Foi com uma pose inconfundível, a tocar flauta transversal apoiado numa só perna num recorrente desafio equilibrista que Ian Anderson trouxe Jethro Tull ao mundo, numa altura em que o rock progressivo ainda não tinha este nome. São 45 anos de discos e quase cinco décadas de concertos desta banda britânica que no dia 10 de outubro vai estar em palco, no Multiusos Guimarães. E não traz surpresas nem pretende agradar o público, afirma.Como é que equilibra inovação com honrar o som que os fãs de há muito tempo esperam?Estou mais interessado no que espero de mim mesmo e no que, como banda, esperamos uns dos outros em termos de performance. Não vou lá para agradar o público, vou lá para me agradar. E se eu me fizer feliz, acho que isso vai ser comunicado com o público, e eles também vão apreciar o concerto. Mas esse é o meu primeiro motivo egoísta para ser artista. É pelo que significa para mim. Acho que se a maioria dos artistas fosse honesta consigo mesma e com o público, concordaria comigo. Fazemos isto porque é uma droga inebriante. É algo que, quando terminamos um concerto termina, ficamos realmente felizes por ele ter terminado. Só queremos voltar para o camarim, voltar para o hotel e dormir. Mas na manhã seguinte, estamos realmente animados para fazer tudo outra vez. E então é um prazer viciante que depois de 56 anos, ou algo assim, eu ainda sinta o mesmo em fazer isto e com a mesma sensação de competição, não competindo com outras bandas, competindo com as minhas próprias melhores performances. Então, às vezes, acho que essa noite foi boa. Há duas noites, estava numa pequena cidade na Alemanha a tocar num concerto ao ar livre. E lembro-me de voltar para o meu camarim e pensar: “É isto, foi muito bom. Não foi perfeito, mas foi muito bom.” E acho que aquilo de que mais gosto em ser artista é a sensação de recompensa que recebo por fazer o que faço. E em termos do número de anos e das músicas que selecionamos, ou melhor, das músicas que seleciono, porque estou na banda há mais tempo, acho que sei o que devemos tocar para evitar repetições constantes. Analiso o que tocámos nos concertos nos últimos dois ou três anos e tento fazer o alinhamento pelo menos 50% diferente do anterior. Se fosse possível rever cada concerto, ler cada concerto e perguntar: “Bem, quando foi a última vez que toquei nesta cidade em particular? O que é que toquei? Portanto, vou tocar algo diferente, para ser totalmente rigoroso sobre isso.” Seria muito complicado, porque significaria que o repertório iria mudar quase todas as noites. Não podemos fazer isso, porque tudo é programado. Na maioria dos nossos concertos utilizamos vídeos. Tudo é programado com muita precisão. Não podemos mudar as coisas todas as noites, temos de seguir um plano. E o plano para a maior parte de 2025 e a primeira parte de 2026 é o repertório que estamos a tocar agora. O repertório inclui músicas do último álbum, Curious Ruminant? Sim, incluímos um pouco disso. Tocamos algumas músicas do álbum mais recente. E tocamos uma música do álbum anterior e uma música do álbum antes desse. Nos últimos quatro anos, quatro músicas são novas ou relativamente novas para Jethro Tull, e as três primeiras músicas que tocamos são todas de 1968, do nosso primeiro álbum. É uma grande mistura, coisas de 68, 69, 71, 72, e várias coisas que se destacaram ao longo do caminho. Não tocamos necessariamente algo de todos os álbuns, porque ficamos no palco apenas por duas horas. Já lançámos muitos discos, seria impossível. Quer dizer, depende do tempo que ficamos no palco. Como é que descreve a sua relação com o tempo, tendo em conta que há uma mistura de várias épocas na música de Jethro Tull?Bem, na verdade, sou um pouco como um relógio suíço, aquele que estou a usar neste momento. Calibrei-o para estar adiantado três ou quatro segundos a cada dia, porque a cada três ou quatro dias tenho de mudar para um novo fuso horário. E isso me dá-me talvez dez segundos de vantagem para acertar o relógio. Mas, sim, eu acho que em termos de tempo, se dissermos que vamos sair do hotel às 7.15 para ir para o aeroporto, então, às 