Diretor do Museu de Arte Antiga: "Tenho a noção de que estou a ser nocivo à instituição"
A ministra da Cultura volta esta terça-feira ao Parlamento, às 15.00, para dar a conhecer as linhas gerais do diploma que enquadra a autonomia dos museus portugueses. Um documento que conheceu uma primeira versão em julho de 2018 e deveria ter sido aprovado em Conselho de Ministros no verão, mas que, disse fonte do Ministério da Cultura ao DN, ainda está a ser trabalhado internamente, pelo que ainda não é público".
A revisão do documento prevê a atribuição de um número de identificação fiscal às instituições, um elemento reclamado por vários diretores de museus de norte a sul do país. Graça Fonseca anunciou-o à RTP, após a comissão de Cultura no parlamento, há uma semana, apesar de nada ter sido dito aos deputados que pertencem à comissão. A medida é aplaudida pelo diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, mas chega tardiamente.
António Filipe Pimentel, 57 anos, anunciou a 2 de janeiro, numa reunião com diretores de museus, palácios e monumentos, a indisponibilidade para se manter à frente do MNAA nos moldes atuais. Crítico das condições de trabalho desde há muito, explica, em entrevista ao DN, as razões da saída: uma erosão nas relações com a tutela, que fez com que não tivesse reunido uma única vez com a atual ministra da Cultura, o entendimento de que não pode continuar a dirigir um museu face ao "problema estrutural de recursos humanos a todos os níveis" que a instituição, com 68 funcionários, atravessa, e que já, por várias vezes, obrigou ao encerramento de algumas das suas salas.
Um desses momentos aconteceu em julho: as salas dedicadas ao mobiliário abriram às 12.00 e encerraram às 13.00 por falta de vigilantes. O caso tem contornos caricatos, mas é recorrente. Em 2017 estiveram encerradas as salas que guardam os Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves, uma das mais importantes do museu, como explica António Filipe Pimentel. E estende-se a áreas que não estão à vista do visitante comum. Com o diretor sai também o diretor-adjunto, José Alberto Seabra de Carvalho, que se reforma. O mesmo acontece a vários elementos da equipa administrativa.
Na quase década que passou à frente do museu da Rua das Janelas Verdes, António Filipe Pimentel engordou o número de visitantes - foram 212 699 em 2017 (os números de 2018 ainda não são conhecidos) -, estabeleceu parcerias com empresas de espetáculos (Everything is New, Uau, Ritmos), abriu o terceiro piso (dedicado à pintura portuguesa), lançou uma campanha de subscrição para a aquisição de uma obra para o museu - A Adoração dos Magos de Domingos Sequeira - e outra para restaurar o Presépio dos Marqueses de Belas (que afinal não o era), que já está na devida sala - a antecâmara da Capela das Albertas. O seu restauro, aberto ao olhar do visitante, está em curso e põe fim a 11 anos de encerramento. Faltou reeditar o boletim do museu e a sua ampliação.
Entramos no ano com péssimas notícias da sua parte.
É a chamada crónica de uma morte anunciada. A tutela [Ministério da Cultura], ao não dar resposta a problemas da gravidade daqueles que se colocam no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), imaginaria que esta situação não poderia eternizar-se. E, portanto tive que aproveitar o único ensejo que a senhora ministra me deu [uma reunião com diretores de museus a 2 de janeiro], para lhe colocar a questão, quando ela nos questionou sobre a nossa ideia para as nossas instituições para 10 e 20 anos. A minha preocupação era mais terminar os seis meses com a devida dignidade. Não ia confrontá-la com essa decisão in extremis, porque se trata de uma instituição cujo futuro é necessário acautelar. Agora a senhora ministra tem seis meses para preparar uma transição suave para o quer que seja.
Há alguma possibilidade de ficar? O que é que é preciso para ficar?
As condições. Uma alteração substancial das condições de trabalho que estão, evidentemente, muito para além do elementar número de identificação fiscal que a senhora ministra anunciou e que confesso não consigo entender, se era possível ter sido atribuído porque é que não foi ponderado primeiro, dado que a reunião do dia 2 era uma matéria fora de questão.
No dia 2 de janeiro, a ministra disse que não era possível?
Sim, que era uma situação a ver a longo prazo.
Contextualizemos: porque é que é importante ter um NIF (Número de Identificação Fiscal), mas por que razão não é a única medida que basta?
