O seu livro Today We Live, que foi apresentado na Noite da Literatura Europeia em Lisboa, foi o seu primeiro romance. É a história de uma criança judia na II Guerra Mundial, que um padre que a abrigara entrega a uns oficiais americanos que se revelam ser SS infiltrados. Este é um livro que mostra que o mundo não se divide entre o Bem absoluto e o Mal absoluto. Há zonas cinzentas?Sim, na verdade, não acredito que o bem absoluto e o mal absoluto existam. É uma distinção demasiado maniqueísta e demasiado binária que os homens inventaram para não terem de confrontar as suas áreas obscuras. Eu acredito nisso, e é o que costumo dizer quando vou falar com jovens às escolas: penso, séria e sinceramente, que existem áreas de sombra e luz em cada um de nós. É a proporção de sombra em relação à luz que varia. E varia consoante o momento da vida de cada um, consoante as circunstâncias, as guerras, as crises, etc. Portanto, sim, é verdade que se tivéssemos de retirar a primeira mensagem deste livro seria esta. É um romance que explora o que não é preto ou branco, o que não é binário.Porquê o título em inglês?Bem, isso é porque não encontrámos nada melhor em francês. É verdade que é surpreendente, porque em França, há dez anos, era um pouco complicado. Hoje, penso que seria um pouco menos. Mas acontece que, como o livro era inicialmente um guião, tinha esse título, o que, para um guião de um filme feito na Bélgica, país com três línguas, não era realmente um problema. Depois o meu editor disse-me que seria bom encontrar um título em francês. Procurámos bastante e tudo o que nos surgiu soou menos bem. Ele era um grande homem que amava muito a língua francesa, mas também sabia reconhecer que, quando um título é bom, talvez seja necessário mantê-lo. Dito isto, ainda me causou alguns pequenos problemas, porque em França havia pessoas que me perguntavam se o livro era em inglês. Não na Bélgica, mas em França, sim.Na Bélgica não houve problema?Não, porque na Bélgica temos três línguas nacionais, duas línguas germânicas. Portanto, não é um problema para nós, mas em França é complicado.Today we Live era originalmente um argumento que escreveu com o seu marido, Sylvestre Sbille. Mas estava a demorar muito tempo para se tornar num filme. Mas como surgiu esta ideia de o transformar em romance?Bem, não me lembro exatamente quem teve a ideia primeiro. É verdade que o meu parceiro e eu achámos que poderia tornar-se num romance. Acontece que fui eu que o escrevi, mas podia ter sido ele. Neste caso, ele incentivou-me a fazê-lo. Eu não me sentia minimamente à vontade, por causa da minha história familiar… E, além disso, não tinha a mínima confiança em mim própria. Sabia que era capaz de escrever, de produzir um argumento mais ou menos bom. Mas existe um fosso real entre um guião e a literatura. E, portanto, não tinha muita confiança. Mas o meu marido disse: “Vai em frente, o que é que tens a perder?. Se não sair o que queríamos, não temos de o enviar”. Foi, portanto, o que fiz. Mas acho que se não tivesse tido alguém em quem confiava a incentivar, nunca teria escrito o meu primeiro romance. Aludiu à sua história familiar. A sua e a do seu marido também porque vêm ambos de famílias com laços com a Resistência anti-nazi. É um passado que marca aquilo que é enquanto escritora?Acho que sim. Na medida em que já queríamos desenvolver este projeto bastante ambicioso em torno desta história de crianças escondidas. Foi importante o facto de as nossas duas famílias terem esta ligação, especialmente a do meu marido, porque a sua bisavó foi declarada Justa entre as Nações. Ela foi tão ativa no Exército Branco em Bruxelas que recebeu essa distinção. Apesar de ter desiludido um pouco toda a gente, pois, ao recebê-la, disse: “Eu não salvei estas pessoas porque eram judias, salvei-as porque elas precisavam de ajuda”. E não era isso que queriam ouvir na altura. O meu marido cresceu a ouvir as histórias da bisavó durante a guerra. E os meus avós maternos acolheram um rapazinho quando ele tinha dois anos. Ficou lá em casa durante dois anos até que os seus pais vieram buscá-lo. Tinham-se escondido noutro lugar, sobreviveram, e levaram o pequeno Jean-Pierre, cujo nome não era obviamente o verdadeiro. A minha mãe, que nasceu em 1936, no final da guerra, era muito nova, mas lembra-se