Apresentação do Babell: Pedro Duarte, presidente da Câmara do Porto, com Jorge Sobrado, vereador da Cultura (esquerda) e Rui Couceiro, comissário do festival
Apresentação do Babell: Pedro Duarte, presidente da Câmara do Porto, com Jorge Sobrado, vereador da Cultura (esquerda) e Rui Couceiro, comissário do festivalA raposa Branca/Babell

Festival Babell: a cidade do Porto como palco, o livro como passe

Não é apenas mais um festival de autores e conversas. Babell,promovido pela Fundação Livraria Lello com apoio da Câmara do Porto, leva a literatura ao espaço público. Um evento literário desenhado para ocupar ruas e praças da cidade — e testar uma ideia original: transformar a compra de um livro no passe de acesso às sessões sentadas. Decorrerá de 24 a 30 de junho. Salman Rushdie, Olga Tokarczuk e Margaret Atwood são presenças já confirmadas.
Publicado a

O nome é, em si mesmo, uma declaração de intenções. Babel como metáfora bíblica da incomunicabilidade e da fragmentação é, no festival que agora se anuncia, uma referência deliberadamente invertida - em tempo de conflito, ódio e ruído, a diversidade linguística não é castigo nem divisão, mas riqueza cultural maior. A segunda camada do nome vem de Jorge Luís Borges e da sua Biblioteca de Babel - a biblioteca infinita, onde cabem todos os livros do mundo — e todas as suas variações. O nome funciona, assim, como programa: diversidade, abundância, liberdade e uma ideia de “cidade onde o livro impere”, síntese do escritor Rui Couceiro, comissário do evento, cuja  apresentação aconteceu a 17 de dezembro, na Livraria Lello — um lugar onde dificilmente se consegue falar de livros sem convocar a própria ideia de literatura. Salman Rushdie, Olga Tokarczuk e Margaret Atwood são presenças já confirmadas. 

O conceito de uma “cidade-livro” ajuda a entender o que o Babell pretende ser. Não se trata de um ciclo de conversas em auditório nem de um evento fechado num perímetro cultural habitual. Couceiro descreveu-o como um projeto pensado “para o público, para a cidade do Porto”, desenhado para ocupar ruas e praças e para ser vivido pelos seus habitantes. A ambição, assumida sem rodeios, é fazer de Babell “o maior e o melhor evento literário em Portugal” — não por competição simbólica, mas porque, nas suas palavras, “o Porto merece o melhor” e porque o objetivo é fazer chegar o livro e a leitura ao maior número possível de pessoas. 

É nesse contexto que o festival testa uma ideia original: transformar a compra de um livro numa livraria da cidade no passe de acesso às sessões sentadas. Não é assim mais um festival de autores e conversas, mas uma tentativa deliberada de conjugar programação cultural, hábitos de leitura e vida urbana. 

A Raposa Branca/Babell

Independência, palavra e política cultural 

O Babell nasce de uma iniciativa independente da Fundação Livraria Lello, que desafiou Rui Couceiro a comissariar o projeto, mas articula-se desde o início com o poder público. Jorge Sobrado, vereador da Cultura, presente na sessão, sublinhou essa independência como uma virtude política. O município, afirmou, valoriza projetos concebidos fora da tutela direta do poder público, respeitando a livre iniciativa, ainda que participando através de apoio, colaboração ou coprodução. O Porto, acrescentou, “não é agnóstico quando se fala de cultura: tem uma fé militante na palavra e nos livros”. 

Essa centralidade da palavra atravessa todo o projeto. Para Sobrado, o estatuto literário do Porto não pode ser separado da sua consciência política. A cidade é, historicamente, “um lugar da palavra” — de poetas, ficcionistas, dramaturgos, jornalistas, filósofos e oradores — mas também de bibliotecas, editoras, livrarias e alfarrabistas. Para o vereador, pensar o Porto sem livros seria uma impossibilidade ontológica. É nesse quadro que o Babell surge como resposta a "uma urgência contemporânea": a crise do pensamento, da linguagem e das capacidades de relação humana. A palavra, lembrou, é fundadora do humano e constitutiva da cidade. 

"A imagem contemporânea do Porto"  

Do lado municipal, a mensagem foi convergente: a independência do Babell não é um problema a gerir, mas uma característica a preservar. Pedro Duarte insistiu que este “não é um projeto da Câmara”, mas uma iniciativa que nasce da sociedade, cabendo ao setor público “facilitar, apoiar e ampliar” sem condicionar. 

O financiamento seguirá essa lógica: produção própria e externa, capitais da Fundação Livraria Lello, apoios de parceiros a anunciar e colaborações institucionais. Couceiro quis deixar claro: o retorno económico esperado é para o território — “não para nós mesmos”, porque a organização vai investir. A identidade visual, desenvolvida pelo Stúdio Eduardo Aires, acompanha essa intenção de inscrição urbana, alinhando-se com a “imagem contemporânea do Porto”. 

O modelo que distingue o Babell 

Se o nome explica a filosofia, o modelo explica a novidade. O que distingue o Babell de outros festivais literários é a forma de acesso às sessões e a tentativa explícita de ligar um evento à criação efetiva de leitores. Couceiro explicou a origem da ideia: há cerca de dez anos, ao investigar o impacto dos festivais literários nos hábitos de leitura, concluiu que os resultados eram pouco animadores. As pessoas assistiam, mas não compravam mais livros nem liam mais por isso. 