O NIF o é ground zero da autonomia. Destina-se a agilizar todos os processos de aquisição. O NIF é o número de identificação fiscal que está relacionado com a capacidade de adquirir bens.
Na prática, fundir-se uma lâmpada e o museu poder comprar outra e substituir.
Nós [MNAA], como disse à senhora ministra, somos detentores de um NIF. Só que não é o nosso. É o do Grupo dos Amigos do MNAA, que é uma entidade separada do Museu. Não podemos usá-lo como uma extensão da administração, até porque os seus meios não são infinitos. A dignidade da instituição, desse ponto de vista, e no limite do esforço, consegue manter-se. Não se consegue manter já o problema estrutural da instituição, que são os seus recursos humanos a todos os níveis. Estou a falar da guardaria, do encerramento de salas, do encerramento de portarias, etc., mas estou a pensar fundamentalmente na cabeça pensante do museu que é verdadeiramente o seu motor de ação: toda a investigação, toda a pesquisa, na área da conservação, do restauro, da pesquisa publicada em História de Arte. E é exatamente isso que se está a desmoronar, há anos, em situação crónica de colapso. E que impede que eu tenha condições de me aventurar a um contrato de programa com base em meios que eu sei que já não existem. Eram extremamente austeros há quatro, cinco anos atrás, de oito, nove, dez anos atrás. Hoje estão em risco de serem inexistentes, por meses. O grande e dramático problema é o dos recursos humanos. Se pensar que nós não somos sequer senhores das nossas próprias imagens, imagine o que isso representa. Não somos senhores de fixar o preço do bilhete de entrada, de fixar os horários de abertura, de regular os horários de abertura, etc. Tudo isso nos é imposto.
Em Madrid, o Museu do Prado está a celebrar 200 anos com um programa, como dizem os espanhóis, "a lo largo y a lo ancho".
Quando vê o Museu do Prado vê 200 anos de atenção pública, regime após regime, fazendo-o uma grande bandeira de Espanha. E isso atravessa, desde a fundação em 1819, toda a monarquia constitucional, a república, o franquismo, a democracia, até ao pacto constitucional entre todos os partidos que lhe dá o máximo de autonomia que pode existir em administração pública, equivalente ao Tribunal de Contas. Isso reflete-se na performance da instituição, logo do seu contributo para a força da marca Espanha. Essa inteligência existe sempre ao longo do tempo, nos dois séculos da instituição. Aqui, ao contrário, existe a desinteligência gritante entre o que a tutela pensa sobre o museu e o que o museu pensa sobre si e sobre as suas potencialidades, que me parece que, entretanto, foram cabalmente mostradas ao longo destes nove anos de exercício: uma instituição pública que se aplica num programa pedagógico de autojustificação quando o Estado é que deve saber se precisa ou não precisa de ter um Museu desta dimensão e com esta precursão internacional.
Ao longo desta quase década ficou demonstrado que precisa, não é?
Não. Ficou demonstrado que pode sê-lo. Agora que precisa não está demonstrado. Pelo contrário. O Estado entende que pode prescindir desta instituição, o que se tem refletido na erosão da linha de comunicação entre o museu e o Ministério da Cultura que se foi tornando cada vez mais austera nos últimos dois anos, a ponto de, atualmente, não existir. Eu pedi à senhora ministra uma reunião com atenção especial a este museu e, em vez disso, foi-me concedida a inclusão na reunião geral de diretores de 30 instituições.
Portanto, desde que Graça Fonseca tomou posse nunca se reuniu com ela?
Não. A senhora ministra veio a este museu na inauguração da exposição do Sorolla e depois faltou à inauguração do acesso à Capela das Albertas e do Presépio de Belas, que foi uma obra estrutural do Museu. O insólito dessa iniciativa, fomos avisados em cima da hora que a senhora ministra não poderia vir, colocou mesmo em dúvida a garantia, até aqui tranquila, de que ela poderá estar no dia 6 de junho na inauguração prevista da próxima exposição. E, portanto, eu nem sei se voltaria a encontrar a senhora ministra neste Museu em qualquer reunião, do dia 2 de janeiro até à minha saída. Tive, evidentemente, de aproveitar o ensejo que me foi dado. Para todos os efeitos, compreendendo embora que a senhora ministra tem uma agenda atualmente muito sobrecarregada de quem está a chegar ao Governo, com oito meses de trabalho pela frente, é um risco que ela própria calculou. Existe, em todo o caso, uma hierarquia de prioridades na ocupação do nosso tempo. Passaram três meses e o Museu Nacional de Arte Antiga não foi inscrito nas prioridades da senhora ministra.
