A literatura japonesa raramente é traduzida em Portugal e, após uma época "intelectual" em que os leitores portugueses devoravam Yukio Mishima ou folheavam com relativa atenção Kenzaburo Oe, entre poucos outros clássicos daquele país, praticamente só resta a coleção de retratos oníricos de Haruki Murakami para se perceber o que se passa naquela zona do mundo a nível literário..A novidade é o romance Os Amores do Senhor Nishino, de Hiromi Kawakami, que foi recentemente traduzido após a tentativa fracassada de revelar Ryu Murakami há uns anos. Não que ambos abram uma porta para outra dimensão do que se estará a publicar no Japão atual, pois a marca de Murakami é a única que tem interessado os portugueses e nem a sonoridade próxima do apelido de Kawakami àquele ou o da igualdade do de Ryo subvertem a ditadura lusitana de Haruki. Mesmo que em ambos se encontrem ecos, seja no registo desta sua colega e na temática do outro, e por isso mesmo o leitor não se sinta noutra dimensão..Kawakami tem neste livro um protagonista, o Senhor Nishino, uma espécie de Don Juan que mantém relações emocionais com dez mulheres, reservando a cada uma delas um capítulo nestas quase duzentas páginas. Começa bem, com um Nishino a surgir como um fantasma que revisita uma das suas amantes e onde desvenda em muito o fecho da sua história. Portanto, inicia-se o livro sabendo fim, mas como em toda a boa narrativa o importante está nos detalhes e esses só serão conhecidos após desfilarem as outras nove mulheres que Nishino, de um modo ou de outro, conquistou e perdeu..Não se espere um manifesto feminista ou um retrato da mulher japonesa moderna, pois a autora envolve todos os capítulos num constante mal de amor e de frustrações das mulheres que cria por se terem deixado seduzir ou não terem sabido apropriar-se de uma figura masculina que surge desenhada como uma serpente, escorregando entre as mãos de quem o quer segurar por mais do que uns instantes de felicidade. Afinal, Nishino foge de um compromisso sério a todo o custo e, mesmo radiografado por vários pares de olhos, permanece uma personagem obscura e indecifrável, a não ser quando a autora precisa de fechar o livro..Se fosse um livro de contos sobre amores impossíveis, ninguém estranharia a estrutura do volume como ele se apresenta. No entanto, pretende ser um romance, daí sentir-se o tal aroma a Murakami e possa satisfazer os muitos que o admiram ao ler-se Hiromi Kawakami, até porque o envolvimento sexual surge com toda a frequência possível e até mesmo chocante num dos capítulos..De qualquer modo, Kawakami recusa qualquer semelhança entre o seu Noshino e Don Juan, como afirmou nesta entrevista a propósito da sua primeira tradução em língua portuguesa. Quando se lhe pergunta se o protagonista é um descendente direto do conquistador mais famoso, responde: "O Don Juan, parece-me, domina a mulher. O Nishino não tenta dominar a mulher. Elas até podem ter desejado ser dominadas por ele." Prefere encontrar um melhor exemplo na literatura oriental: "Se o Nishino fosse descendente de alguém, seria de "Hikaru Genji", personagem principal de O Romance de Genji, pois ele aceitava todas as mulheres que o desejavam e, no entanto, não fazia ninguém feliz.".Ou seja, estamos perante um protagonista que desperta o desejo em dez mulheres, permitindo-lhes viver a sua sexualidade, desdobrar em realidade os momentos de sensualidade mais desejados na intimidade, só não as faz totalmente felizes apesar de entregar a cada uma a chave para a compreensão do seu corpo e do amante que devem repudiar. O que a primeira mulher a aparecer no livro confirma ao resumir a relação desta forma: "Que será o amor? As pessoas têm o direito de se apaixonar pelos outros, de não ser amadas. Lá por estar apaixonada, não significava forçosamente que Nishino se sentisse, também ele, apaixonado.".