A solução passa por usar o livro como “moeda de troca”. No Babell, qualquer pessoa pode parar e assistir de pé a uma sessão numa praça. Para se sentar, terá de comprar um livro numa das quase setenta livrarias da cidade que estão a ser mapeadas, incluindo alfarrabistas.  A compra – um livro de um euro, por exemplo - dá direito a um código que permite reservar online um lugar numa sessão específica. “A organização não recebe qualquer comissão sobre essas vendas”, garante o comissário reforçando o objetivo - construir uma ponte direta entre programação e consumo cultural do livro. 

A cidade feita a pé 

O Babell quer ainda testar a ligação entre literatura e mobilidade. Estão em curso trabalhos com a STCP, o Metro do Porto e os Transportes Metropolitanos para associar à compra do livro um título de transporte válido durante a semana do festival. A escala é assumida: plateias para cerca de duas mil pessoas em praças do centro da cidade, o que implicará planos de mobilidade e condicionamentos de trânsito. 

A experiência foi desenhada como um percurso pedonal. As sessões não se sobrepõem e terão intervalos de trinta minutos: quinze para sair e entrar, quinze para deslocação. Os locais ficarão a menos de quinze minutos a pé uns dos outros, numa demonstração prática das “cidades dos 15 minutos”, conceito idealizado pelo académico Carlos Moreno. O desenho do festival é, aqui, parte do argumento: o Porto pode funcionar como cidade caminhável quando a programação é pensada para isso. 

O Babell decorrerá de 24 a 30 de junho no Porto. Porém, a abertura, dia de São João, acontecerá em Leça do Balio (Matosinhos), junto ao Mosteiro de Leça do Balio, sede da Fundação Livraria Lello, com a inauguração do Jardim do Pensamento. O jardim, com quatro hectares na margem do rio Leça, é um projeto conjunto de Siza Vieira — responsável por catorze esculturas — e Sidónio Pardal. A inauguração contará com uma conferência do operário-filósofo Byung-Chul Han sobre abrandar, desligar e reaproximar à natureza. 

A partir do dia seguinte, o festival instala-se no centro do Porto, em espaços ao ar livre a definir com a autarquia. A razão, explicou Couceiro, é simples: “o Porto é em primeiro lugar para os portuenses”. 

 O que vai acontecer 

A programação completa será anunciada mais tarde, mas as linhas de força firam tornadas públicas. Haverá programação para crianças e jovens, com curadoria da autora de literatura infantil Adélia Carvalho; exposições, entre elas uma experiência sensorial guiada pelo poeta invisual Luís Fernandes (João Habitualmente), concebida para ser ouvida e tateada num espaço em ruínas; uma grande exposição no Centro Português de Fotografia, com retratos de escritores presos, assinados por Daniel Mordzinski, uma evocação da prisão, naquele espaço, de Camilo Castelo Branco e ponto de partida para refletir e celebrar a liberdade de expressão. 

Estão previstas exposições da artista plástica Ana Vidigal, colóquios sobre educação e leitura em articulação com a Câmara, e as “Aulas de História do Porto” - da gastronomia à ciência, da medicina à literatura. E à poesia, que acontecerá também nas ruas. Haverá concertos e um jornal do evento dirigido pela escritora Patrícia Reis, adjunta para a programação e ainda responsável pela supervisão curatorial das exposições.

Cartaz internacional com alma local 

Couceiro avançou alguns nomes já confirmados. Além de Byung-Chul Han, foram anunciados Olga Tokarczuk (Nobel de 2018), Salman Rushdie e Margaret Atwood. Apesar da forte dimensão internacional, a distinção é clara: “a alma é de cá”. O cartaz será norteado por escritores e artistas portuenses e portugueses, “projetando a cidade para fora sem a descentrar”. 

No discurso final, o presidente da Câmara, Pedro Duarte, sintetizou a leitura política do projeto: o Babell pode ter “um impacto gigantesco” na vida dos espaços públicos e na criação e intensificação de públicos literários. Encaixa numa ideia de cidade onde “a cultura é pilar estruturante” — a base que dá sentido ao resto. Há, no Babell, disse, uma ousadia e uma ambição “muito tripeiras”: pensar alto "e pôr as mãos na massa", numa lógica de trabalho em rede, em que livreiros, alfarrabistas, agentes culturais e públicos podem, juntos, ganhar. 

Babell apresentou-se como uma tentativa de corrigir um problema conhecido: eventos que mobilizam atenção, mas não mudam práticas. O Porto, no relato de Rui Couceiro e na validação do executivo municipal, não é apenas cenário; é instrumento. E o nome — Babell, com dois “l” — funciona como lembrete final: diversidade e abundância não como ruído, mas como método. 

Apresentação do Babell: Pedro Duarte, presidente da Câmara do Porto, com Jorge Sobrado, vereador da Cultura (esquerda) e Rui Couceiro, comissário do festival
Graça Morais: “Devo aos grandes escritores portugueses o reconhecimento da minha obra”
Apresentação do Babell: Pedro Duarte, presidente da Câmara do Porto, com Jorge Sobrado, vereador da Cultura (esquerda) e Rui Couceiro, comissário do festival
'Três Dias sem Deus' ou o milésimo filme digitalizado ao abrigo do PRR
Diário de Notícias
www.dn.pt