O que liga a evangelista espampanante Tammy Faye e a cantora country Tammy Wynette? Ambas foram interpretadas por uma das melhores atrizes da sua geração, Jessica Chastain, e ambas fazem parte do imaginário real de uma certa América da cultura popular dos Anos 70. A primeira, vimo-la no filme Os Olhos de Tammy Faye (2021), que valeu à atriz um Óscar; a segunda surge agora na minissérie George & Tammy e representa a primeira nomeação de Chastain para os Prémios Emmy. Isto numa altura em que a atriz vem assumindo cada vez mais a produção dos projetos que protagoniza - caso não só destes títulos, como da série Scenes from a Marriage (HBO), onde contracena com Oscar Isaac, a partir do texto exigente de Ingmar Bergman, que navega as águas turbulentíssimas de um matrimónio..Por aqui se percebe que Chastain gosta de explorar o elemento dramático das relações amorosas, a sua violência intrínseca, ainda mais através de personagens femininas com traços de vulnerabilidade que se tornam a sua força. Esse é mesmo o caso de Tammy Wynette (1942-1998), cantora que na década de 70 formou uma dupla com a então superestrela da música country George Jones (1931-2013), crescendo artisticamente por sua conta num meio onde a masculinidade tinha por regra a última palavra. Ao longo dos seis episódios de George & Tammy, que se estreia esta quinta-feira no TVCine Emotion (22h10), vamos conhecendo a magia inicial e as agruras do caminho que moldaram esta mulher um dia chamada de “First Lady” do género country, com 1 milhão de álbuns vendidos..Sendo o casamento dos músicos o foco da série, todo o retrato se faz através de uma lógica de canções que espelham uma mágoa presente, ou ainda por vir, enquanto se trabalha a infusão de sentimentos numa linha de tempo instável. E aí pode dizer-se que tudo passa pela química musical palpável entre Chastain e Michael Shannon, o brilhante intérprete de George Jones, também nomeado para o Emmy. A saber, Shannon lançou o desafio de cantarem os dois ao vivo, sem medo das imperfeições que vêm com esse risco, e Chastain entrou no jogo, tornando cada cena em que cantam juntos, ou mesmo separados, um momento de performance em bruto, sem a maquilhagem sonora que muitas vezes distancia o espectador, quando este deteta a falta de autenticidade das vozes. No caso, a força de George & Tammy está sobretudo nesse gesto: dar a ouvir a textura frágil e real das vozes dos atores. Um pouco como aconteceu com Lady Gaga e Bradley Cooper em Assim Nasce Uma Estrela (2018), descontando-se o facto de Gaga não ter o lado cru da fragilidade, por ser uma profissional....As canções figuram, assim, como um aspeto essencial da construção narrativa. E Jessica Chastain quis ser fiel a esse princípio, como confessou à Vanity Fair: “Há uma citação de Tammy [na série] que diz “É preciso viver as canções”. Liguei-me muito a esta ideia de vivermos a nossa própria arte. O que é que isso significa? Ela não se limitou a cantar qualquer coisa. Escreveu sobre a sua experiência ou cantou sobre algo com que estava a lidar. E como artista, como atriz, percebo que quando estou a criar algo, é como se estivesse a viver aquilo. Não tenho um sentido de afastamento daquela pessoa, por ser diferente de mim. Quando estou a representar uma cena, é como se o que está a acontecer estivesse a acontecer comigo pessoalmente.”.Mais uma vez, é de entrega total que aqui se fala. Sem isso, George & Tammy poderia cair na rotina das histórias de homens alcoólicos e mulheres fustigadas pela vida - o que não deixa de ser a sua natureza, mas com doses moderadas de cliché e dois atores que sabem pôr o kitsch a seu favor. Nesse sentido, há uma combinação justa entre o colorido próprio da época, desde logo através dos figurinos daquela realeza country, e uma tragédia íntima que não se esgota no tal motor das canções. Nem Shannon/George “it’s just a man” nem Chastain/Tammy é apenas a tristeza que carrega na voz. Os dois juntos conseguem sobreviver aos seus próprios lugares-comuns, como naqueles momentos em que ela lhe lava o cabelo, com a delicadeza dos tempos em que foi cabeleireira, e o amor parece uma balada... para logo a seguir se provar que esse mesmo amor é destrutivo..Acima de tudo, o interesse de cada episódio recai sobre o percurso da personagem feminina, porque a sua é a história de uma ascensão improvável num meio musical gerido por homens. Quando George e Tammy se conhecem, nos Anos 60, ele é o músico em decadência, mas ainda assim muito popular, e ela a nota de esperança que soa no mundo dele, às tantas começando a brilhar sozinha, quando o alcoolismo o transforma num farrapo humano..Um projeto muito adiado.Importa notar que também não é acidental o facto de a série ter como showrunner Abe Sylvia, um dos argumentistas do referido Os Olhos de Tammy Faye. Afinal, George & Tammy é um projeto que já estava no papel há vários anos, e foi depois de ver esse argumento de Abe Sylvia que a produtora Jessica Chastain sugeriu o seu nome para escrever o drama da outra Tammy... Personagens não muito distantes uma da outra em termos de carisma popular..Para sermos mais precisos, foi por altura dos Golden Globes de 2011 que Josh Brolin abordou Chastain para o papel de Tammy Wynette - mais de 10 anos depois, Brolin saltou fora (já não tinha disponibilidade para ser George) e Chastain assumiu o comando, com uma atitude de não desistência do projeto. Porquê tantos anos à espera para se concretizar? Os típicos enredos de mudanças de estúdios e, segundo a atriz-produtora, “a música cara”. Tudo começa e acaba nas canções.