Há vários instrumentos musicais à margem da coleção que foram colocados estrategicamente para que os visitantes os experimentem. E o primeiro é um gongo, que antecipa que aquele percurso vai começar com um estrondo. O novo espaço do Museu Nacional da Música (MNM) - agora instalado no Palácio Nacional de Mafra depois de ter estado três décadas provisoriamente alojado na estação de metropolitano do Alto dos Moinhos - traz ainda várias advertências, e pelo menos uma delas está relacionada com a disposição dos instrumentos nas vitrinas, que promete desafiar os padrões seguidos por museus congéneres: “Terá um efeito de inquietação e de questionamento”. As palavras são do diretor do museu, Edward Ayres de Abreu, que assume esta função desde setembro de 2022. Antes da reabertura das portas do MNM, no próximo dia 22 de novembro, o DN percorreu os corredores feitos de histórias e descobriu como é que o piano doado à corte portuguesa pelo compositor húngaro Franz Liszt está ligado ao antigo rapper e escritor português de origem guineense Allen Halloween.Com a certeza de que o espaço em Lisboa, no Alto dos Moinhos, nunca foi definitivo, Edward Ayres de Abreu - com um currículo que o apresenta como musicólogo, investigador e compositor, entre outras facetas - conta ao DN que esta “coleção já passou pelo Palácio Pimenta, já tinha estado em Mafra, já passou pela Biblioteca Nacional”, e foi assim que deambulou entre “vários projetos, consoante o Governo que estivesse ao leme”.Como justificação para agora o MNM ter encontrado uma casa que dignifica a coleção e até permite conferir simbolismo à disposição dos instrumentos, o diretor do museu aponta um “milagre”, tendo em conta o “contexto em que os museus, em geral, se encontram em Portugal, e a história particular do Museu da Música, que é muito conturbada”..No entanto, esta mudança de instalações, que no total custou sete milhões de euros, também tem uma dimensão mais terrena, que assenta nos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Porém, foi o esforço do Município de Mafra que fez com que o MNM ali se instalasse.“É um município que está realmente apostado em transformar Mafra numa vila da música, com a vinda também do Arquivo Nacional do Som, de um polo de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa, para além dos festivais que já existem”, antecipa o diretor do museu, que descreve todo aquele contexto como “um ecossistema superinteressante de entidades que, dialogando, vão criar um espaço de desenvolvimento musical”.Apesar do dinheiro envolvido na transição da coleção de Lisboa para Mafra, Edward Ayres de Abreu explica também que, “deste investimento todo, apenas um milhão tem a ver diretamente com as questões de museografia, da instalação das vitrinas, dos conteúdos multimédia. Portanto, tudo o resto é obra de infraestrutura para poder tornar vivo este espaço.”.Para além da coleção e das histórias que agora habitam o local, o próprio edifício é feito de história, e é por isso que o diretor do MNM propõe que se olhe “para tudo isto numa perspetiva maior e mais alargada: estamos perante um edifício classificado como património mundial [pela UNESCO], recentemente [em 2019], e, ao mesmo tempo, em larga medida, abandonado.”A área ocupada agora pelo museu estava devoluta, mas, segundo Edward Ayres de Abreu, viveram ali mais de 3500 homens durante a Guerra Colonial, ainda que nas últimas décadas já não tivesse uso. “Há uma parte do edifício que ainda tem uma escola das armas, que é uma unidade com a qual colaboramos muito proximamente. Vamos ter dois instrumentos deles na nossa exposição”, adianta o diretor do MNM, antes de mergulhar na coleção que agora o público vai poder visitar.O poder, o ritual e o clavineteDepois de uma vitrina incrivelmente alta, como todas as outras, com cerca de três metros, plena de flautas de várias épocas, violas da gamba, cravos e outros instrumentos, há uma sala que dá as boas-vindas aos visitantes e que promete uma experiência sonora imersiva. À volta, estão dispostas várias colunas, que, entre todos os sons que a criatividade e o engenho permitirem reproduzir, poderão passar músicas com cada uma das faixas (cada um dos instrumentos) a saírem individualmente pela sua coluna, em vez de projetados através de uma mistura estéreo, como a maior parte dos sistemas permite.Já no enorme corredor que alberga as restantes vitrinas, começa a “inquietação” dos visitantes, que encontram os instrumentos dispostos numa configuração que, à partida, não tem um sentido óbvio. Mas tem, garante o diretor do MNM. Para o explicar, Edward Ayres de Abreu refere que uma das salas dá pelo nome de “expressões de poder, porque procura mostrar que a música pode ser um instrumento de poder. E isto às vezes não é muito presente. A própria orquestra, que está aqui evocada, é um instrumento de poder. Em vários sentidos.”Em cada sala está uma vitrina gigante e um texto que a explica. Nesta, em concreto, que evoca o poder, há uma representação de cada um dos naipes de uma orquestra, até porque, continua o musicólogo, a orquestra “é uma estrutura hierárquica extremamente organizada, muito bem definida”, mas “também é um instrumento privilegiado, coletivo de representação de um estado”. Um pouco mais à frente, está um piano, cujas cores, dimensão e detalhes transparecem uma origem primordial. Uma pista para a explicação do instrumento é o nome da secção em que está inserido: Patrocinar.