O Amor Louco: filmado antes de maio de 68, estreado em França em 1969
O Amor Louco: filmado antes de maio de 68, estreado em França em 1969D.R.

De que falamos quando falamos de amor louco?

O filme O Amor Louco, lançado em França em 1969, é um dos títulos fulcrais da obra de Jacques Rivette e também uma memória que pode simbolizar a energia criativa da Nova Vaga. Agora, numa cópia restaurada, acontece, finalmente, a sua estreia no circuito comercial português.
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A atualidade do cinema continua a ser marcada pelas formas mais poderosas de marketing, sobretudo aquele que decorre das estratégias globais dos grandes estúdios dos EUA — com filmes “bons” ou “maus”, não é isso que está em causa. Qualquer grande produção com chancela de uma “major” de Hollywood consegue uma automática visibilidade mediática (em particular nas televisões que quase só reagem aos estímulos desse mesmo marketing), enquanto um filme alheio às convulsões financeiras do mercado corre o risco de passar mais ou menos despercebido. Digamos, então, para simplificar que o lançamento da cópia restaurada de O Amor Louco, de Jacques Rivette (1928-2016), é o pequeno grande acontecimento do momento: com data de 1969, arrisca-se a ser um dos destaques no balanço do ano cinematográfico de 2024.

O acontecimento envolve uma dimensão patrimonial que, hoje em dia, com a oferta caótica das plataformas de streaming (incluindo muitos filmes magníficos, também não é isso que está em causa), a maioria dos espectadores ignora ou, pior um pouco, menospreza. Este é, de facto, um filme cuja história está indelevelmente marcada pela destruição do seu negativo de 35mm, num incêndio que, em 1973, atingiu os laboratórios GTC, em Paris.

A perda desse negativo não impediu a circulação do filme nos mais diversos contextos. Em Portugal, por exemplo, ainda que só agora tenha aquela que é, para todos os efeitos, a sua estreia comercial, foi projectado pela primeira vez em 1976, quando João Bénard da Costa o programou numa sessão memorável no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian.

Durante algumas décadas, O Amor Louco permaneceu como um objecto mais ou menos “perdido”, tendo circulado nalguns casos, em anos mais recentes, em cópias incompletas ou já muito marcadas pelo uso. O problema foi, finalmente, superado quando, em 2022, com supervisão de Caroline Champetier (diretora de fotografia que trabalhou em alguns filmes de Rivette), se fez um restauro a partir de diversas cópias e materiais de rodagem (“rushes”) guardados em laboratórios — o resultado abriu oficialmente, o ano passado, a secção de Clássicos do Festival de Cannes.

Tudo é teatro

O restauro de O Amor Louco seria, muito provavelmente, uma questão a que o próprio Rivette prestaria a máxima atenção. E não apenas por motivos técnicos. Isto porque há no filme uma duplicidade (será que podemos dizer uma esquizofrenia?) que resulta do facto de as suas imagens a preto e branco, assinadas por Étienne Becker e Alain Levent, se repartirem por dois formatos de película: o clássico 35 mm, em que circulavam quase todos os filmes, e o 16mm, então dominante no espaço televisivo e também na área documental.

Estamos, afinal, perante uma fição que é vivida como um documentário. E também um exercício documental que só existe enquanto tal porque, paradoxalmente ou não, integra componentes a que chamamos ficionais. Assim, tudo acontece durante os ensaios da peça Andrómaca, de Racine — para as legendas portuguesas foi usada a tradução portuguesa de Vasco Graça Moura (ed. Bertrand). E acontece “duas” vezes, já que acompanhamos esses ensaios através de imagens de diferentes origens: umas provêm da filmagem propriamente dita, outras do acompanhamento dos ensaios por uma equipa de reportagem — as primeiras são em 35 mm, as segundas em 16 mm.

Não é, entenda-se, uma derivação do modelo do chamado “making of” que, mais tarde, se tornaria corrente (em particular nos extras do DVD), com resultados mais ou menos interessantes. Na verdade, a equipa de reportagem faz parte do próprio filme, já que vemos os seus elementos a circular pelo espaço do teatro em que decorrem os ensaios. Para Rivette, o que importa é mesmo esse jogo de espelhos entre a representação vivida e a representação filmada, num jogo de ambiguidades que, em última análise, dilui todas as fronteiras técnicas, informativas e estéticas.

Todo esse aparato é, afinal, inerente ao universo de Rivette — lembremos o exemplo de O Bando das Quatro (1989), sobre o funcionamento de um curso de arte dramática, dir-se-ia uma “repetição” romanesca de O Amor Louco. Ele filma as relações humanas como um compromisso formal, ora irónico, ora dramático, entre a naturalidade que existe (ou julgamos existir) em tais relações e os momentos em que, através de determinados dispositivos formais (a começar pelo teatro), homens e mulheres se revelam para lá de qualquer naturalismo, por vezes com grande surpresa mútua.