Mas também se percebeu que a proposta da autonomia dos museus, debatida na audição da ministra da Cultura na última terça-feira, afinal não está fechada. Se toda a gente diz que é um documento em aberto então há espaço para modificações.
Não consigo inferir isso da reunião com a senhora ministra, nem ninguém pode inferi-lo, porque a informação que dispomos é exatamente a mesma. A versão considerada final do documento foi-me prometida - e aos meus colegas - por indicação do ministro Castro Mendes em 20 ou 21 de agosto, após todas as dúvidas e questões que o Museu de Arte Antiga colocou informalmente, por escrito e extensamente. E esse é o último documento que conhecemos. A senhora ministra veio dizer, afinal de contas, que haveria agora NIF para todos os museus, o que não estava consignado de todo no documento. A existência de NIF para os museus parece-me dificilmente compaginável com a sua inclusão na Direção Geral de Património Cultura.
O que é que desta proposta lhe parece insuficiente para autonomizar? Porque é uma proposta que se chama de autonomização.
Pode-se chamar às coisas aquilo que se entender chamar. O que importa é a substância delas. Na substância, esta proposta definia estruturas que continuam dependentes e integradas na Direção Geral do Património Cultural ou nas Direções Regionais de Cultura. Portanto, se estão dependentes e integradas não se entende onde é que configura o novo regime jurídico. O que existe é um documento, que tirando algumas virtudes - a primeira das quais o mero facto de se perceber que as coisas não podem continuar na mesma nos museus e monumentos - mas, enferma de vícios gravíssimos. Mistura museus, monumentos e sítios arqueológicos no mesmo bolo, como se fossem realidades afins, que não são. Têm conotações completamente distintas. Agrega-os de uma forma verdadeiramente esdrúxula, criando unidades orgânicas compósitas entre monumentos e museus. Agregando, por exemplo, este Museu e a Casa-Museu Anastácio Gonçalves. cujo ethos vem de ter sido o atelier do Malhoa e da coleção de pintura naturalista que tem. São casos que ilustram, de facto, a ignorância, para usar a palavra certa, do que são os museus, do que é a sua gestão e do que são as dificuldades e daquilo que há a cuidar alimentou o documento que foi feito no secretismo do gabinete do ministro e só tardiamente aberto a associações entendidas como representativas da classe.
Isso foi a 16 de julho, de acordo com a informação disponibilizada no próprio site do ICOM, e toda a informação de que disponho e toda a sucessão dos factos, indica que se destinava a ser aprovado de urgência em Conselho de Ministros a 27 de julho. Foi 11 dias antes que o documento iniciou a sua discussão com os representantes do ICOM e da APOM. E foi no texto público, no dia 23, às oito horas menos sete minutos da noite que, com carácter de urgência, os museus foram informados do teor do documento sem haver qualquer estímulo a ideias ou contributos de qualquer contraditório. É um documento que enferma de questões tão graves como deixar de fora o Laboratório José de Figueiredo. Como é que o laboratório de conservação e restauro do Estado, que é instituição central no trabalho dos museus, pode ficar de fora de um documento deste tipo, continuando a ser um serviço e uma repartição da Direção Geral do Património. Está à vista o crime que está a ser feito, de asfixia daquela instituição. Ou, como é que, por exemplo, se abre, e bem, e finalmente, os concursos dos diretores a elementos externos à função pública, ou mesmo internacionais, e ninguém pensa, a não ser este museu, na carreira dos conservadores, que a gestão das coleções obriga a ter formação científica exigente. Foi apenas a preocupação única dos números de visitantes e da bilhética que eliminou a expressão de primeiro museu, a favor do nosso astro que é o Museu Nacional de Arqueologia em associação com o Mosteiro dos Jerónimos e com a Torre de Belém. É óbvio que, a partir daí, possuidor de números comuns de visitantes e receitas sumptuosas, perante uma tutela que não faz a mínima ideia do que é o trabalho de um museu, ou sequer o que é um museu, e que, na sua esmagadora maioria, nem sequer entrou num museu. A questão não tem a ver com a volúpia de um estatuto social, tem a ver, efetivamente, com a capacidade de contribuir para a marca do país. E é evidente, toda a gente sabe, e é dos estudos, que os museus de arte são os museus que definem a marca de um país porque têm o património histórico-artístico. O Museu de Arqueologia por natureza se dedica ao que foi antes de ser país dificilmente pode ilustrar o devido histórico nacional. No estudo de públicos que a tutela encomendou, respeitante a 2015, fica claríssima a diferença de escala entre este museu e o salto que este museu deu nos últimos anos. E todavia, não se pretende sequer ouvir, discutir, cuidar e atentar aos problemas do museu. Isso é um vício constitucional e explica por que razão o documento é um aleijão jurídico como, aliás, eminentes juristas das universidades de Lisboa e Coimbra têm-me dito e ponderado por escrito.