“Temos aqui peças relacionadas com o patronato régio”, revela Edward Ayres de Abreu, aludindo a nomes de compositores como Vianna da Motta e Óscar da Silva, cujas “carreiras foram impulsionadas também por patronato régio. Patrocinar estes jovens artistas era uma forma de afirmação do Estado”, explica.Mas a atenção continua voltada para aquele piano misterioso. “É do Liszt”, diz finalmente o diretor do museu. O piano foi trazido para Lisboa aquando da digressão ibérica de Franz Liszt, entre 1944 e 1945. “Depois, ofereceu-o à corte Portuguesa. É um testemunho também da relação dos músicos com o poder”, argumenta.Noutra sala, intitulada “expressões do transcendente”, o diretor do museu explica que, aqui, a música surge como uma expressão comunitária, motivo pelo qual estão expostos “instrumentos portugueses, europeus, asiáticos e africanos” de diferentes épocas, que, por alguma razão, “foram testemunhos eloquentes de uma qualquer ligação com alguma prática com uma certa ideia de transcendente, seja um transcendente religioso ou não”.Numa das prateleiras desta vitrina está uma estrutura com vários sinos pendurados. É, na totalidade, um instrumento com pouco mais de 30 centímetros de altura. Está exposto num núcleo daquela sala intitulado Encantar.Aquele “jogo de sinos”, como é descrito, surge integrado numa secção de instrumentos “cuja sonoridade está ligada, por razões acústicas, psicológicas, culturais, a uma qualquer ideia de ritual”, diz Edward Ayres de Abreu. E está ali porque “o sino, desde tempos imemoriais, é um instrumento que marca a paisagem por razões acústicas, porque se ouve muito longe”, conclui o musicólogo. À volta, está uma ocarina, um violoncelo, uma tiorba, um adufe, um alaúde e tantos outros instrumentos que não são da mesma família. A ligação é o ritual.Por trás desta secção, há um outro segredo, para o qual o diretor do museu chama a atenção. Por cima de dois clavicórdios - instrumentos com teclados muito semelhantes aos dos pianos contemporâneos, ainda que com menos oitavas -, que eram muito utilizados “para a prática do ensino em contexto conventual”, está um instrumento eletrónico, vermelho, aparentemente feito de plástico. É um clavinete, diz o diretor do museu. “Basicamente, foi inventado por alguém que era apaixonado pela música de Bach, e para muitas pessoas Bach é Deus. No fundo, o que ele fez foi inspirar-se no clavicórdio antigo para criar um eletrofone, que é o clavinete, com uma sonoridade muito peculiar.”.Este instrumento, relativamente moderno, comparado com os outros, está no museu há 12 anos e, de acordo com Edward Ayres de Abreu, cumpre um objetivo nesta exposição: mostra a proximidade de diversas épocas, até porque “a exposição não é cronológica nem é geograficamente localizada, apesar de ser possível adivinhar uma certa cronologia, mas sempre contrariada por alguns apontamentos que procuram provocar a curiosidade do visitante.”A contemporaneidade, porque o RAP existeDurante a conversa em torno do piano de Liszt, o DN encontrou providencialmente o antigo rapper Allen Halloween, que tinha ido ao museu deixar a sua marca. O também escritor anunciara o fim da sua carreira musical em 2019, justificando nas redes sociais que queria dedicar-se à sua religião “a 100%”, porque não consegue “fazer nada pela metade”.Porém, vai ficar representado no MNM através de um autorretrato que fez com uma técnica que implicou uma vela e uma tela queimada, e através do empréstimo de um instrumento que integrará a exposição. Ao DN, lançou o desafio: “Querem ver a minha ‘guitarra’?”De dentro de um saco, Allen Halloween tirou um controlador de efeitos da marca AKAI - que morfologicamente não podia estar mais distante duma guitarra -, modelo MPD226, que vai estar exposto na última vitrina da visita, junto a várias guitarras elétricas, uma violeta veneziana dos anos 40 do século XX, que pertenceu a um compositor iraquiano, e a um monocórdio de Poussot, que parece uma hibridização entre um violino e um piano. Edward Ayres de Abreu descreve este último instrumento como algo que é tocado “com um arco, como se fosse um arco de violino, e depois há um teclado para alterar as notas, como se fosse um violino facilitado”.Em relação à sala, com uma única vitrina, com estes instrumentos recentes, o diretor do museu explica que “aponta para um mundo cada vez mais global”, porque, para além dos instrumentos referidos, inclui um saltério feito no Rio de Janeiro e um rádio transoceânico.Mas a visita só culmina com música ao