muito bem deste menino que fazia parte da família. Para ela e para a irmã, ele era como um irmão. Portanto, foi um momento feliz, porque a criança reencontrou os pais, mas um bocadinho traumático porque, de repente, o irmãozinho delas já lá não estava. Contaram-me isto quando eu era muito nova, e é verdade que o meu marido e eu rapidamente percebemos que partilhávamos esta paixão pela história das crianças escondidas na Bélgica e dos judeus de outros lugares salvos da Shoah pelos combatentes da Resistência ou por outras pessoas. Os meus avós não eram resistentes, simplesmente tiveram este ato.Este livro é também uma forma de prestar homenagem a estas pessoas?Sim, certamente. Nós na Bélgica temos esta característica de não nos levarmos demasiado a sério,. Pode ser uma qualidade. Mas por vezes pensamos que se esta ou aquela pessoa tivesse vivido em França ou em Inglaterra, já lhe teriam feito uma estátua. É verdade, por exemplo, no caso de Andrée Geulen. Qualquer belga tem plena consciência disso. André Geulen tinha 20 anos, era uma jovem professora que no início da guerra, logo que viu as crianças a usar estrelas amarelas na sua turma, disse: “Não posso tolerar isto”. E lançou-se numa enorme rede de resistência que salvava crianças. Transportava-as em comboios, levava-as para lugares diferentes. Esta mulher arriscou a vida um número incalculável de vezes para salvar aquelas crianças. Morreu há pouco tempo, com mais de 90 anos. Andrée Geulen era uma pessoa extraordinária. E, lá está, noutro país acho que seria uma heroína nacional. Na Bélgica, não sabemos realmente quem foi Andrée Geulen. O mesmo acontece, por exemplo, com Youra Livchitz, que com outros dois jovens atacou um comboio nazi que levava judeus para Auschwitz e os libertou. O meu marido escreveu sobre ele o seu primeiro romance, chamado J’écris ton nom, que conta a história do ataque ao 20.º comboio. Estas são personalidades que não são suficientemente celebradas, suficientemente conhecidas. Today we Live foi o seu primeiro romance, mas os seguintes têm temas completamente diferentes…Sim, aconteceu... Quando comecei a escrever, não disse a mim mesma que iria para universos diferentes, espaços-tempos diferentes de cada vez. Acontece que é assim que salto de um livro para o outro. A transição de uma atmosfera para outra muito diferente motiva-me. O meu segundo livro passa-se num futuro próximo durante uma epidemia de ébola. O terceiro passa-se no século XVII em França e nos EUA, ou melhor, no que era território dos índios iroqueses, no norte do estado de Nova Iorque e no Canadá. O quarta passa-se na Inglaterra do século XVI. O quinto passa-se em Austin hoje. Portanto, sim, pode parecer fragmentado e desconexo. É verdade que hoje, pelo menos na literatura de língua francesa - os anglo-saxónicos são muito diferentes -, os escritores tendem a insistir nas suas temáticas. Não o faço, mas acredito que existem fios condutores que permeiam os meus livros e que nos encontramos de um livro para o outro, porque há temas que regressam com frequência. Mas é verdade que sou insaciavelmente curiosa e apaixonada por certas épocas e certos lugares, e ficaria muito infeliz se não investigasse esse lado sob o pretexto de que é muito distante, muito antigo, muito desconhecido. Creio que não deve haver limites para o âmbito dos temas de um romancista. Hoje temos esta ideia de que aquilo que não conhecemos pessoalmente, mais vale não tocar. Não creio que seja assim. Creio que a missão do romancista é precisamente falar sobre aquilo que não sabe.É também o seu lado de historiadora… Sim, sim, certamente. E não só. Está em [Marguerite] Yourcenar, mas creio que a frase é de Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”. E a partir do momento em que sabemos isso, vamos navegar em direção a horizontes diferentes. Colum McCann, por exemplo, é um autor que adoro, que escreveu Cartas a um Jovem Escritor que dá conselhos sobre escrita. É realmente um livro precioso, porque é alguém que falou sobre tudo, desde o conflito israelo-palestiniano até ao percurso de uma jovem roma na Europa de Leste. E Colum McCann diz: “Vai em direção ao que te é estranho, confronta o desconhecido e mergulha no outro lugar.” Mas obviamente tenho um enorme respeito por todos os autores que aprofundam um tema. Philip Roth