Vê esta situação também como uma espécie de castigo a si mesmo?
Eu tento, obviamente, não personalizar as coisas. Mas, uma coisa é certa. Foi criada uma animosidade pessoal. Com o antigo ministro, para este museu era absolutamente visível e a senhora ministra não me parece estar a dar sinais contrários. O que também me conforma mais na decisão de não me recandidatar porque eu entendi durante todos estes anos de trabalho, obviamente insano, que estava a servir a instituição. A partir do momento em que começo a ter dúvidas sobre se a minha pessoa não poderá ser justamente um engulho na fluidez das relações, visto que elas foram interrompidas, naturalmente tenho a noção de que estou a ser nocivo à instituição e não porventura positivo, como eu imaginava. Foi absolutamente visível esse distanciamento com o anterior ministro. Com esta ministra, ao contrário, não houve aproximação.
Há dois anos que Museu e Ministério fazem de conta que não existem, ou que não querem ouvir.
Eu não faço de conta que o ministério não existe porque não posso. Agora, se entender que eu sou sub-diretor geral do Património Cultural [por inerência do cargo] e que, na própria Direção Geral do Património Cultural me foi sonegada a informação sobre o diploma da autonomia que, evidentemente, foi tratado entre o Ministério e a Direção Geral, soube formalmente ao mesmo tempo que todos os outros.
Neste momento, este é o segundo museu mais visitado do país.
O Museu Nacional dos Coches [o mais visitado] é tecnicamente um sítio patrimonial. É uma coleção que é fechada, que não cresce, está exatamente ali, que não tem repercussão internacional, porque, enfim, rarissimamente um coche viaja para uma exposição - foi para a Europália e, porventura, caso único, e, portanto, entre o Museu dos Coches e o Mosteiro dos Jerónimos existe, obviamente, muito mais similitude do que entre o Museu dos Coches e este museu. Este museu, por exemplo, no ano passado teve 150 peças que migraram para outras exposições internacionais, grandes exposições nos quatro continentes. É preciso saber o que o museu faz e qual é exatamente a diferença. O facto de uma instituição ter à porta a palavra museu não significa que essa palavra tenha o mesmo sentido em todas as instituições. Porque há o Museu de Figuras de Cera, há o Museu Virtual, há museu de todo o tipo. A mesma palavra designa estruturas, instituições e coisas completamente distintas. Se tem uma legislação que junta no mesmo saco palácios, museus, monumentos e sítios arqueológicos, como é que pode distinguir entre o Museu do Abade de Baçal, com todo o respeito, e o Museu Nacional de Arte Antiga? E respetivas necessidades? Enquanto os monumentos podem ser lucrativos - e os Jerónimos são, sobretudo se não investe nos monumentos e só retiram receita da bilheteira, pois, obviamente, tem ali uma fonte de rendimento - os museus são marco da civilização que absorvem meios. São extremamente baratas, comparadas com os outros, mas não deixam de os absorver. Não temos a menor capacidade de contornar ou de tratar o que podem ser os elementos de sustentação da casa, como o preço do bilhete - veja, por exemplo, como é possível que o preço do Oceanário seja 20 euros e que o preço deste museu sejam 6 euros? Será que as pessoas não estariam dispostas a pagar mais de 6 euros para ver este museu? Nós temos, aliás, um estudo em marcha sobre esse assunto, com a Nova SBE.
E já estão a chegar a conclusões?
