Foi com apenas dez dias de intervalo, em outubro de 1925, que se deu a fundação da Gazeta das Caldas e o início da Volta a Portugal a Cavalo. Os dois centenários são agora associados nas celebrações do jornal caldense, pois “foi exatamente um caldense, José Tanganho, o vencedor dessa exigente prova, tornando-se um herói popular, figura que alguns ainda recordam, mas muitos com o tempo esqueceram”, explica José Luís Mendes de Almeida, presidente da direção da cooperativa que é proprietária do Gazeta das Caldas. E o mais curioso é que por trás da organização do oficialmente chamado Circuito Hípico de Portugal esteve o Diário de Notícias, que promoveu a prova que passou por 70 vilas e cidades, quase 1500 quilómetros, cumpridos ao longo de 25 dias. Além da edição especial que saiu agora no dia 1, data exata do centenário, com uma mensagem do presidente Marcelo Rebelo de Sousa a realçar uma longevidade que é “sinal de cultura liberal e democrática numa comunidade”, a Gazeta das Caldas tem publicado ao longo do ano suplementos especiais dedicados a grandes figuras da história da cidade, da rainha D. Leonor, que no final do século XV ali mandou erguer um hospital para aproveitamento das águas termais, a José Tanganho, “o paisano que derrotou os militares, favoritos na volta”, sublinha José Luís Mendes da Silva. No caso de Tanganho, a homenagem do jornal passa pela reconstituição do percurso que fez montado no Favorito. Uma carrinha, conduzida por um bisneto do cavaleiro, Pedro Bernardo, foi apresentada no dia 3, e partirá na próxima sexta-feira do Jockey Club, e durante umas semanas encarnará uma espécie de embaixada ambulante das Caldas da Rainha, com cavacas e loiças para mostrar, percorrendo o país de lés a lés, até ao regresso a Lisboa, ao Campo Grande.Há muita gente envolvida nestas celebrações da Gazeta das Caldas e do feito de Tanganho, e o DN juntou cinco protagonistas para uma fotografia no Museu do Ciclismo das Caldas da Rainha, numa sala especial dedicada ao vencedor da Volta a Portugal a Cavalo: José Luís Mendes de Almeida, Carlos Querido, Teresa Perdigão, Mário Lino e Pedro Bernardo. Antes de Paulo Spranger os retratar juntos, numa pose que mostrasse Tanganho, houve tempo para uma conversa que mostra que celebrar uma efeméride pode ser algo inventivo.“Aproveitámos os cem anos da Gazeta das Caldas para celebrar alguns centenários ligados à história da cidade e da região. Estou a falar, por exemplo, do centenário do pão-de-ló de Alfeizerão, do centenário da banda das Gaeiras, do centenário do padre Felicidade Alves, e, claro, do centenário da vitória do Tanganho”, diz Carlos Querido, que foi quem teve a iniciativa de alertar o DN para algo que também tem muito que ver com a história do diário fundado em 1864 por Eduardo Coelho e que já vai nos 160 anos. O diretor do DN, Filipe Alves foi, aliás, um dos convidados a escrever na edição especial da agora também centenária Gazeta das Caldas..“Tanganho, que na verdade se chamava José Bernardo, é uma figura incrível porque é um homem do povo, de um ambiente rural, que concorre num concurso que é formatado para os militares, todos os 43 concorrentes menos três. Ele concorre e nem sequer tem um cavalo. Tem uma égua que anda atrelada a uma tipoia, e descobre que a égua tem uma assentadura, que é um problema numa pata, e diz, ‘esta não serve’. Portanto, concorre com um cavalo emprestado. O Favorito é emprestado. E depois há uma coisa muito curiosa. Na aldeia, e eu sou um homem da aldeia, conheço os mitos da aldeia, o que se diz, normalmente, quando se fala do Tanganho, é que ele ganhou a prova porque ele era amigo do cavalo, porque protegeu o cavalo. A lenda é mais bonita que a história, mas às vezes não resiste ao rigor histórico. Eu conheci antigos que diziam que, enquanto os outros iam para hotéis, ele dormia com o cavalo na estrebaria. Eu não sei se é verdade ou se não, mas que ele muitas vezes ia apeado para poupar o Favorito, isso sim. Na última etapa, antes da chegada a Lisboa, o jornalista do DN pergunta-lhe, ‘então, você vem a pé’, e ele olha carinhosamente para o animal e diz, ‘coitado, este meu amigo está mais cansado que eu’. E, portanto, ele vê-se ultrapassado naquela fase final, à chegada a Lisboa, em que não vai competir para além das forças da sua montada, e acaba por perder, no sentido que não