vivo. Na última sala está um piano ao lado de um cravo, ainda cobertos. Vão estar disponíveis para serem tocados, mas têm história, como tudo o resto. Trata-se de “um piano que pertenceu ao compositor Freitas Branco” e um cravo “que terá sido uma encomenda do Rei Luís XVI para a sua corte”, frisa Edward Ayres de Abreu, antes de alertar para um terceiro instrumento que está naquela sala, à disposição do público.Parece uma panela virada ao contrário da qual saem tentáculos. “Chama-se uana. É um instrumento de Vítor Gama”, revela o diretor do MNM, sublinhando que este “é um dos instrumentos que estarão à disposição dos visitantes para serem tocados, e fica na sala Invenção do Futuro que também será usada para pequenos concertos.”No final, o diretor do museu desvela ainda mais uma ideia da programação: “Vai ser um museu vivo. Sonoro. Tão sonoro que um sábado e um domingo por mês vai ser um museu silencioso, porque há público que prefere visitar espaços silenciosos.” Nesses dias, o salão imersivo estará em silêncio e com estes instrumentos cobertos, para além das luzes estarem “um bocadinho mais baixas, que é justamente para convidar o público a uma visita mais silenciosa”, conclui o diretor O copo, o instrumento mais valioso e a morteQuestionado sobre qual é o instrumento mais valioso da coleção, Edward Ayres de Abreu divide a resposta em várias vertentes. “Em termos comerciais, nenhum dos instrumentos em exposição tem valor, porque nenhum está à venda”, esclarece o diretor do museu, mas não sem antes levantar o véu do tesouro que estará ali para ser apreciado pelos visitantes.“Qualquer pessoa que faça uma pesquisa online por preços do Stradivarius perceberá que são instrumentos muito dispendiosos quando se encontram à venda. O nosso [violino construído pelo luthier italiano Antonio Giacomo Stradivari] é muito especial também porque pertenceu ao rei D. Luís”, esclarece Edward Ayres de Abreu, vincando, porém, a sua tese inicial de que os instrumentos valem mais do que o que custam, até porque há outros instrumentos na coleção que “são extraordinariamente mais importantes”.Para ilustrar esta ideia, o diretor do museu alude aos “cravos Antunes, que estão classificados como tesouros nacionais”, porque “são instrumentos raríssimos e são as únicas janelas de oportunidade que temos para compreender a sonoridade e a tecnologia de instrumentos de teclas feitos em Portugal no século XVIII”. Mas a resposta de Edward Ayres de Abreu ao valor dos instrumentos tem uma terceira dimensão, que passa pela própria exposição.“Procuramos problematizar o conceito de música, mas também com isso discutir essas questões hierárquicas que se costumam estabelecer de importância entre uns instrumentos e outros”, desvenda o musicólogo, enquanto esclarece que é por esse motivo que vai ser possível aos visitantes da exposição encontrarem “um Stradivarius ao lado de uma guitarra portuguesa do início do século XX”, para além de haver, noutras vitrinas, “instrumentos que se calhar numa feira custariam cinco euros ao lado de outros que valem milhares”.De acordo com o diretor, o objetivo é “explicar mais a música do que o instrumento musical”, até porque é possível fazer música “até com um copo de cristal. E temos um copo em exposição.”Mais ou menos a meio da exposição, numa vitrina que tem vários instrumentos utilizados em contexto militar, reside um segredo que só a imaginação pode ouvir. Por baixo de arefones retorcidos que parecem variações de clarins, está uma forma de xilofone, com mais de um metro de comprimento, que Edward Ayres de Abreu explicou como sendo uma madimba, da região onde estão as Quedas de Calandula, em Angola. A pergunta impõe-se: é um instrumento de guerra?A resposta volta a não ser evidente, porque, como afirma o diretor, ninguém está à espera que os visitantes saiam da exposição a conhecer profundamente toda a coleção. Em relação à madimba, o diretor do MNM explica que, “na Europa, durante muito tempo, até aos dias de hoje, o som do xilofone e de outros instrumentos timbricamente similares está associado à ideia de morte.”O início deste exercício mental começa com uma gravura renascentista do pintor Hans Holbein, onde um esqueleto, que representa a morte, toca xilofone. Mas a ideia passa também pela Danse Macabre, do compositor francês Camille Saint-Saëns, que “tem uma presença muito forte do xilofone numa tentativa de evocar o som que o esqueleto estaria a tocar naquela gravura”. Como se não bastasse, ainda há uns desenhos animados do Walt Disney em que surge um “esqueleto a tocar em si próprio, e o que se ouve é um xilofone”, lembra Edward Ayres de Abreu.A madimba foi adquirida em 1973 por um português que estava em Angola, e que a trouxe para Portugal. Portanto, é também um passado colonial que fica aqui representado, ao lado da morte..Museu Nacional da Música reabre na sua morada definitiva, em Mafra, no dia 22 de novembro.Câmara de Mafra vai liderar a empreitada de instalação do Museu da Música