No palco, Carlos Rodríguez, que traz no currículo trinta anos de dança, muito centrados no flamenco, volta a construir universos. Esta noite, 28 de novembro, às 21 horas, leva ao palco do Tivoli BBVA, em Lisboa, Eterno, um espetáculo que mostra as coisas diferentes que Pablo Picasso viveu, sentiu e fez sentir. Há ainda uma repetição no próximo domingo, 30 de novembro, às 16 horas. Ao DN, o coreógrafo e bailarino garantiu que iria ser mostrado um pintor malaguenho em todas as dimensões, incluindo a sua vertente “machista” e manipuladora de mulheres. Mas há mais. “Quando decidi fazer este espetáculo, estava a pensar mostrar o meu conhecimento sobre os verdadeiros lugares de Espanha, a cultura, as diferentes danças. Quero viajar pelo mundo com isso, através da mente do Picasso, tentando colocar todas essas disciplinas diferentes no palco: escuela bolera, jota e até muiñeira”, revela.Estes últimos nomes são expressões coreográficas de matriz rural ou popular de várias regiões de Espanha, sendo a muiñeira uma dança tradicional galega. É assim que uma viagem a uma Paris habitada por Picasso na década de 1900 é também uma viagem a Espanha, com todas as regionalidades filtradas pela dança de Carlos Rodríguez.O bailarino, ao DN, deixa também uma série de alertas para o que o público vai encontrar no palco do Tivoli, que não se limitará a um espetáculo de flamenco.“É todo o imaginário da mente de Picasso. E é como se ele fosse não só um artista, mas um génio. Mas, não sei por quê, atrás do génio estão todas as coisas más. E é muito mau sentir que é preciso ir ali para fazer todas as coisas que ele fez. É o problema do espetáculo, mostrar como ele faz este tipo de coisas e conseguiu o sucesso através da sua personalidade, e ainda ficar, nesse momento, muito confiante de si mesmo”, solta Carlos Rodríguez, com alguma incerteza sobre como apresentar em palavras o lado que diz ser “machista” de Picasso.“Isto é muito estranho”, continua a descrever o criador do espetáculo, que assume que, “para os bailarinos, quando eles estão a interpretar as personagens, dizem que não se sentem muito bem”, no que diz respeito à forma como uma determinada mulher é tratada.Sem desvendar segredos do espetáculos, Carlos Rodríguez descreve uma cena entre uma mulher e um touro, que é simultaneamente uma metáfora e a recriação de uma das mais famosas obras do pintor.“É uma luta. E é muito difícil. Mas é necessário”, admite, porque, defende, um espetáculo não é necessariamente para deixar as pessoas felizes.“Precisas de ir para casa e sentir algo dentro de ti”, recomenda, explicando que nunca fará um espetáculo que deixe as pessoas indiferentes.Paris, a juventude e os excessosO espetáculo está dividido em duas partes com estéticas diferentes. A primeira segue um jovem Picasso na Paris efervescente do início do século XX, com cafés, amigos, as experiências com drogas, o caos boémio, as mulheres. Aqui, Rodríguez mergulha nos “palos” (géneros dentro do flamenco) mais tradicionais para recriar o ambiente popular e sensual em que o pintor estava mergulhado. “A coreografia é mais flamenca. É mais fresca, mais emocional. Mostra as raízes”, explica.A segunda parte é outra viagem. “É o olho do pintor”, destaca. O público entra na mente de Picasso, confrontando-se com uma “tela”. É neste território mais conceptual e contemporâneo que surge a luta entre o touro e a mulher, para “provocar as mentes do público”.Questionado sobre que quadro de Picasso mais se aproximaria do espetáculo, Rodríguez não hesita em dizer: “Guernica.”É mais uma viagem por uma Espanha que nunca é só uma. Aqui, é uma referência ao horror, através da evocação do quadro que foi pintado em 1937 para eternizar o bombardeamento da cidade basca Guernica durante a guerra civil espanhola, e que está exposto no Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madrid.E é neste quadro que se destaca um touro, com todas as suas dimensões expostas, típicas do cubismo.A precisão matemática em palco e a arte de não falharO espetáculo tem uma expressão cirúrgica, explica Carlo Rodríguez, que, em Eterno, trabalha em palco com 11 bailarinos e quatro músicos ao vivo, além da música sinfónica de Lucas Vidal, como pano de fundo de tudo. A conjugação disto implica que cada um dos músicos esteja com uns auriculares in-ear, para ouvir um metrónomo, que vai garantindo que tudo acontece exatamente quando deve acontecer.Portanto, para além do que estão a tocar e da música de Lucas Vidal, há um “clique” constante, cadenciado, que obriga a uma atenção a um tempo artificial, que dá entrada para tudo, para que a parte orquestral surja conjugada com tudo o resto. Como se a equação não fosse já bastante complexa, ainda há bailarinos em palco que têm de obedecer ao tempo do som.Tudo neste espetáculo “é difícil”, admite o bailarino, até porque “o flamenco é muito diferente da partitura da orquestra sinfónica”, este último elemento do espetáculo é “como o jazz”, na sua dimensão matemática. “Precisam de se mover, mas sempre com o metrónomo”, insiste Carlos Rodríguez.Três décadas de dança e uma juventude eternaCarlos Rodríguez, com um boné, um hoodie e uma atitude que desafia o tempo, poderia ser mais facilmente associado a uma expressão do hip hop do que ao flamenco. O bailarino sorri perante esta observação, e nega que pareça jovem. Ainda assim, reconhece que por trás da sua atitude há um segredo: “Acho que a dança me faz feliz e me torna mais jovem, porque posso sentir que dentro de mim há uma liberdade. Quando te sentes realizado, acho que és uma pessoa melhor, e és mais jovem. A tua energia é mais limpa, e é diferente.”Relativamente à possibilidade de continuar a oferecer ao público mais 30 anos de coreografias, Carlos Rodríguez só assegura que vai “tentar fazer isso”. “Para mim, a coisa mais importante é ser um bailarino, e ser um criador, e sentir que sou demasiado novo para perder as novas gerações de artistas, e tentar viver isso junto com eles, e sentir-me vivo. Isso é o mais importante”, desabafa.Em relação ao que o futuro reserva, o coreógrafo já tem mais um espetáculo na manga, sobre o mais antigo tablao (local onde acontecem espetáculos de flamenco) do mundo, o Corral de la Moreria, em Madrid.“Tem 70 anos de existência”, explica o bailarino sobre o local, que trouxe ao mundo muitos dos mais famosos artistas de flamenco, como António Gades, Rosario e Argentinita.Carlos Rodríguez promete que será um espetáculo “totalmente tradicional. Mas fala sobre a vida do local, desde o começo até agora. Foi a casa do flamenco”, conclui..Kara-Lis Coverdale e o desafio da música imprevisível e introspetiva