é um dos meus autores favoritos, e é alguém que, lenta e gradualmente, domou todo um universo que, muitas vezes, é muito parecido, mas é ótimo.Como está a literatura belga? Ou melhor, podemos falar de literatura belga?Talvez eu não seja a melhor pessoa para responder a isso, porque vou ser muito honesta: eu não leio muita literatura belga. Pelo menos, não leio muito os meus contemporâneos. Também não leio muita literatura francesa, exceto autores mortos ou clássicos que ainda não conheço, porque tenho algumas lacunas, não li tudo. Leio muita literatura estrangeira e leio muita literatura antiga em francês. E também autores belgas. claro. Se me perguntarem qual o meu autor belga favorito, seria Jean Ray. O meu pai [o também escritor, poeta e pintor Jean-Claude Pirotte] apresentou-me esta literatura do século XIX, início do século XX, um pouco uma literatura do estranho. Malpertuis era realmente um dos meus romances favoritos quando era adolescente. Ninguém lê Jean Ray hoje em dia! Adoro Marcel Thiry, um poeta que se perdeu completamente, mas que mesmo assim foi reeditado há uns 5 anos. Mas, sinceramente, não conheço muito bem. Por outro lado, se me perguntar, acho mesmo que existe uma literatura belga. Acredito que existe uma identidade literária belga que, talvez, seja precisamente um patchwork de coisas que se assemelham a nós. Nós, belgas, temos uma história muito particular. Ficámos sob o controlo de uma enorme quantidade de potências. Construímos uma identidade que é um pouco feita de pedaços. E que, por ser muito fragmentada, acaba por formar algo reconhecível. Nós, belgas, reconhecemo-nos em muitas formas de arte. No teatro, nas artes visuais. Há algo de belga identificável mesmo se defini-lo é complicado. Continuo a achar que é feito de uma espécie de discrepância com a realidade. Pensamos no surrealismo, mas não é só isso. Há realmente uma atitude geral, mesmo na literatura, que é um pouco excêntrica, com uma boa dose de humor e de autodepreciação, o que é extremamente saudável, extremamente precioso. Nunca devemos perder isso, mesmo que eu ache que, por vezes, nos podíamos levar mais a sério em coisas importantes. Incomoda-a que as pessoas pensem muitas vezes que os grandes nomes da literatura belga - mencionou Marguerite Yourcenar, mas também Simenon, mais recentemente Amélie Nothomb - são franceses? Sim, é irritante. Incomoda-nos, obviamente. Ainda há pessoas que acham que Jacques Brel é francês! Mas acho que é um pouco proporcional ao talento. Acho irritante que digam que Simenon é francês. A Marguerite Yourcenar um pouco mais complicado. Mas quando se trata de Amélie Nothomb, de repente chateia-me menos. A Amélie Nothomb é uma pessoa extremamente simpática e que escreveu alguns romances muito bons no início. Mas acho que o sucesso, por vezes, pode fazer com que os escritores se percam um pouco.A Emmanuelle foi uma das convidadas da Noite da Literatura Europeia. O que pensa deste tipo de iniciativa? É muito importante que a cultura esteja presente entre as pessoas. E eventos que juntem autores numa cidade, numa feira, defendo isso fortemente. Na Europa, incentivamos este tipo de encontros. E toda a gente se queixa, as editoras queixam-se que vendem menos. Mas a literatura e o livro, que se mantém em formato papel, continua a ser importante na Europa. Isso é uma coisa muito boa. Hoje, vemos países na Europa onde as forças de extrema-direita estão a ocupar cada vez mais espaço e que, em termos de cultura, estão a cortar nos orçamentos. Não sei se conseguiremos continuar a fazer o que fazemos durante muito tempo, mas enquanto pudermos, precisamos de o fazer, porque a cultura está muito ameaçada. Nós, autores, ouvimos constantemente que estamos a perder gerações. Qual a idade do nosso público? Temos de encontrar formas de reconquistar os jovens. Projetos para o futuro?Lancei o meu primeiro romance juvenil em setembro do ano passado. Nunca pensei escrever para jovens. Foi uma novidade, mas espero continuar a escrever para jovens. E tenho um romance que será publicado pela Cherche Midi em janeiro de 2026, que se passa na Escócia na atualidade. É a história de um arqueólogo que descobre um túmulo viking feminino e cuja vida fica virada de pernas para o ar no momento em que faz essa descoberta. .Relato de quando a Terra era maior