Como falar de Foi Só um Acidente? Talvez começando por dizer que estamos perante um dos maiores acontecimentos cinematográficos de 2025. As palavras de Martin Scorsese, simples e concisas, podem ajudar-nos a caracterizar a experiência da sua descoberta: “Nunca vi nada assim.” Que é como quem diz: no cinema, continua a ser possível encontrar objetos que nos convocam para lá da mera confirmação do que já sabemos ou julgamos saber. Como? Levando-nos a rever as fronteiras do humano, reconhecendo a sua instabilidade, inventariando os seus mistérios.O motor dramático do filme não poderia ser mais “acidental”. Tudo se desencadeia quando um homem, com a mulher e a filha, se desloca de carro, chocando com um cão; na oficina onde tenta avaliar os danos provocados no seu veículo, é visto por outro homem que, estranhamente, se esconde. Porquê? Porque julga reconhecer no condutor aquele que o torturou na prisão... A partir desse momento, entramos numa vertigem rara, tanto pelos detalhes como pelas suas implicações: a impressão intensamente realista de todos os corpos e lugares cresce de modo tanto mais perturbante quanto o realismo de Panahi nada tem que ver com a “transparência” maniqueísta, banalmente moralista, do corrente naturalismo televisivo..Nesta perspetiva, Panahi é um cineasta que nos ajuda a ver - e, nessa medida, respeitar - a densidade do quotidiano, muito para lá de qualquer facilidade determinista. O crescendo de acontecimentos narrados em Foi Só um Acidente faz-nos mergulhar num universo de tal modo realista que as suas peripécias vão instalando uma inquietação com algo de assombramento. O paralelismo mais óbvio estará, talvez, em Taxi (2015), um dos filmes em que Panahi surge como ator de uma realidade em que, de alguma maneira, o impulso documental e a sofisticação da encenação se contaminam e completam.. Tendo em conta que Jafar Panahi já esteve preso pelas autoridades iranianas, poderíamos ser tentados a descrever Foi Só um Acidente como uma evocação pessoal e, no limite, autobiográfica. Mas ele é o primeiro a recusar qualquer estatuto de protagonista, ainda menos “heróico”, no interior dos retratos que a sua obra vai acumulando. Acima de tudo, Panahi sabe criar as condições narrativas para que, através de uma fascinante pluralidade de personagens, o seu povo surja como autor da sua própria biografia. Daí que cada um dos seus filmes possua a dimensão de um contundente conto moral - nenhum acidente é secundário, muito menos indiferente..Jafar Panahi: “Nos meus filmes, o importante é o fator humano”