Há conclusões preliminares que apontam, no mínimo, para o dobro do valor do bilhete, mas, nós também não conseguimos fazer esse estudo cabalmente porque não temos autonomia para dizermos "agora durante uma semana não se paga bilhete e vamos ver o que as pessoas dão espontaneamente". É sempre pelos intervalos dos pingos da chuva. As visitas gratuitas, por exemplo. O sistema que implementaríamos seria radicalmente oposto em relação ao que existe, muito mais eficaz do ponto de vista do benefício público
A sua sugestão seria não ter os domingos gratuitos e passar a ter duas horas livres por dia...
Isso faria que o lado predatório que existe na gratuitidade, com as agências e os operadores turísticos, deixasse de existir, porque é evidente que não é a essa hora que as pessoas vêm. Permitia uma muito maior flexibilidade do visitante nacional, transversal, sem procurar se as pessoas são ricas se são pobres, se são jovens se são idosos, são o que são, se são famílias ou se vêm sozinhos. E permitia estimular a criação de verdadeiros públicos. E, finalmente, permitia ainda perceber, fora de toda a retórica, se de facto a gratuitidade é verdadeiramente utilizada pelos portugueses ou não.
Qual é a sua opinião?
É evidente que nós vemos hoje uma crescente apetência para os museus, da parte da população nacional, porque as pessoas são mais cultivadas e porque as instituições se tornaram mais apelativas. É óbvio. Mesmo num país onde existe uma total disfunção do sistema entre o Ministério da Cultura do Ministério da Ciência e do Ministério da Educação não trabalham juntos. Serve para dizer que, de facto, é impossível avaliar uma instituição, considerada altamente deficitária, se não se lhe dá os meios para não ser. Mas, entretanto, eu gostava de perceber se a Cinemateca, a Biblioteca Nacional ou a Torre do Tombo, por exemplo, são instituições lucrativas ou equilibradas do ponto de vista financeiro. O Estado é que tem de inventar os meios e ter a capacidade criativa, porque tem todo o know how e saber para tal, para resolver o problema estrutural dos museus, dos monumentos e dos palácios, em termos da sua sustentabilidade, e deste museu em especial pela sua escala e capacidade de interlocução internacional e investigação científica e saber etc. Porque não vale a pena imaginar que não é do senso comum a perceção da diferença de escala deste museu em relação aos outros. Esta é a única coleção de relevância internacional existente em Portugal. Não é por acaso que, no ano passado, estiveram emprestadas 150 peças e 450 outras de toda a parte do mundo que vieram para exposições nossas. Sem prejuízo de que todos os museus são iguais em dignidade e, por conseguinte, todos têm objetivos e todos têm de ser apoiados, não é tratando igual aquilo que é diferente que se resolvem os problemas. Também não vale a pena estarmos a pensar como se fossemos o único país com esse problema porque o problema já está analisado e visto em toda a parte do mundo. Como eu disse à senhora ministra na reunião, em que ela apelou muito à criatividade, a nossa criatividade era estimulada, diariamente, nestas instituições com o objetivo de contornar as limitações que a tutela nos impõe. Daí o nosso trabalho com o Grupo dos Amigos.
Foi com o Grupo dos Amigos que vocês conseguiram comprar o Sequeira?
Tudo. É só olhar para as nossas publicações, as nossas edições... tudo tem o logo do Grupo dos Amigos. Todo o mecenato que entra na instituição entra pelo Grupo dos Amigos. Porque senão nunca conseguia chegar ao destino. Ainda agora a Fundação La Caixa apoia o Grupo dos Amigos para que ele apoie a exposição. Os portugueses que compraram o Sequeira para o Grupo dos Amigos, que pediu licença à Direção Geral do Património Cultural para o oferecer ao Museu Nacional de Arte Antiga. Imagine que, por uma birra, a Direção Geral de Património Cultural amuava e não queria.
O museu precisa de crescer, em condições e em espaço, outro projeto que não avançou.
É outro projeto que não avança. Tal como não avançou, por exemplo, o projeto de reabilitação da fachada norte do museu, 1,7 milhões de euros que eu estive a negociar com a Direção Geral do Património e Tesouro. A partir do momento em que deixei de ter capacidade de interlocução direta é como se vê. E a fachada norte, que dá acesso às exposições temporárias do museu tem o ar brilhante que é fácil de ver. A Capelas das Albertas pôde ser aberta ao público, por onde anda vê sempre placas de mecenas, porque senão jamais teríamos conseguido fazê-lo. Mas o que mais me espanta, confesso, é ainda a montante disso. É como é que pode estar encerrado, durante 11 anos, o acesso a uma parte estrutural do museu como é a Capela das Albertas sem que isso constitua um problema para ninguém. Ou como pode estar encerrado, durante sete anos, o terceiro piso do museu, com as coleções de pintura e escultura, ou, como é que se pôde chegar ao ponto de ter encerrada a sala dos painéis de São Vicente, por exemplo, como já se chegou.