É o seu primeiro livro traduzido em Portugal. Como se apresentaria aos leitores de um país que do Japão só lê Haruki Murakami?.Até há pouco, eu só tinha lido Pessoa e Saramago, mas no mês passado li Galveias de José Luís Peixoto. Apreciei bastante e fiquei impressionada. Aliás, à medida que ia lendo as obras destes autores, não pensava nelas como "romances ou poemas portugueses", mas apenas como "romances e poemas". Portanto, pode apresentar-me como "Kawakami Hiromi, a romancista. A escritora está sempre a colocar em consideração o que realmente são os seres humanos. Vezes sem conta, reflete em como as pessoas vivem e, eventualmente, morrem." Este pensamento é feito por muitos romancistas do mundo inteiro, e não apenas pelos que são japoneses. Relativamente aos costumes japoneses que constam no romance, desfrutem-nos como se estivessem na sua primeira viagem ao Japão!.Colocar dez mulheres a retratar um homem, optando por um ângulo mais sexual, é a forma perfeita para radiografar as mulheres e os homens e as relações possíveis entre eles?.Apesar de existirem milhares de romances no mundo, a representação de apenas dez pessoas, não será certamente suficiente! No entanto, nem todas as frases escritas contam a verdade. O meu objetivo, com este romance, é que o que não está por escrito revele a verdade..As mulheres que amam Nishino são bem diferentes da imagem que ainda existe sobre as mulheres japonesas mais tradicionais. Com este livro pretende eliminar os estereótipos femininos orientais e criar novos?.Já escrevi Os Amores do Senhor Nishino há cerca de vinte anos, mas naquela altura, a visão de um país estrangeiro relativamente às "mulheres japonesas" era de "ser devota ao homem, não insistir em ter ego, e viver para o bem da casa", que coincidia com a visão da maioria das mulheres japonesas. É claro que havia mulheres, e alguns homens, que tentavam quebrar essa visão opressiva da mulher. No entanto, em muitos romances japoneses, essa era a versão da "mulher japonesa" que transparecia. Contudo, tanto a mulher como o homem são géneros diversificados. Sempre pensei assim, mesmo nessa altura. Portanto, a resposta à pergunta é "Sim". No entanto, para se eliminar esses estereótipos, não pode ser outro país a fazê-lo, mas antes o Japão, e os próprios japoneses. Espero que os leitores portugueses que leiam este livro o considerem tão interessante quanto os leitores japoneses o acharam!.Ao contrário do habitual, é Nishino que é usado pelas namoradas para realizarem as suas fantasias sexuais. O protagonista é ficção ou resulta de um comportamento representativo na sociedade japonesa?.Não partilho dessa opinião, o Nishino não "realiza" as "fantasias sexuais" das suas amadas. Aliás, a razão pela qual elas acabam por se afastar dele, é que o Nishino nunca "realiza" os pensamentos delas. Que desejam algo dele, e ele até quer, mas acaba por nunca o conseguir fazer. No fundo, é Nishino que encarna a dor profunda que não pode ser preenchida pelos seres humanos A e B, mas também encarna o encanto da vida em virtude da tristeza..Há um momento chocante num dos capítulos, em que a irmã de Nishino o amamenta. O que pretende com esse momento tão inesperado?.Os leitores não precisam de valorizar o intuito do autor. O romance, depois de escrito, passa a pertencer ao leitor. Até porque, se for lido com a premissa de que o autor "escreveu com essa intenção", vai limitar a sua leitura. Por isso, sintam-se à vontade para amplificar a vossa imaginação!.Nishino está no título, mas no fim são as mulheres que marcam a narrativa. Queria que fosse mesmo um fantasma?.No romance há pessoas que nunca vão poder encontrar-se. Digamos que, essas pessoas são compostas pela "narrativa" dos narradores do romance. Há as pessoas que falam e as pessoas que são faladas. Um romance suporta ambos os lados, mas, então, a essência é a pessoa que fala? Aquele de que se sabe apenas, é um fantasma? Considero que o falado e o falante como fantasmas, igualmente, mas ao mesmo tempo com essências diferentes. Se um ente querido, que lhe está na memória, falecer, ele nunca será um fantasma, mas antes uma memória que vive em si, certo?.A tradução é feita por uma mulher. Numa época em que se questiona o género nas traduções, acha que se fosse um homem a