aceita que o classifiquemos, precisamente, como um cineasta realista.. Há uma premissa dramática muito especial a partir da qual se constrói um filme como Foi Só um Acidente. Como surgiu essa premissa e de que modo, a partir daí, desenvolveu o argumento?Sou um realizador que faz filmes que têm que ver com a sociedade. Nesse sentido, o que me inspira é a própria sociedade, o lugar onde vivo, as pessoas à minha volta - pessoas comuns, mesmo quando se trata apenas de ir ao fundo da rua para comprar alguma coisa na mercearia. Mas podemos pensar noutro contexto, por exemplo convivendo durante alguns meses com pessoas que falam de coisas que são novas. Quando falamos com essas pessoas, não é para encontrar uma ideia para fazer um filme - é apenas uma conversa de fim do dia. O certo é que quando saímos desse contexto, fica a vontade de regressar. E vemos um muro muito longo e alto - estamos de fora, mas essas pessoas ainda estão lá dentro. Não estamos a pensar fazer um filme, mas há um peso que ficou connosco e perguntamos: que posso eu fazer? Talvez possa fazer um filme sobre tudo isso. Como posso começar?Que muro é esse?É um muro de uma prisão - está entre nós, que permanecemos de fora, e as pessoas que ainda estão lá dentro. É um muro que nos separa, aprisionando aqueles que serão, talvez, os melhores do nosso país, especialmente os mais jovens. É um muro que alguns governos constroem para manter as pessoas separadas daquilo em que realmente acreditam. Ora, é a altura para fazer alguma coisa pelas pessoas que estão do outro lado do muro. Por isso, é preciso fazer um filme sobre essas pessoas. Como começar? É preciso começar pela nossa própria experiência. Que aconteceu quando estávamos a ser investigados e interrogados? Ao sermos interrogados, éramos colocados em frente a uma parede, com os olhos tapados, davam-nos papel e uma caneta para escrevermos as nossas respostas. A pessoa que me interrogava estava atrás de mim - e eu pensava: qual será o aspeto desta pessoa, poderei reconhecê-la apenas pelo que ouço? Se a encontrar fora da prisão, conseguirei reconhecê-la? E foi assim que encontrei a minha ideia para Foi Só um Acidente..Nessa medida, este é um filme que reflete uma experiência pessoal.Não, não se trata apenas da minha experiência pessoal. O que está em jogo é, sobretudo, a experiência de outras pessoas que estiveram na prisão, comigo, no mesmo espaço. Estiveram na prisão mais tempo do que eu, cinco anos, dez anos - contaram-me as suas histórias. Digamos que é uma experiência de reunião.Que pessoas sofrem com essa experiência?Quase todas as pessoas no Irão. Não quero dizer com isto que todas as pessoas, no plano individual, sofram diretamente com essa experiência - pode ser alguém da família, um amigo, pode ser um vizinho que esteve na prisão por causa das suas ideias.Considerando alguns dos seus filmes, tal como O Círculo (2000) ou Três Rostos (2018), somos levados a pensar que essa experiência é especialmente dura para as mulheres.Quando digo que sou um cineasta que filma a sociedade, quero eu dizer que há determinadas limitações nessa sociedade. Assim, começo por falar do grupo de pessoas que são mais atingidas por essas limitações - e esse grupo são as mulheres. De qualquer modo, num filme como Três Rostos, tudo se passa entre mulheres e homens. De facto, não se trata de dizer para quem as coisas são mais duras - são coisas que se acumulam, numa estrutura que está a destruir as pessoas. Nos meus filmes, o importante é o fator humano. Pensando na personagem central da sua primeira longa-metragem, O Balão Branco, em 1995 premiada em Cannes com a Câmara de Ouro, podemos perguntar: numa sociedade assim, que se passa com as crianças? Como aprendem a viver?Lembro-me desse tempo: a situação era muito mais difícil do que é agora. Havia muita censura. Com frequência, os cineastas começavam a fazer cinema começando pelas crianças. Não quero com isto dizer que se tratava de fazer filmes para crianças, mas sim sobre crianças - os adultos falavam através da boca das crianças. Apresentar crianças nos nossos filmes era uma espécie de desculpa para escapar às limitações impostas pelo governo. A partir do meu terceiro filme [O Círculo], disse a mim próprio: as crianças já cresceram, que andam agora a fazer? Agora, com Foi Só um Acidente, são as mesmas crianças de há trinta anos.Com todas essas experiências, podemos classificá-lo como um cineasta realista?Sim, absolutamente. No caso de Foi Só um Acidente, quis que o espectador fosse capaz de aguentar, comigo, os últimos vinte minutos. Em alguns momentos, talvez possamos dizer que há um humor amargo, por exemplo quando surge a questão do suborno - essa é, aliás, uma característica dos governos em decomposição. Mas tudo isso desaparece nos últimos vinte minutos, há uma maior intensidade. Na última cena, ao ouvirem aquele som inquietante, os espectadores suspendem a respiração e são levados a perguntar: e agora, que vai acontecer?Tendo em conta esse final de Foi Só um Acidente, faz algum sentido, para si, falar na possibilidade de fazer um outro filme que seja a continuação deste?Não pensei nisso, mas habitualmente não gosto de sequelas..'Foi Só um Acidente'. A autobiografia de um povo.Cannes consagra Jafar Panahi, ou como o cinema ama a liberdade