Nos últimos seis meses a sala dos painéis de São Vicente esteve fechada?
Não foi nos últimos seis meses, mas foi em 2017. Nos últimos seis meses conseguimos mantê-la, manter o terceiro piso aberto, mas, por exemplo, já se tornou rotina que o segundo piso, com o Custódio de Belém, com os Biombos Namban e milhares de outras obras, fecha e abre como os peixes. Coisa que nunca tinha acontecido na história da instituição.
Uma técnica superior que trabalha no Museu disse um dia, a propósito das salas que fecham, "eu faço o meu trabalho...".
E o Estado tem de fazer a dele, pois claro. O museu está, neste momento, todo aberto. As áreas que eu e o José Alberto Seabra [diretor-adjunto] herdámos encerradas estão todas disponíveis para abrir. O museu era um espaço desagradável e inóspito e hoje é um espaço acolhedor e contemporâneo. E tudo isso foi sempre feito ao arrepio da tutela, uma situação absurda e que gera uma tensão e um esforço sobre-humano e, a partir de certa altura, sem sentido. Estamos a falar de verbas tão absurda, escandalosamente ridículas, que não podem sequer ser pronunciadas lá fora porque nos cobrem de vergonha. No caso deste museu se, em 2015, quando entregamos à tutela o estudo parcimonioso de viabilidade financeira tivessem libertado os 500 mil euros da nossa receita nós teríamos, com isso, conseguido proteger a equipa. E estamos a falar de 500 mil euros. É o mesmo Estado que dá à Serralves, e muito bem, e com toda a justificação, o dobro do que está a este museu com uma legislação que lá fala da relevância do investimento na cultura e aqui fala sempre do ónus e do peso que este peso representa no erário público.
Quanto é que o Estado entrega à Fundação de Serralves?
Faz parte dos estatutos porque o Estado é fundador da Serralves. Quatro milhões e seiscentos mil euros por ano. Este museu custa ao Estado entre a receita de bilheteira e os custos de manutenção pouco mais de dois milhões Portanto, estamos a falar de metade. Como é que este museu pode ter 67 funcionários no total e o Museu Nacional do Luxemburgo, que é, evidentemente, muito mais pequeno, tem 108? E tem mais de sete milhões de orçamento próprio para além da receita de bilheteira, da loja, dos sponsors, etc, tudo aquilo que consegue. Portanto estamos a falar de uma verba que provavelmente duplica isso. Há um limite para tudo e a razão da minha indisponibilidade para continuar é porque não há condições. E a razão é simplesmente essa. O museu fez um exercício absurdo e, como eu digo, original de demonstração pedagógica das suas capacidades.
Quantos visitantes tinha o museu quando chegou em 2010?
118 mil visitantes. Mas, vamos lá ver, é evidente que o museu deve, por natureza, ter visitantes, porque é uma instituição democrática que se destina a comunicar à comunidade o essencial da sua visão histórica e da sua missão e a propiciar um espaço de respiração e de felicidade. Em que cada um encontra o caminho que gosta em cada uma das suas obras. Um museu como este tem mais de oito mil peças expostas. Cada uma dessas peças tem mil detalhes. Este museu tem 133 anos e nunca viveu um período próspero, o que significa que estamos com uma intervenção externa da troika desde 1834. Tecnicamente. E, durante esse período, muita coisa se fez em Portugal. Estádios de futebol, etc, etc. A questão tem sempre a ver com as tais prioridades.
Além do António Filipe Pimentel, o diretor adjunto José Alberto Seabra de Carvalho também está de saída. Chega ao fim a um período de trabalho.
Não vamos sair só nós.
Já estão planeadas mais saídas?
A parte administrativa, que é outro coração da casa, está quase paralisada.
Não são só estas pessoas que saem, porque, eventualmente podem ser substituídas. Há um saber que não se transmite.
