Do implante de Biden à "Obama feminina"

O novo presidente dos EUA quis ficar mais novo com um implante capilar. Kamala Harris fez-lhe um "golpe baixo" há um ano. Revelações nas biografias de Biden e Harris e de como se chega ao poder esquecendo as rivalidades do passado. E a reedição de contos de Teolinda Gersão.

Chegaram a Portugal a tempo do início do novo mandato do 46.º presidente dos Estados Unidos as biografias dos dois responsáveis pela época pós-Trump: a de Joe Biden e a de Kamala Harris. Esta última jamais existiria em língua portuguesa se Kamala Harris não fosse a estrela que faz brilhar Joe Biden, pois nenhum editor se lembraria de publicar uma biografia de Mike Pence, ou mesmo de Biden quando foi vice de Barack Obama. E basta ver que a do presidente tem 129 páginas enquanto a da vice-presidente adianta-se até às 295.

A grande pergunta num tempo em que os leitores portugueses passaram a ter à disposição uma razoável estante de biografias traduzidas, situação que há bem poucos anos era bastante diferente, é: o que revelam estes livros sobre as vidas e os percursos de Biden e de Kamala? A resposta vem a vários níveis, afinal a internet democratizou muita da informação que até há bem pouco tempo não estaria acessível e é preciso que uma biografia tenha suficiente sumo para fascinar o leitor internacional.

Por essa razão o autor de Joe Biden - Do Homem ao Presidente, o premiado jornalista da The New Yorker Evan Osnos utiliza todos os artifícios da profissão para abrir o livro e sugar a atenção do leitor: "Um homem de 45 anos - branco, pai de três filhos - despertou no chão do quarto de hotel. Estivera inconsciente durante cinco horas. Mal conseguia mover as pernas. Não sabia como chegara ali." Imagina-se que o "homem" será Joe Biden, mas é preciso ler a página e passar para a segunda para se o confirmar e ouvir o vaticínio: "Mais de trinta anos depois de Joe Biden quase ter morrido numa cama de hospital, este episódio perde-se entre os marcos oficiais da sua biografia política."

Começa então o capítulo 1 e o título pretende aumentar o stress da leitura: Annus horribilis. A partir daí e por uma centena de páginas desfilam os principais acontecimentos da vida daquele que veio mesmo a tornar-se presidente dos Estados Unidos sem que ninguém acreditasse ser possível. Muitas das razões para os eleitores se irmanarem na sua candidatura passam pelos infortúnios da sua vida. Claro que a pandemia, a crise económica e o comportamento do ex-presidente colaboraram para que o "homem da cabeleira branca" tivesse uma votação maciça.

A avançada idade do candidato é peça fundamental nesta biografia, daí que o autor revele que "o couro cabeludo foi reflorestado", que vai ao ginásio com frequência e apresentou vários atestados de boa saúde durante a campanha. Refere que as redes sociais não são o seu forte - Trump tinha 114 milhões de seguidores enquanto Biden tem dez milhões -, acrescenta que o principal objetivo da campanha era afastar-se do epíteto de "ser uma marioneta socialista e um cúmplice neoliberal", tornar-se "o presidente mais progressista desde Roosevelt"; para tal precisava do voto dos millennials. Os jovens tinham ido às urnas eleger Obama e agora eram insensíveis ao apelo Biden.

A biografia une todas as peças que possibilitem um bom retrato de Biden, indo ao ponto de contar a sua reação quando o apresentador Stephen Colbert o tratou como um "velhote simpático" e o candidato lhe telefonou a informar que "se me voltar a chamar velhote simpático vou aí dar-lhe um pontapé no rabo". Nada que não esteja sustentado no perfil que faz: "A efusividade de Biden sempre foi acompanhada por uma faceta mais irritadiça" e possui várias inseguranças apesar de décadas a ocupar cargos públicos apresentando uma "certa vulnerabilidade" e uma falta de rigor nos discursos quando ignorava o teleponto e deixava os assessores de cabelos em pé.

O momento em que o autor da biografia mais se solidariza com o candidato é ao relatar a morte do filho Beau Biden após uma longa luta contra um cancro cerebral. Mais imparcial é nas histórias de algumas distrações com as questões do racismo nos EUA, que corrigiu em definitivo, designadamente aquando da morte de George Floyd, bem como ao apontar os seus deslizes num percurso nem sempre profissional devido à falta de uma forte componente ideológica. No entanto, ninguém pode dizer que Evan Osnos passou ao lado do que é importante, nem sequer das bisbilhotices que os leitores tanto apreciam, mas que o biografado só agora, após ser eleito, ganhou verdadeiro direito a uma biografia. Ou seja, esta será sempre a primeira parte da nova biografia a publicar daqui a quatro anos.

A grande falha desta biografia está na ausência de Kamala Harris nas suas páginas, que só surge no fim do livro: "Num dos testes mais decisivos da sua campanha, Biden fez uma escolha reveladora: escolheu Kamala Harris como sua parceira de campanha." Uma situação difícil de contornar pois a nomeação de Harris só se dá em agosto e as eleições são poucos meses depois, quando o livro já estava nas livrarias para cumprir o objetivo principal: publicitar Biden. Diga-se que o título original é sintomático: Joe Biden - A vida, a Corrida à Presidência, e o Que Interessa Agora...