Daí as convulsões vividas pelo par central: Sébastien, encenador de Andrómaca, e a sua companheira Claire, uma das atrizes do elenco, interpretados por Jean-Pierre Kalfon e Bulle Ogier, respectivamente. Quando os vemos na intimidade do seu apartamento, seríamos, talvez, levados a supor que aí se manifestaria uma verdade secreta alheia ao trabalho teatral em que começámos por descobri-los — e tanto mais que, a certa altura, Claire entra em ruptura artística com Sébastien, não se reconhecendo na lógica desse mesmo trabalho… Pura ilusão (nossa e deles): tudo acontece num turbilhão de gestos e palavras que contamina todos os cenários. No limite, para Rivette, tudo é teatro (até porque a vida privada dos protagonistas contém ecos perversos do texto de Racine). Se quisermos usar uma expressão com desconcertantes ressonâncias políticas, diremos que o teatro é a continuação da vida por outros meios.

Em Cannes, na sessão de apresentação da nova cópia, Jean-Pierre Kalfon, tendo a seu lado Bulle Ogier, fez uma observação muito curiosa acerca da sua relação com o próprio projeto de Rivette. Tendo em conta o título, Kalfon pensou que iria protagonizar uma história que, de alguma maneira, evocasse O Amor Louco (1937), o livro de André Breton citado em todas as memórias do movimento surrealista. Ao descobrir que não era essa a lógica do filme, compreendeu que esta tão peculiar incursão no teatro correspondia, isso sim, a uma crónica sobre um processo, disse ele, de “loucura amorosa”.

O génio de Rivette

O Amor Louco é um título tradicionalmente citado como um dos momentos mais emblemáticos da Nova Vaga francesa, aliás confirmado pelas palavras célebres de François Truffaut: “Uma das mais belas obras da Nouvelle Vague”.

Claro que tal afirmação possui um indesmentível valor simbólico. Afinal de contas, pela sua obra como realizador e, antes disso, através do seu trabalho como crítico de cinema, Rivette integra essa magnífica galeria de “compagnons de route” em que também encontramos Truffaut e ainda Jean-Luc Godard, Eric Rohmer ou Claude Chabrol. Resta saber se, em 1969, quando se estreou O Amor Louco, o rótulo “Nova Vaga”, para lá da herança que agregava, ainda era artisticamente pertinente.

As possíveis respostas surgem também marcadas por diversas formas de ambiguidade. É, realmente, discutível que O Amor Louco ainda tenha surgido como expressão linear da riqueza criativa da Nova Vaga, sobretudo se nos lembramos que, cerca de um ano antes do seu lançamento, as convulsões políticas e ideológicas de Maio de 68 estilhaçaram todas as bases do movimento. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que O Amor Louco foi rodado em Paris antes de Maio de 68, mais exactamente nos meses de julho-agosto de 1967. Podemos até considerar que a Nova Vaga se “encerrara”, também em 1967, quando Godard realizou Week-end/Fim de Semana, obra-prima apocalíptica que, de modo irreversível, expôs a decomposição estética e ética do contexto social em que a Nova Vaga nascera e colhera muitas das suas histórias.

Curiosamente, a já referida duplicação de registos de O Amor Louco, com a “reportagem” no interior da própria acção e o uso de dois tipos de película, não é estranha a outra componente vital da Nova Vaga, nomeadamente nos filmes de Godard e do próprio Rivette. A saber: o recurso às novas máquinas “ligeiras”, sobretudo as câmaras de filmar cada vez mais leves. Nas suas primeiras longas-metragens, respectivamente À Bout de Souffle/O Acossado (1960) e Paris Nous Appartient (1961), há várias situações — por exemplo, no modo como ambos filmam as ruas de Paris a partir de automóveis em movimento — que permitem perceber que tais máquinas estavam a impulsionar os cineastas a repensar o modo de relação com o mundo à sua volta, eventualmente discutindo (ou ultrapassando) as noções clássicas de realismo cinematográfico.

Agora que o imaginário audiovisual está dominado pelo “realismo” tosco, determinista e moralista que contamina muitas formas de informação televisiva, vale a pena sublinhar a actualidade do risco moral de O Amor Louco. Simplificando, diremos que, no caso de Rivette, esse risco não é estranho à sua paixão por Howard Hawks (1896-1977), mestre clássico de Hollywood, autor de títulos como À Beira do Abismo (1946) ou Rio Bravo (1959). Podemos, a propósito, citar o seu texto “O génio de Howard Hawks”, publicado no nº 23 dos Cahiers du Cinéma (maio 1953):

"É verdade que os extremos nos fascinam, como nos fascina tudo o que é arriscado e excessivo, e que reconhecemos grandeza na falta de moderação — daí resulta que nos sintamos intrigados pelo choque dos extremos, uma vez que nele se reúne a precisão intelectual das abstracções com o elemento mágico dos grandes impulsos terrenos, ligando, numa afirmação de vida, as tempestades às equações. A beleza de um filme de Hawks provém deste tipo de afirmação, convicta e serena, sem remorsos e com energia. É uma beleza que demonstra a existência pela respiração e o movimento pela caminhada. Aquilo que é, é."

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