O saber propriamente, o saber pensar, questionar, o criar para o futuro, o lado científico, é esse que não se vai transmitir e que vai quebrar. E quando isso quebrar é uma coisa... nem tem nome. É como deitar fora a universidade de Coimbra ou coisa que o valha, como se ela não tivesse existido. Em 1987 o conservador tinha o assistente de conservador. Veja o que o museu fazia em 1987 e o que faz hoje, quando edita mil páginas/ano de nova investigação científica, sua ou alheia, mas mobilizada pela casa. e quando devia estar a saltar para a reedição do boletim. Era um objetivo. Uma das poucas coisas que tenho o desgosto de não ter cumprido é exatamente isso: voltar a editar o boletim do Museu Nacional de Arte Antiga que é fundamental. Todos os grandes museus têm a sua revista.
E o que é que vai fazer?
Eu? Na minha vida? Sei lá. Isso não me preocupa nada. De certeza que não vou ficar desocupado. Mas há uma coisa que tenho, desde logo, na linha do horizonte, porque eu sou professor universitário. Quero fazer a minha agregação académica, que está adiada há oito anos e que, naturalmente, vai ter por tema estes oito ou nove anos de exercício, como case study, para ser discutido por um júri académico. E, portanto, essa será a última dívida que eu pago a este museu, com o qual contraí uma dívida muito grande de, enfim, de realização pessoal, não do ponto de vista das condições de trabalho, mas do ponto de vista da aventura - porque eu gosto desse lado aventura.
Fica claro que sairá.
Eu penso que sim. Se houver uma alteração substancial das coisas, nada me daria mais gozo do que dar continuidade a um trabalho que significava não desperdiçar energia da instituição. Ao sair tenho o sentimento que o futuro da instituição fica gravemente comprometido. E, portanto, isso não deixa ninguém feliz nem realizado. Por muito que tenha o sentimento do dever cumprido. O que compensa internamente, mas não externamente. Agora, obviamente, não se trata de uma birra, como já disse, nem de uma obstinação. Se houver uma alteração substancial das condições, pois com certeza, estou disposto a continuar. Agora é bastante mais do que um NIF. É dar a este museu as asas para voar, que ele tem que ter. Realisticamente, tenho fortes dúvidas [sobre ficar na direção do museu]. Como as coisas foram muito mal conduzidas, no sentido de uma espécie de guerra de vaidades, alguém aqui tem de perder a face. O que é uma estupidez. Nós estamos no serviço público, e o serviço público é o serviço das instituições do país. A face e a vaidade de cada um não tem o menor dos interesses. Existe, sim, uma razoabilidade das coisas. E é tão irrazoável o que se passa aqui, como se passa na generalidade dos museus. Isto não é nenhum avanço. É apenas um retrocesso a uma situação que os museus tinham há 10 anos. Antes da calamidade, da troika se ter instalado. Os museus tinham NIF, perderam quando foi centralizada a estrutura. Portanto, vamos lá ver, não estamos a avançar para nenhum paradigma. Vai ter uma delegação de competências para gastar X e ter acesso a parte das suas receitas. Essa delegação de competências também já existiu. Os museus tinham acesso a parte das receitas. Até que tudo foi centralizado na tutela. E naquele diploma há coisas perigosíssimas, como a partilha dos meios comuns, que significa que na verdade todo o processo decisório continua centralizado no mesmo ponto. H
Acha que há aqui uma espécie de castigo político pelo facto de ter sido sempre uma pessoa muito crítica?
Eu não fui sempre uma pessoa muito crítica.
Mas também nunca foi o diretor sossegado e calado.
A doutora Gabriela Canavilhas deu-me por missão defender e promover a instituição. E portanto, a defesa da instituição e a sua promoção foi aquilo a que eu me dediquei. E foi o compromisso que eu assumi. E defender a instituição obrigou-me a não ser submisso. Portanto, a alternativa será, não tenho a mínima dúvida, ter um diretor submisso. Que isso signifique a defesa da instituição isso já tenho dúvidas. Mas, como digo, a instituição não é minha. Como eu sempre disse, aliás, quando as pessoas diziam "o seu museu", sempre corrigi "o museu não é meu, o museu é seu". É de todos nós. Só me engoliu, mas temporariamente. Não tenho a mínima dúvida que o paradigma de diretor que, aparentemente, se deseja ter, não corresponde ao meu perfil. Apenas, como sou muito original, por exemplo, ao contrário da esmagadora maioria das pessoas que quando se divorcia já tem outro ou outra, no meu caso arrumo as coisas primeiro.