7.15, estão todos no carro e às 7.15 as rodas começam a andar. Nunca nos atrasamos. Acho importante não deixar os outros à espera. Assim, todos temos um bom sentido de pontualidade e tempo, no sentido de tempo, seja tempo musical, seja com compasso de 2/4, 3/4, 4/4, 5/4, 6/4, 6/8, seja qual for o compasso da música que estamos a tocar, estamos sempre a tocar no tempo. E o tempo é um fator importante. Mas, ironicamente, alguns dos melhores momentos da vida são quando não estamos a contar os minutos ou os segundos. Alguns dos melhores momentos são justamente quando nos entregamos às exigências do tempo e simplesmente aproveitamos o momento. E é isso que os gatos fazem. Se pensarmos assim: “Lembro-me do que estava a fazer há 10 minutos ou do que estava a fazer ontem.” Mas os gatos estão sempre no presente. É só disso que eles têm consciência. Às vezes é bom para nós, seres humanos, adotarmos esta sensação de intemporalidade, que é o que podemos fazer quando estamos a descansar e a apreciar o momento sem questionar quantos segundos passaram. E qual é o tempo, a época da música de Jethro Tull? Sim, certamente há uma música predominantemente baseada na música folk negra americana, que é designada como blues. E essa era a entrada para o mundo em que se vive da música. Sendo um músico profissional, naquela época, essa era a porta de entrada. Mas, mesmo em 1968, eu já queria compor músicas mais originais, que tivessem influências diferentes, origens diferentes, e que fossem mais ecléticas por natureza. E então, em 1969, o álbum Stand Up foi provavelmente um dos primeiros álbuns reconhecidos pela imprensa musical do Reino Unido como álbuns de rock progressivo. E foi assim que, em 1969, algumas bandas ficaram conhecidas. E isso foi um grande passo à frente. Não foi a primeira vez que isso foi feito, porque, de certa forma, os Beatles, com Sgt. Pepper, eram pop progressivo. E o Piper at the Gates of Dawn, dos Pink Floyd, era um álbum embrionário de rock progressivo. Em 1967, havia alguns movimentos que iam em direção ao que se tornaria o rock progressivo, à sua maneira, baseado no blues. Mas com músicas como Tales of Brave Ulysses e Sunshine of Your Love, não se poderia realmente chamar aquilo de blues. Elas eram algo diferente do que eram no início. O rock progressivo começou em 67, mas esse não era um termo usado. Ninguém o tratava por rock progressivo. Isso só aconteceu em 1969 na imprensa musical britânica. Há elementos, é claro, de música nas minhas composições que vêm da era da música clássica. E suponho que as influências de Bach e Handel, Beethoven são subtis na minha música, provavelmente desde 1969, e certamente incluindo o álbum mais recente. Então, a música clássica é uma parte importante disso. Como é que encara a forma como influencia outros músicos? Refiro-me, por exemplo, à banda irlandesa Flook, onde a flautista, Sarah Allen, tem exatamente a sua postura quando toca.Já ouvi o nome da banda. A questão é que não sou muito fã de música. Em 1974, acho que praticamente parei de ouvir música. Senti que já tinha ouvido muita coisa quando cheguei aos 30 e poucos anos. Realmente não senti que precisava de mais influências musicais e parei de ouvir música. Às vezes ouço música, mas não me esforço muito para a ouvir como forma de relaxamento ou excitação. Não vou a concertos. Se não estiver realmente a tocar, a compor ou a gravar música, prefiro manter a música longe da minha vida. Não quero fazer isso 24 horas por dia durante sete dias por semana. Costumo fazer três dias por semana e possivelmente 12 horas por dia. É o suficiente para qualquer um.O que é que o influencia, já que não ouve música? As influências musicais que tenho vêm principalmente, eu acho, de antes do Jethro Tull começar, quando eu era adolescente, e da música que comecei a ouvir mais em meados dos anos 70. Eu ouvia música clássica. Não queria ouvir pop ou rock. Trabalhei com muitas pessoas e toquei para vários discos ao longo dos anos. Se alguém me pede para tocar num disco, é mais provável que eu queira fazê-lo se a música que eles tocam for completamente diferente