chega à meta em primeiro lugar, mas isso para ele não é o mais importante. E depois acaba por ganhar porque o capitão Rogério Tavares, que o ultrapassa, mata o cavalo de esforço. Ou seja, o Favorito ia, de facto, muito cansado, muito fatigado, mas no outro dia estava em condições de fazer o circuito que fez, e ganhou a última prova”..Da celebração do centenário da vitória de Tanganho vão surgindo algumas novidades, acrescenta Carlos Querido, e uma delas tem que ver com este cuidado de Tanganho com o Favorito: “em reuniões com responsáveis da Federação Equestre Portuguesa e da Federação Equestre Internacional, foi-nos dito que a figura do cavaleiro Tanganho era o paradigma do espírito da modalidade hípica de Endurance - na qual se considera particularmente relevante a cumplicidade entre cavaleiro e cavalo e o bem-estar do animal. Foi proposta a criação de um ‘Troféu Tanganho’ e de um raid na referida modalidade, entre Caldas, a cidade onde Tanganho nasceu, e Coruche, a cidade onde está sepultado. Dessas reuniões ficou-nos a convicção de que a celebração deste centenário redescobre o cavaleiro Tanganho, retirando-o do esquecimento, e projetando a sua figura no futuro como uma referência numa modalidade hípica em crescente desenvolvimento”.Outro projeto relacionado com a Volta a Portugal a Cavalo está a ser desenvolvido pela antropológa Teresa Perdigão, que através das reportagens do DN , e daquilo que os jornais locais também iam publicando, vai tentar perceber melhor o que era o país em 1925. O percurso, os tais 1500 quilómetros, praticamente segue o contorno de Portugal, descendo de Lisboa para o Algarve ao longo do litoral alentejano, depois subindo de Faro para Mértola e Beja, seguindo para as Beiras, com Castelo Branco e Guarda, depois Trás-os-Montes, o Minho, descendo para Porto, Aveiro e Coimbra, também as Caldas da Rainha, até Lisboa de novo. “Foram 70 vilas e cidades em menos de um mês. E um aspecto interessante é perceber o que era em cada uma delas a elite, que está bem explícita porque eram formadas comissões organizativas. Eram os presidentes das câmaras, eram advogados, eram médicos. Era, às vezes, o correspondente do Diário de Notícias. Era também a família que era bem vista na localidade. Estamos a falar de um país rural de há 100 anos. No fundo, os notáveis da terra, incluindo os detentores das quintas, das casas grandes”. .Do que já começou a estudar, Teresa Perdigão destaca as curiosas prendas oferecidas aos cavaleiros:“Há um pouco de tudo. Vinho, por exemplo. Na Anadia é oferecido espumante. Mas nem tudo são produtos regionais. Há uma carteira de pele vinda da Rússia em Alcanena, que era um local de tratamento de peles. Mas ainda estou a fazer o levantamento desses prémios, muito variados, dados ao vencedor de cada etapa da volta a Portugal”.O prémio final, esse, foi de 20 contos, oferecido pelo DN. E uma taça. Mário Lino, que é o autor de um recente livro de homenagem a Tanganho, é o último a juntar-se à conversa, mas também aquele que há mais anos estuda esta Volta a Portugal a Cavalo, que não vai ter seguimento em 1926, porque a 28 de maio dá-se o golpe militar que porá fim à Primeira República. “Mas em 1927 realiza-se a primeira Volta a Portugal em Bicicleta, que se inspira muito no circuito de 1925, e que é iniciativa igualmente do Diário de Notícias”. E Mário Lino diz que até sabe como do cavalo se passou à bicicleta. Está convicto de que foi em parte por sugestão de um antigo ciclista, que era na época motorista pessoal do administrador Caetano Beirão da Veiga: “Ernesto Zenóglio tinha sido ciclista ainda antes da fundação da União Velocipédica Portuguesa. E o doutor Beirão da Veiga, sabendo da experiência dele, depois como fotógrafo amador também, como motociclista também, e depois automobilista, convida o Ernesto Zenóglio para conduzir o carro durante a volta a Portugal a cavalo. E em vinte e tal dias, vinte e tal almoços e vinte e tal jantares, e muitos quilómetros os dois no carro descapotável, supõe-se que o Ernesto Zenóglio terá sido uma das pessoas que influenciou o doutor Beirão da Veiga, numa próxima ocasião, a organizar-se uma volta a Portugal em bicicleta”. E assim aconteceu. Mas essa é outra história, para contar aqui no DN em 2027, no centenário..Centenário da Volta a Portugal em Cavalo: José Tanganho, o vencedor improvável