traduzir ficava a perder?.Se considerarmos o género como algo a categorizar, seja mulher ou homem, ainda é difícil de o fazer. Além de que o trabalho de tradução é, raramente, gratificante. No entanto, os tradutores dos meus romances que conheci até agora, tanto mulheres como homens, expressaram honestamente que lamentam traduzir. Escrever um romance pode ser descrito como fazer uma viagem sem destino. Mas com coragem, tranquilidade e um pouco de sentido de responsabilidade, a jornada prossegue. Ainda que, o trabalho dito de tradução, não seja algo que se possa fazer de forma relaxada. É um trabalho árduo que exige objetividade, fidelidade e minuciosidade. Muito provavelmente, o tradutor até conhecerá melhor o texto do que o próprio autor, pois lerá o texto inúmeras vezes. Se algo se perder na tradução, não penso que se deva ao sexo do tradutor, mas sim às suas qualidades pessoais. Se o tradutor for uma mulher e traduzir o meu romance com seriedade, fico satisfeita. Se o tradutor for um homem, e traduzir o meu romance com seriedade e alguma imaginação, fico inteiramente satisfeita..Hiromi Kawakami.Tradução de Maria João Lourenço.Editora Casa das Letras.197 páginas.Um japonês fenómeno que chega a Portugal.Toshikazu Kawaguchi.Editorial Presença.183 páginas.Levar o leitor até uma outra dimensão é o tema de Antes que o Café Arrefeça, um romance de Toshikazu Kawaguchi, que tem na capa o aviso: "O livro-fenómeno japonês". Mais uma tentativa de mostrar a nova literatura japonesa, num registo que não se estranha face ao romance contemporâneo que vem do Japão. O argumento é sedutor: "Um rumor circula por Tóquio. Escondido num pequeno beco da cidade, há um café com mais de cem anos. Com uma chávena bem quente, se nos sentarmos no lugar certo, oferecem-nos algo mais: a hipótese de voltar ao passado.".Também existe neste autor um aroma a Haruki Murakami, como se pode confirmar nas descrições de "uma mulher magra de pele pálida" e no que acontece na narrativa exótica/esotérica. Quanto a personagens, fazem lembrar as de Hiromi Kawakami: "quatro mulheres que procuram regressar a momentos determinante das suas vidas para os mudar"..Nada que impeça a leitura se faça de um fôlego, como se costuma dizer, afinal estas histórias de regressão já cativaram um milhão de leitores que as compraram e muitos outros que terão aproveitado o exemplar de alguém. Mesmo que exista um senão nestas viagens ao passado: não se consegue alterar o futuro! Pelo meio, existem inúmeras descrições do Japão, que confirmam a paixão pelas cerejeiras, uma certa ambiência que nem a modernidade elimina naquela civilização em que as grandes questões foram globalizadas..Uma holandesa fenómeno que chega a Portugal.Marieke Lucas Rijnveld.Editora D. Quixote.270 páginas.Na capa está uma primeira justificação para a tradução deste livro assinado por uma jovem escritora da Holanda: "Vencedor do Man Booker International Prize 2020". Chama-se Marieke Lucas Rijneveld, foi a autora mais jovem a ganhar aquela distinção, após ter vencido no seu país em 2018 com este romance de estreia, O Desassossego da Noite, o prémio que certifica os grandes primeiros romances..A história é violenta: a protagonista roga uma praga ao irmão e o pior acontece-lhe ao morrer num lago em que o gelo estava ainda muito fino. A partir daí, a trama vivida numa zona rural da Holanda permite conhecer várias situações, descritas a partir de um cenário pouco habitual para uma jovem escritora, bem como a expressão de sentimentos que parecem bem adultos. Contar como os filhos são abandonados, o sofrimento dos pais, a questão do sentimento de culpa religioso, entre várias temáticas que a evolução não retirou à intimidade do ser humano, vão passando por estas páginas de uma forma marcante..A biografia da autora reflete muito do que é o cenário desta narrativa: trabalha numa vacaria e dedica-se à escrita. Um mundo que a maior parte dos leitores desconhece e que a leva a extremar cenários e situações que são inesperadas, mas que fazem descobrir um mundo novo, nem sempre admirável.