Neste conto de terror que encantou a Quinzena dos Realizadores todos os homens são iguais. Todos têm o mesmo rosto, seja o vigário ou o dono do pub. A Inglaterra rural pode ser um puzzle de aparências cruzadas. A bem dizer, estamos perante a reformulação dos contextos do filme de terror britânico. É por aqui que se coze o jogo de Alex Garland em Men, fábula de medo sobre o universo do imaginário do "countryside" inglês em versão de reverberação com as novas formas de refletir a masculinidade tóxica e todos os inerentes efeitos da questão da vitimização..Numa altura em que as agressões sexuais parecem não abrandar, um filme como este pode obrigar a uma reflexão séria sobre uma história da tradição da culpa masculina. The Wicker Man/O Sacrifício, de Robin Hardy, também em 1973 já abordava nos mesmos moldes questões de poder entre géneros. É quase como se fosse uma tradição britânica e este Men é sobretudo um comentário sob forma de metáfora sobre um mal estar estritamente british..Tudo começa quando Harper sai de Londres para uns dias de pausa numa casa de turismo de província. Está ainda abalada pela morte do companheiro abusador e por um historial de violência doméstica. Quer agora encontrar-se e acredita que é no campo, no conforto de um chalé que pode recuperar a tranquilidade..Puro engano, o chalé em questão é para lá de sinistro, tal como o seu dono, senhor de uma simpatia enjoativa. A partir desse momento, vai percebendo que há algo nesse local que não bate certo, sobretudo quando é abordada por um agressor nu. Aos poucos, aventura-se na vila e é confrontada por uma pequena sociedade onde não existem mulheres..O polícia local não acredita muito na sua descrição e o vigário não podia ser mais paternalista. Nem tão pouco a única criança que encontra parece simpatizar com ela. São encontros que a levam a voltar para o chalé e chamar uma amiga de Londres..O medo apodera-se dela, sobretudo depois de ser vítima da incompreensão, misoginia e crueldade de todas aquelas figuras. Mas o pesadelo está só a começar... A sucessão de encontros no jardim defronte do chalé toma proporções sobrenaturais..Todos esses homens, mais ou menos monstruosos, têm a mesma fisionomia. São todos variações do mesmo mal. Harper não percebe essas parecenças e há um twist no final que explica, via body-horror, tudo isso, sendo nesse último terço que o realizador britânico assume o exercício de género, fazendo uma tese sobre o corpo masculino e o mal, coisa no limite da lógica cronenberguiana mas muitíssimo mais extrema e "gore"..Men é um pesadelo excêntrico e esquisitíssimo sobre rastilhos do medo, mas também um workshop sobre os limites de um humor britânico desalinhado e em corrosão com uma noção dos valores sagrados da sociedade inglesa. Ao mesmo tempo, serve de apuramento de um estilo que foi sendo desenvolvido desde Ex Machina, o filme de estreia deste argumentista. Um apuramento que desenvolve novíssimas noções de integração do som num sistema de criação de medo, engendrando-se sequências de horror que prefiguram um gótico experimental..De alguma forma, depois de Aniquilação, é Garland a não fazer concessões e a regressar a uma certa vertigem áspera que já tinha proposto num guião seu filmado brilhantemente por Danny Boyle, 28 Dias Depois, em 2002. São essas nuances de criação de ambientes e de delírios de perturbação mental que dão um verdadeiro carácter de perigo ao filme..Men não é pois o filme de terror certinho com um discurso inteligente sobre a masculinidade tóxica, é sobretudo uma aventura de cinema do lado da demência. Torna-se então um objeto que pede a quem o vê um salto para um território de trevas, embora seja estimulante que essas trevas venham de algo bem real nesta sociedade e que parece, muitas vezes, não estar do lado das vítimas..Para que haja credibilidade neste jogo de enganos era preciso um ator sobredotado para ser o homem multiplicado. A escolha recaiu em Rory Kinnear, que muitos conhecem da série Years and Years e do seu Tanner dos últimos 007, ator que deixava pairar uma aura de tranquilidade e confiança. Ou seja, vê-lo diabólico, mau e monstruoso é um trunfo, choca mais! Kinnear esmiúça os clichés do inglês rural e fá-lo com um prazer doentio. O resultado é logo meio filme, trata-se de uma interpretação superlativa, daquelas que marca uma carreira. O seu rosto pode ser matéria para pesadelos ferozes..Depois, há também uma Jessie Buckley, recentemente nomeada ao Óscar em A Filha Perdida, a provar que é um dos maiores talentos da representação britânica. O seu medo é o nosso e no seu olhar há um pânico que parece sempre real..No novo cinema britânico é bom perceber que ainda há lugar para vozes sem medo de trazer perigo para a criação artística. Alex Garland está livre e, pelas escolhas, é um cineasta indomável. Segue-se Civil War, já em fase de montagem, projeto que junta Wagner Moura e Kirsten Dunst..dnot@dn.pt