A dura Kamala Harris

Se a vice de Joe Biden só tem, praticamente, direito a quatro parágrafos na biografia anterior, a solução é continuar com a leitura da sua própria biografia: Kamala Harris - Uma Vida Americana. De autoria de Dan Moran, outro jornalista experiente, que acompanhou de perto a carreira da procuradora-geral da Califórnia, bem como da de senadora, e que não deixa de registar que ela era considerada a "Obama feminina". O encontro com Joe Biden que iria dar frutos quatro anos depois ocorreu em 2016, quando Harris pedira a Biden para a apoiar junto do Partido Democrata da Califórnia na corrida ao Senado, e o livro está na página 170. Só regressará ao atual presidente 78 páginas à frente, quando existia a possibilidade de ambos concorrerem à presidência dos EUA. Mas "Joe Biden foi à frente desde o princípio até ao fim", regista Dan Moran. Que confirma: "Queria ser parceira de Biden, mas achava que este sabia onde ela estava e como encontrá-la." Dan Moran não deixa de referir logo ao início um outro caso entre Harris e Biden, quando aquela orquestrou o que muitos acharam que poderia ser um "um golpe baixo". O resto, no pouco tempo que faltava para as eleições, é história.

Antes de ser história, a biografia escalpeliza o percurso de Kamala Harris. Tal como a de Biden começa com uma frase forte: "Aquela menina cresceu para se tornar uma mulher rija, arguta, exigente, dedicada, inteligente, multifacetada e multicultural. Não há muito que lhe escape e menos ainda é o que esquece." Esta última característica surgirá frequentemente, sendo que no período seguinte o autor reafirma essa sua faceta: "Há também quem a conheça bem e que a vê como fria e calculista." Ou que quando Harris tem um desejo que é importante nada o impedirá, mesmo que repita em público amiúde: "Podes ser o primeiro a fazer muita coisa, mas certifica-te de que não és o último."

Inspirada na mãe, Harris cita-a várias vezes e na biografia oficial descreve-se como "filha da Dra. Shymala Gopalan" mas, adverte Dan Moran, não há uma única referência ao pai. Entre outras descrições que existem no livro, raras são as que a mostram como uma derrotada: "Harris chegou a São Francisco em 1998 sem dinheiro ou pedigree, mas estava a tornar-se um nome sonante", por exemplo.

No último parágrafo da biografia o autor não deixa de sintetizar as características dominantes em Kamala Harris: "Podia ser dura, muitas vezes demasiado dura, com os que estavam à sua volta. Na sua ascensão, deixara pessoas para trás que se sentiram usadas e deixou trabalho por fazer, enquanto se deslocava de um importante cargo para o outro." Não é, portanto, um retrato parcial nem evita deixar bem vincados certos padrões de comportamento da nova estrela da política norte-americana.

As duas biografias completam-se perante um leitor que deseje conhecer Biden pré-Kamala e vice-versa. De resto, são o prelúdio do que daqui a quatro anos será preciso acrescentar sobre o atual presidente dos EUA e do que deverá ser dito sobre a vice que, provavelmente, virá a ser a nova titular do cargo.

Joe Biden - Do homem ao presidente

Evan Osnos

Editora Actual

129 páginas

Kamala Harris - uma Vida Americana

Dan Moran

Editora Actual

295 páginas

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Em vésperas de chegar o mais recente livro de Teolinda Gersão, foi reeditado A Mulher Que Prendeu a Chuva e Outras Histórias. Datado de 2007, logo se nota que nada mais é datado nos 14 contos que este volume reúne e que ao ler-se o índice com os seus títulos imediatamente se percebe o quão difícil é uma escolha aleatória.

Há um apelo em cada nome da história que prossegue nas páginas onde está escrita, como acontece em Encontro no S-Bahn, onde a literatura explora a identidade do indivíduo e de uma cidade e se escorrega em sucessivos parágrafos sem se poder parar de ler. É o caso de quando a narradora refere com pretensão do efeito de um amuse bouche literário, por exemplo, a "dificuldade em falar com desconhecidos", para se opor mais à frente numa conversa sem vontade e que se prolonga por demasiado tempo. São situações várias que as breves narrativas destroem ao exibirem barreira alguma nesses diálogos que se escutam na palavra escrita com uma intenção em crescendo. No caso do texto atrás referido, a conversa fora de horas com um passageiro do elétrico vai seduzindo o leitor até se a ignorar e ser o frio que se torna o cenário principal. Daí a pouco, em três parágrafos, vem a solução para o conto passado numa Berlim ainda sob o peso da divisão provocada por um Muro.

Agora, só falta reabrirem as livrarias para se ler o trio de novelas que dá pelo nome de O Regresso de Júlia Mann a Paraty, mas essa será outra conversa.

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