Um dos reis da literatura juvenil, Patrick Ness, está em alta em Hollywood. Esta semana chega aos ecrãs nacionais Chaos Walking - O Ruído, filme de ficção científica baseado no seu livro Chaos Walking - A Faca que nos Une. Doug Liman adaptou este conto, que faz parte de uma trilogia, que imagina uma colónia espacial onde não existem mulheres e onde o vírus do ruído faz com que o pensamento de todos seja ouvido. Uma distopia filmada como filme de aventuras que narra a saga de um casal improvável a tentar descobrir uma derradeira esperança de civilização. As estrelas são Daisy Ridley, fresca das últimas andanças em Star Wars, e Tom Holland, o atual titular da pasta Homem-Aranha, bem como Mads Mikkelsen, o dinamarquês que encantou o mundo recentemente em Mais Uma Rodada..Numa entrevista via Zoom, em que o autor americano se encontrava em Londres, percebeu-se que Chaos Walking é sobretudo um investimento pessoal. Parte do argumento que adapta a sua obra é escrito por si, e todo este sonho de Hollywood não deixa de ser um sonho tornado realidade. Um argumentista e escritor que está em constante estado de beliscões - Patrick Ness ainda não acredita no seu sucesso....Será que estamos numa fase em que a nossa sociedade cultiva a distância entre aquilo que se pensa e aquilo que se diz? O filme e o livro são essencialmente um longo comentário sobre essa questão? Desde que o livro saiu que essa é a questão que coloco a mim mesmo. Com as redes sociais, quase que somos obrigados a partilhar tudo. Mas onde fica então a nossa privacidade? A privacidade ainda serve para alguma coisa? Pessoalmente, penso que a nossa intimidade é ainda muito importante. O filtro que temos em relação aos nossos pensamentos é aquilo que nos torna ainda humanos. No nosso cérebro temos muitas reações animais, mas é o nosso lado humano que nos faz decidir o que fazer com essas reações. Creio que nas redes sociais há um apelo forte para reagirmos com o nosso instinto animal, e basta ver a maneira como uma mentira se propaga tão rapidamente. Não quero ser político, mas é fácil um governo ser eleito através da encenação de inimigos imaginários e clivagens inexistentes... Tem de haver um fosso entre aquilo que nós somos e aquilo que partilhamos. Parece que estou a pregar, mas é mesmo necessário fazermos estas perguntas nestes dias..Quando imaginou, há 13 anos, esta história, por que razão decidiu que as mulheres conseguiriam esconder os seus pensamentos, em oposição aos homens? Como seres humanos, temos tendência a olhar para o outro como diferente. Senti sempre que as pessoas têm aquela tendência de pensar que aquilo que é diferente ou é pior ou melhor do que nós. E nesse sentido atacam. Atacam quando sentem que são superiores e atacam igualmente quando sentem que são inferiores, para não serem dominadas. Tive esta ideia de diferenciar as mulheres e os homens para refletir sobre aquilo que nos separa: e se todos os dias esse fator de diferenciação estivesse tão explícito? Como reagiríamos com essa separação de poderes? Quando venci um dos prémios com este livro, numa cerimónia encontrei um menino que me disse que eu tinha colocado os homens como seres audíveis, por serem honestos, e as mulheres silenciosas, por serem complicadas... Claro que lhe disse que ele deveria ter uma conversa com a sua mãe. Enfim, nestes 13 anos encontrei muito equívoco, mas penso que a melhor analogia é que, na verdade, os homens não ouvem as mulheres. Esse é um problema sistemático. Cada vez mais estamos todos sobrecarregados com o ruído desta sociedade..Sente que o filme reflete o espírito original do livro? [silêncio] Sim...Fazer um filme de 105 minutos a partir de um romance de 500 páginas era uma missão impossível se houvesse uma fidelização extrema ao livro. Sempre disse que o filme é um remix do livro, aqui remisturado para outros fins e um outro propósito. Por mim, isso não é um problema, antes pelo contrário, este novo processo criativo entusiasmou-me. O espírito está lá todo. Trata-se de uma história de ficção científica que é também um western, não tem barreiras. É preciso que as pessoas não tenham preconceitos de género, a história leva-nos aonde tem de nos levar..Este livro faz parte de uma trilogia. Já tem acordado com o estúdio um conceito para as próximas adaptações? Há muito material para fazermos sequelas, mas como isto é supostamente uma franquia completamente nova, temos de perceber se o público vai querer mais. Os restantes livros têm conceitos diferentes. Este é mais sobre o nosso passado, enquanto o segundo lida com a tirania e como podemos ser arrastados pela radicalização, ao passo que o terceiro é acerca da guerra. O potencial é enorme, mas é preciso que as pessoas encham as sessões de Chaos Walking..É verdade que a Daisy Ridley quis sentar-se consigo e discutir as motivações da sua personagem? O que se passou é que antes das filmagens recebi uma carta dela. Uma carta com as coisas boas do costume, tipo "adorei o livro"... Mas queria mesmo perceber como eu via a personagem, e o que me atraía nela era toda a sua complexidade. Viola é uma jovem cheia de falhas e contradições, por muito que seja heroína. E a Daisy compreendeu isso tão bem! Era importante que o público olhasse para ela e percebesse que está ali uma mulher que sabe tratar de si própria e que quando decide confiar no Todd isso quer dizer algo. Trata-se de uma escolha conscienciosa. Creio que tal é muito mais significativo se fosse apenas uma dama em perigo ou a rapariga que é salva. Falámos muito sobre isso, quisemos que fosse uma personagem que escolhesse, em vez de ser levada ou guiada..dnot@dn.pt