daquela que eu faço. Aí é um desafio maior e mais interessante de tocar. Mas para quem está no mesmo género musical de Jethro Tull, não me sinto tão animado para fazer isso. Estou mais animado para fazer algo um pouco diferente.Numa entrevista recente, fez alguns comentários sobre as guerras atuais. Sente-se responsável pelas mensagens transmitidas através da música? Bom, eu não estou de facto a mandar mensagens. Normalmente, alimento as ideias. Se estou a fazer alguma coisa, será estimular as pessoas para considerarem tópicos diferentes, sejam contemporâneos ou históricos ou qualquer coisa mais espiritual. Espero estar a dar às pessoas o ímpeto para que descubram por si mesmas e formem as suas próprias opiniões. Não quero dizer às pessoas o que é certo ou errado, em quem devem votar, ou se a culpa é toda do Hamas ou se a culpa é toda dos conflitos e da guerra em Israel, Gaza e Cisjordânia, ou se a culpa é, em parte, dos israelitas. Não estou aqui para dizer de que lado as pessoas devem ficar. Não tomo partidos nessa questão específica porque é muito mais complicada do que seria possível explicar numa frase. É preciso considerar 5.000 anos da história de Jerusalém como ponto de partida. Depois, é preciso observar a forma como ela mudou de mãos tantas vezes. É preciso analisar o papel que as religiões abraâmicas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, nessa ordem, desempenharam historicamente, como elas passaram a interagir e como, com tanta frequência, passaram a usar a religião como instrumento de guerra. Isso cria um enorme grau de complexidade, porque é possível simplesmente aceitar a visão de que alguém está certo e, portanto, o outro está errado, ou vice-versa. É preciso aceitar que existem diferenças, pontos de vista, diferenças de opinião e diferenças nas quais a forma como as pessoas reagem às vezes nasce da vingança e da retribuição. Às vezes, é mais responsável. Trata-se de tolerância, de compreensão, de aceitação. Suponho que o papel que considero de Jesus Cristo no cristianismo seja o de nos ensinar sobre tolerância e respeito. Não sou realmente um cristão, no sentido de ser praticante e devoto, mas sou um grande defensor do cristianismo porque, em muitos aspetos, é a mais benigna das religiões modernas. O budismo, por outro lado, é o mais benigno, mas talvez seja um pouco equivocado referir-se ao budismo como religião. O budismo é um conjunto de crenças e de recomendações espirituais, mas não creio que seja uma religião da mesma forma que o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, ou mesmo algumas das religiões politeístas do passado, que se dedicavam à adoração de uma divindade. Isso sempre teve tendência a ser um pouco perigoso em termos de onde leva as pessoas a seguirem o seu caminho. Não digo às pessoas no que devem acreditar. Só posso dizer para fazerem o que eu faço: leiam, ouçam, mas, acima de tudo, respeitem e tolerem pessoas que têm um ponto de vista diferente. Se ficarem com raiva, se se tornarem cruéis e quiserem atacar, bem, talvez seja melhor simplesmente fugir.O que significa para si sucesso agora face ao que era quando Jethro Tull começou? Sucesso de uma forma tangível, mais quotidiana, talvez seja conseguir não me preocupar com dinheiro, não me preocupar com as pressões que vêm do trabalho. Olhando para trás, posso dizer que, provavelmente, de 1972 em diante eu não precisei realmente de trabalhar. Provavelmente em 1972, 1973, 1974, ganhei dinheiro suficiente para, se tivesse tomado cuidado, poder simplesmente dizer que bastava. Não preciso mais de trabalhar. Jeffrey Hammond, o nosso baixista no início dos anos 1970, disse, quando gravou o álbum Aqualung: “Vou fazer isto apenas durante cinco anos e depois deixo”. Claro, eu não acreditei nele. Em 1976, Jeffrey queimou as roupas de palco, vendeu as guitarras e nunca mais tocou. Até hoje, nunca teve um emprego. Ele conseguiu sobreviver sendo muito cuidadoso com o que ganhou nos quatro anos anteriores à saída da banda. Acho que eu estava na mesma situação. Talvez isso seja sucesso, não ter que trabalhar, mas escolher trabalhar.